PANEGÍRICO
à Dormição da Soberana Deípara
† Iosif de Pátara
Catedral Metropolitana, 15-VIII-18
Traduzido do espanhol por:
Pe. André Sperandio
«Kαὶ εἶπεν ὁ ὄφις τῇ γυναικίί·∙ οὐ θανάάτῳ ἀποθανεῖσθε·∙ ᾔδει γὰρ ὁ Θεόός, ὅτι ᾗ ἂν ἡµμέέρᾳ φάάγητε ἀπ᾿ αὐτοῦ, διανοιχθήήσονται ὑµμῶν οἱ ὀφθαλµμοὶ καὶ ἔσεσθε ὡς θεοίί, γινώώσκοντες καλὸν καὶ πονηρόόν. καὶ εἶδεν ἡ γυνήή, ὅτι καλὸν τὸ ξύύλον εἰς βρῶσιν καὶ ὅτι ἀρεστὸν τοῖς ὀφθαλµμοῖς ἰδεῖν καὶ ὡραῖόόν ἐστι τοῦ κατανοῆσαι, καὶ λαβοῦσα ἀπὸ τοῦ καρποῦ αὐτοῦ ἔφαγε·∙ καὶ ἔδωκε καὶ τῷ ἀνδρὶ αὐτῆς µμετ᾿
αὐτῆς, καὶ ἔφαγον.»«Disse a serpente à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal. Então, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, comeu, e deu a seu marido, e ele também comeu». (Γεν. 3: 4-6)
Assim tem início o drama da raça humana, em um tempo–espaço indeterminados para as nossas atuais coordenadas, nas condições ontológicas primigênias que são, talvez, para nós, tão distantes, mas que logo são restabelecidas e aperfeiçoadas pelo próprio Criador ou, paradoxalmente, através de sua criatura mesma.
Eminência Reverendíssima,
Sacro Clero,
Autoridades diplomáticas, comunitárias e civis presentes,
Irmãs e irmãos, no Senhor,
A festa deste dia é, sob o ponto de vista da simples razão, uma apologia ao mito religioso; sob a lógica do coração, no entanto, é um encômio ao paradoxo que ocorre quando Deus «inverte» os termos da natureza criada e da profunda sensibilidade do homem–imagem–divina, prova inabalável do infinito amor daquele Deus que se revela na humana contingência.
Se Eva, a primeira mãe, “acreditando” na serpente, rompe a comunhão com o seu criador, através da assunção desta crença−promessa oferecida pela serpente, a de que «sereis como deuses», vendo como belo e atrativo o poder de «conhecer o bem e o mal», a evolução que a Providência Divina engendra na contingência humana, nesta aventura dramática e errática ─ e, às vezes, até trágica ─ do homem em direção à perfeição, irá revelar outra mulher que sublimará a vontade de sua primigênia predecessora com uma diametralmente antitética vontade e atitude.
Com efeito, as duas mulheres respondem a um estímulo externo que exacerba e provoca o que, na vontade humana, há de mais profundo e absoluto. No primeiro caso, a promessa é uma falácia: «sereis como deuses», diz a serpente. E, mente. Mente distorcendo a verdade. A proposta é desleal, porque mistura a verdade com a falsidade. Eva não pode compreender o engano. É atraída pela promessa: «acredita» na serpente. E, consequentemente, deixa de «crer» em Deus. Quebra-se a «con−fiança», pois «crer» não é apenas uma função da lógica humana, mas encontra-se enraizada na essência mesma da alma e dos sentidos. Eu creio em algo, porque (creio) acredito em quem me disse. O «quem» precede ao «que». O «quem» crê e o «quem» no qual se crê. Ou seja, que a fé − juntamente com o amor − é a dimensão mais profunda da relacionalidade humana. Por este motivo é que se quebra a comunhão com o Criador. Em outras palavras: Eva muda o ponto de referência, de Deus para a serpente, e desta para ela própria.
A partir de então o homem − a humanidade em sua totalidade − entra em uma matriz existencial «de−generada», «de−gradada», «des−graçada», «des−medida» e «des−estabilizada» e finalmente «des−naturalizada». É uma matriz ontológica baseada na alienação da primigênia consciência relacional e perceptiva e a consequente aquisição de um meta−consciência e de sua respectiva percepção e receptividade autorreferencial, necessariamente complexa, dualista e sem dúvidas, virtual.
A primeira reação da mulher − e do homem − depois de comer do fruto é a vergonha, ou seja, o medo. Quando a liberdade é perdida quando o αὐτεξούύσιον – a auto soberania legítima e primitiva é alienada e pervertida, quando a verdade é substituída pelo seu inverso, quando o ponto de referência ontológico e existencial natural é substituído por outro mítico e fantástico, quando as funções anímicas primitivas são bloqueadas, então o amor incondicional natural da criatura converte-se em egoísmo, a liberdade em libertinagem, a verdade em uma quimera ideológica, e tudo, finalmente, se resume num destino contra natura, ou seja, na corrupção e na morte. Trata-se de um labirinto existencial sem saída. Por isso, o medo e todas as emoções que são necessariamente agregadas: o ódio, a tristeza, o ciúme, a depressão e o desespero. De acordo com o olhar dos santos Padres, neste labirinto, o fio de Ariadne é uno e o duplo em sua dimensão, ativo e passivo: medo e hedonismo. Esta é a dupla chave de leitura desta situação pós-paradisíaca; é a nova atitude do homem diante de uma realidade que é percebida parcialmente – dualistamente − por causa da natural limitação imposta sobre os moribundos sentidos da alma e do corpo.
