Revista 30 Dias na Igreja e no Mundo, por de Giovanni Cubeddu

— Eminência, a que ponto estamos no caminho que une Moscou e Roma?
Não podemos falar da atual relação entre o Patriarcado de Moscou e a Igreja Católica sem lembrar nossa longa história comum, pois, no fundo, ainda que não vivamos em plena comunhão, somos uma única Igreja. Compartilhamos os mesmos sacramentos, o mesmo episcopado, e reconhecemos também todos os sacramentos dos ortodoxos. Já antes da revolução existia um arcebispado, em Mogilev, na Rússia, e não podemos nos esquecer de que a imperatriz Catarina acolheu os jesuítas marginalizados da Igreja Católica. A revolução de 1917 causou uma grande tragédia para a Igreja, tanto a ortodoxa quanto a católica, mas presenteou-nos com o corajoso testemunho de muitos mártires. Esperava-se que depois da queda do comunismo começasse uma nova história, mas a saída da Igreja greco-católica das catacumbas, na Ucrânia, que tanto sofreu, criou infelizmente novos mal-entendidos. O documento da Pontifícia Comissão “Pró Rússia”, de 1992, porém, esclareceu que a Igreja Católica não quer fazer proselitismo na Rússia, mas simplesmente manter um serviço pastoral aos fiéis locais, em plena colaboração com o Patriarcado de Moscou. Isso é decorrente, também, do documento de Balamand, de 1993, que claramente considera o uniatismo, enquanto método, um fato do passado, que não é útil hoje, nem no futuro, para a reaproximação das Igrejas. É uma decisão muito importante.
Temos superado muitos dos problemas que se apresentaram como questão de princípio; para discutir obstáculos concretos específicos, que aos poucos vão aparecendo, instituímos uma comissão mista em Moscou, que tem chegado a bons resultados. Assim, nos últimos anos conseguimos restabelecer o diálogo com as Igrejas Ortodoxas em seu conjunto, e estamos muito contentes pelo fato de a Igreja Ortodoxa russa participar disso, pois, na nossa opinião, ela é um parceiro importante. Existem atualmente problemas intra-ortodoxos, na relação entre Constantinopla e Moscou, a respeito do reconhecimento da Igreja na Estônia, mas essas são questões nas quais preferimos não interferir, embora insistindo para que sejam encontrados pontos de acordo que permitam prosseguir um diálogo que é tão importante para o futuro da Igreja Ortodoxa e para a nossa. No mundo globalizado, já não podemos tolerar assistir a polêmicas entre as Igrejas. Por isso, é preciso que iniciemos – e já começamos a fazer isso – um percurso de aproximação, em todos os lugares nos quais o cisma entre o Oriente e o Ocidente inseriu um longo processo de distanciamento. É fundamental que haja um diálogo teológico entre as duas Igrejas, e tenho a impressão de que estamos no bom caminho. Não espero que amanhã ou depois de amanhã já cheguemos à plena unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas ortodoxas. Será um processo longo, pois não basta haver um intercâmbio de cúpula; é fundamental que o povo também esteja envolvido, e isso exige tempo.
— Em sua entrevista a 30Dias, Sua Santidade, o patriarca Aléxis II, mencionou também um diálogo “a partir da base”, que deve ser buscado e desenvolvido.
KASPER: Certamente, é o diálogo relativo à colaboração prática na esfera dos valores éticos, da justiça social, dos direitos humanos, do confronto com o laicismo e com o processo de secularização que vem invadindo a Europa. Sobre esses pontos, as duas Igrejas têm concepções quase idênticas, e, portanto, podem e querem colaborar. Os primeiros passos já foram dados, e poderemos nos aproximar ainda mais e nos conhecer melhor, de forma a superar alguns dos obstáculos maiores, dos quais ambas as partes têm consciência, ou seja, os preconceitos, que só podem ser superados graças a encontros pessoais. Por isso, o Patriarcado de Moscou, com todos os méritos, iniciou relações com as Igrejas Católicas locais de Milão, Paris, Viena, entre outras. Tudo isso ajuda a nos conhecermos melhor e a termos maior apreço uns pelos outros
Outra frente é nosso Comitê para a Colaboração com as Igrejas Ortodoxas, mediante o qual concedemos bolsas de estudos a jovens padres – indicados pelo patriarca ou bispo local –, para permitir-lhes que estudem em Roma ou em várias outras universidades católicas durante alguns anos e possam conhecer nossa Igreja. Aqui, os jovens aprendem uma língua ocidental e, depois de voltar a seus países, normalmente vêm a ocupar posições de destaque, por terem recebido uma formação melhor. Esse intercâmbio de estudantes deve seguramente ser continuado. Temos, ainda, o cuidado de traduzir muitos textos teológicos em cirílico, e isso também ajuda a nos entendermos melhor.
Gostaria de lembrar também que boas amizades já haviam surgido no passado. Por exemplo, a amizade entre o patriarca de Moscou e o cardeal Etchegaray, que se originou bem antes do fim da União Soviética. É preciso acrescentar que as relações entre a KEK [Conferência das Igrejas Européias, ndr.] e o CCEE [Conselho das Conferências Episcopais da Europa, ndr.] vêm-se consolidando cada vez mais, e hoje temos relações cordiais também com o Departamento para as Relações Exteriores do Patriarcado Russo, dirigido pelo metropolita Kirill. São esses os diversos afluentes que esperamos ver desembocar um dia no grande rio do restabelecimento de uma plena comunhão entre as Igrejas.
— E como o senhor imagina esse momento?
Uma união plena não significa unidade uniformista. As tradições ortodoxa e latina têm a mesma fé, mas diferentes expressões, e essa diversidade também é uma riqueza. Portanto, ninguém pensa em impor o sistema latino às Igrejas Ortodoxas, ou vice-versa. O Espírito de Deus, quando quiser, é que nos dará de presente essa unidade, mas será uma unidade na pluriformidade, uma pluriformidade na unidade. Quando isso acontecer, o nó a desatar em seguida será a questão do primado do bispo de Roma, um problema que não pode ser resolvido de um dia para o outro. Serão necessárias longas discussões, já iniciadas em nossos encontros em Belgrado e Ravena, e veremos como vai terminar…
Meu otimismo não é superficial. A esperança é que me sustenta. Afinal, a unidade, para nós, é um mandamento de Nosso Senhor, que prometeu que toda oração em Seu nome será atendida. É por isso que depositamos nossa esperança no auxílio de Deus, no auxílio do Espírito Santo.
— Considerando o diálogo com a ortodoxia, quais são os resultados mais evidentes do percurso que foi feito até aqui?
Na minha opinião, vendo as duas Igrejas, percebo que ao longo do século passado ocorreu uma renovação patrística, em ambas as partes. Nós conhecemos melhor os Padres latinos, enquanto os ortodoxos insistem mais nos Padres gregos, dos quais se alimenta sua tradição, tão rica quanto a nossa. Por isso, poderíamos aprender muito com a patrologia grega, como eles com a latina. A patrologia oriental tem uma grande sensibilidade para o Mistério de Deus, enquanto a sensibilidade ocidental é mais conceptual. A riqueza litúrgica deles também é um grande patrimônio; para mim, é sempre uma experiência tocante participar das liturgias ortodoxas, tanto na Rússia quanto em outros lugares.