No entanto, a providência divina não cessa de agir. Age na história e nesta nova situação da criação. Mesmo sem ser percebida, a ação de Deus está conduzindo a sua Criação em uma direção ascendente e perfectiva. O marco principal disto é co-protagonizado por outra mulher. Os Padres a chamarão de a «nova Eva». Dela haverá de nascer o arquétipo de uma nova raça. Parecia haver um claro contraste entre os dois personagens. A oposição se evidencia no objeto da fé de cada uma delas. Da Fé, não da crença. E definimos fé com o Apóstolo: Ἔστιν δὲπίίστις ἐλπιζοµμέένων ὑπόόστασις, πραγµμάάτων ἔλεγχος οὐ βλεποµμέένων· «A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem» (Hb 11:1). E, novamente: crê-se primeiro em alguém e depois em algo. É a dinâmica natural da fé. Porque acreditamos em alguém − porque confiamos −, cremos que o que nos diz é realidade. Consequentemente, a fé ultrapassa uma mera operação lógica. É uma dimensão da relacionalidade natural do homem. Eva crê e a serpente lhe corresponde. Maria crê e Deus lhe corresponde. E porque crê, age em conformidade e coerência com essa fé, posto que a fé sem obras é morta, de acordo com o Apóstolo (Tg 24:17). É por isso que ao anúncio de Deus Maria responde: «Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1:38). É por esta razão que sua prima Isabel proclama «Bem-aventurada aquela que creu que se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor lhe foram ditas» – καὶµμακαρίία ἡ ὅτι ἔσται τελείίωσις τοῖς λελαληµμέένοις αὐτῇ παρὰ κυρίίου πιστεύύσασα. (Lc 1:45)
Maria crê. Maria crê não com a sua razão, mas crê com o seu coração. Crê com todo seu ser, com toda a sua existência: crê com todas as suas entranhas. Não duvida. Ela é absoluta. Incondicional. Inabalável. Ainda quando o profeta lhe prediga quase funestamente: Ἰδοὺοὗτος κεῖται εἰς πτῶσιν καὶ ἀνάάστασιν πολλῶν ἐν τῷ Ἰσραὴλ καὶ εἰς σηµμεῖον ἀντιλεγόόµμενον, καὶ σοῦ δὲ αὐτῆς τὴν ψυχὴν διελεύύσεται ῥοµμφαίία, ὅπως ἂν ἀποκαλυφθῶσιν πολλῶν καρδιῶν διαλογισµμοίί ἐκ: «Eis que este (menino) é posto para queda e para levantamento de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição, sim, e uma espada traspassará a tua própria alma, para que se manifestem os pensamentos de muitos corações». (Lc 2:34-35). Na verdade, um «sinal contraditório» − σηµμεῖον ἀντιλεγόόµμενον − para aqueles que permanecem na matriz de Eva. Não para Maria.
Sim, Eva rompe a comunhão com o seu Criador, Maria a re−estabelece. Ecoam, neste contexto, as palavras de seu filho a muitas outras mulheres: Ὦ γύύναι, µμεγάάλη σου ἡ πίίστις·∙ γενηθήήτω σοι ὡς θέέλεις: «Mulher, grande é a tua fé! Seja-te feito como queres». (Mt 15:28). Maria quer crer em quem crê, e quer que se cumpram essas promessas. E por isso elas se cumprem. Mais uma vez, a dinâmica da fé; seu paradoxo; seu mistério: Θάάρσει, θύύγατερ∙ ἡ πίίστις σου σε σέέσωκέέν. (Mt 9:22)
Essa mesma fé, que não é precisamente cega conforme a expressão, mas esplendidamente lúcida, é a que retifica e aperfeiçoa aquela de Eva. Por isso, o Logos pre−eterno do Pai se faz carne nela. «Aquele que não pode ser contido» é «contido» na mortal existência desta jovem que se alinha e se re-incorpora voluntariamente com a divina vontade, que já não se distingue da sua própria: e identifico aqui as palavras do Apóstolo com a experiência Mariana: ζῶ δὲοὐκέέτι ἐγ Ώώ, ζῇ δὲἐν ἐµμοὶ Χριστόός·∙ ὃ δὲνῦν ζῶ ἐν σαρκίί, ἐν πίίστει ζῶ τῇ τοῦ [ou] τοῦ θεοῦ ἀγαπήήσαντόός µμε παραδόόντος ἑαυτὸν ὑπὲρ ἐµμοῦ καὶ τοῦ υἱοῦ. «E vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim». (Gl 2:20)
Esta é a obra da fé: «Vós sois deuses, e filhos do Altíssimo, todos vós». (Sl 82:6) Trata-se da identificação do criado com o Criador por causa de um incontrolável impulso natural e erótico – ágape dinâmico e executado em uma relacionalidade múltipla e única, multidimensional e, ao mesmo tempo, idêntica, imagem preclara daquela supra ontológica e uni-trinitária. Então, a natureza se faz sobre-natureza e a morte cessa sua função, só reativada na medida da não-comunhão com o Criador. Por isso é que o sacro-hinógrafo escreve: “Νενίίκηνται τῆς φύύσεως οἱ ὅροι, ἐν σοὶ Παρθέένε ἄχραντε·∙ παρθενεύύει γὰρ τόόκος, καὶ ζωὴν προµμνηστεύύεται θάάνατος. Ἡ µμετὰ τὸκον Παρθέένος, καὶ µμετὰ θάάνατον ζῶσα, σῴζοις ἀείί, Θεοτόόκε, τὴν κληρονοµμίίαν σου. «Em Ti, ó Virgem pura, os limites da natureza são vencidos; porque o parto foi virginal e a morte, um laço de vida. Ó Theotokos, conservaste a virgindade após dares à luz, e permaneces viva após a morte. Por isso, salvas sempre a tua herança!“»(Hirmós da Festa).