Enfim, podemos aprender uns com os outros. Por exemplo, a arraigada concepção oriental da koinonia, da communio como estrutura da Igreja – na Rússia, Sobornost –, poderia também ser útil para nós. É claro que nós também conhecemos o conceito de communio, mas talvez tenhamos nos limitado no passado a sublinhar unilateralmente um de seus aspectos, o do primado, que para nós é fundamental. Por outro lado, primado e koinonia, primado e colegialidade, não são contraditórios, mas complementares, e possuem uma certa relação dialética entre si. A Igreja não é um sistema fechado em si mesmo, mas aberto; por isso, é importante que tenha dentro dela a presença desses dois “pólos”. Acredito que já tenhamos aprendido muito com a concepção ortodoxa de koinonia, mas há muito ainda a aprender. Outro aspecto ligado a esse é a idéia, muito bonita e viva, da eclesiologia eucarística. Nas discussões preparatórias do Concílio Vaticano II já era citado Afanasiev, considerado o pai dessa eclesiologia. Assim, durante o Concílio, sua influência foi muito sentida, e essa teologia, reforçada sobretudo depois do Concílio, é hoje um ponto de referência e de encontro entre nossa Igreja e a Igreja Ortodoxa russa. A eclesiologia eucarística afirma que onde se celebra a Eucaristia a Igreja está presente. Não uma parte da Igreja, mas a Igreja de Jesus Cristo. Esse é um ponto muito importante, que deve ser aprofundado por ambas as partes.
— Na confrontação fraternal com a Ortodoxia, continua a ter uma importância central o cânon 34 dos Cânones apostólicos…

O cânon 34 é importantíssimo, pois afirma que um protos, um primaz, deve agir e decidir sempre em comunhão com os outros bispos, e vice-versa. Acredito que aplicar esse cânon, em nível universal também, seja um dos possíveis caminhos para que cheguemos a uma solução para a questão do primado do bispo de Roma. Pois é muito claro para todas as Igrejas ortodoxas que o bispo de Roma é o primeiro dos bispos; o que é necessário é que concordemos quanto ao que significa concretamente ser o primeiro em nível universal. Estamos apenas no início dessa discussão. Uma certa base foi estabelecida no último encontro de Ravena, em outubro de 2007, mas a discussão ainda está em aberto. Como eu disse, ninguém pensa em impor o sistema latino às Igrejas ortodoxas, mas esperamos que, na esteira desse cânon, um dia, talvez, com a ajuda do Espírito Santo, possamos encontrar uma solução que respeite os elementos essenciais das duas Igrejas.
— Certa vez, o senhor falou em “realismo da esperança”.
A esperança, para nós, cristãos, é o grande dom pascal; por isso, para os cristãos, a esperança não é algo utópico, mas a conseqüência da realidade da Ressurreição. A esperança, na Bíblia, está também sempre ligada à paciência. A paciência é a filha caçula da esperança. Mas é preciso tempo; as coisas devem amadurecer. Devemos dar desde já os passos possíveis, com toda a coragem, continuando, porém, a respeitar aqueles que, sobretudo na Igreja Ortodoxa russa, continuam a ver com suspeita o “ecumenismo”, considerado por eles uma expressão negativa. O que precisamos é simplesmente avançar com cautela e, ao mesmo tempo, com coragem, pois a situação mundial torna constante o desejo de que haja uma voz comum da Igreja e de que todos os cristãos possam participar do mesmo cálice.
— Como dar prosseguimento ao diálogo teológico?
É preciso partir de um conceito correto de diálogo, que não pressuponha nem indiferença e relativismo, nem imposição das posições de cada um, mas, sim, respeito pela alteridade. Quando é assim, o diálogo não é apenas uma troca de idéias, mas de dons, uma oportunidade de enriquecimento mútuo e de que cada um cresça em sua fé. Os dogmas, que são vinculativos para nossas Igrejas, dão espaço a uma concepção do diálogo como essa, pois, no fundo, são uma doxologia. Para as Igrejas ortodoxas, sobretudo, o dogma não é apenas uma conceptualização do Evangelho. O Evangelho é também um mistério que não pode ser totalmente conceptualizado. Santo Tomás de Aquino define o dogma como uma perceptio da verdade divina que, indo além de si mesma, aponta para Deus e tende a Deus. O dogma reconhece que Deus é sempre maior que nossos conceitos: é por isso que cantamos o Credo durante a missa. Não é possível cantar um sistema conceptual, mas nós cantamos o Credo. Isso significa que o Credo não é um sistema conceptual, mas uma oração, um louvor a Deus. Um louvor que se abre ao Mistério
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