Os termos da natureza são superados, posto que o próprio Deus, através de sua criatura, une em si mesmo a natureza criada caída com a divina, para assim redimir a humanidade. A divina dinâmica: infinita generosidade, redenção sem obstáculos, misericórdia sem limites, o eros incontido, o ágape insondável, que faz com que a nova Eva seja filha da antiga, e que a antiga encontre sua perfeição em seus descendentes, na mulher que se torna a principal co−protagonista – e, perdoem o paradoxismo desta história, que é identificada com a igreja, com o lado feminino da humanidade – e da Divindade Tri-una − que se esvazia a si mesma para assumir de uma mulher toda a natureza humana, e assim uni-la para sempre à verdadeira e divina, na pessoa do Teantropo Cristo. E que a ninguém escandalize o conceito de feminilidade referido à divindade, desde que se quer significar, em um simbolismo prático − bíblico e patrístico – o entranhável amor d’Aquele por sua criação: «ὡς εἴ τινα µμήήτηρ παρακαλέέσει, οὕτως κἀγὼ παρακαλέέσω ὑµμᾶς, καὶ ἐν Ἱερουσαλὴµμ παρακληθήήσεσθε. «Como alguém a quem consola sua mãe, assim eu vos consolarei». (Is 66:13); «µμὴ ἐπιλήήσεται γυνὴ τοῦ παιδίίου αὐτῆς τοῦ µμὴ ἐλεῆσαι τὰ ἔκγονα τῆς κοιλίίας αὐτῆς; εἰ δὲ καὶ ταῦτα ἐπιλάάθοιτο γυνήή, ἀλλ᾿ ἐγὼ οὐκ ἐπιλήήσοµμαίί σου, εἶπε Κύύριος. «Pode uma mulher esquecer-se de seu filho de peito, de maneira que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta se esquecesse, eu ainda não me esquecerei de ti». (Is 49:15)
Eminência,
Povo eleito por Deus,
Este é o amor de Maria. Maria é mulher. Maria é a mãe. Maria é a Deípara, e, por isso, Mãe de todo o novo gênero humano que é segundo o Arquétipo Cristo. Em virtude deste amor materno, que tem como fonte e termo a mesma deidade, Maria ressuscita como seu filho, posto que a morte já não tem nenhum domínio sobre o inefável amor que se dá entre a alteridade ontológica da criação e seu Criador, fazendo-os Uno e, por isso, constituindo a prova última de que Jesus de Nazaré é verdadeiramente o filho de Deus; que Ele verdadeiramente ressuscitou; e de que cumpre as suas promessas aos que n’Ele creem.
Maria é a primícia desta nova vida. Maria é o paradigma último de fé e de amor, libertadora revolução dos fracassos da humanidade e promessa de vida e sobre-vida. Ἰταµμῷ θυµμῷ τε καὶ πυρίί, θεῖος ἔρως ἀντιταττόόµμενος, τὸ µμὲν πῦρ ἐδρόόσιζε, τῷ θυµμῷ δὲ ἐγέέλα, θεοπνεύύστῳ λογικῇ, τῇ τῶν ὁσίίων τριφθόόγγῳ λύύρᾳ ἀντιφθεγγόόµμενος, µμουσικοῖς ὀργάάνοις, ἐν µμέέσῳ φλογόός·∙ Ὁ δεδοξασµμέένος, τῶν πατέέρων καὶ ἡµμῶν, Θεὸς εὐλογητὸς εἶ.
O Eros divino se contrapôs à ira brutal e ao fogo; abrandou o fogo com sopro amoroso e serenou a ira com a inspirada lógica da harpa tritonal (de três tons) dos santos, que repercutia sobre os instrumentos musicais em meio às chamas e que exclama: «Bendito és Tu, o mais glorioso, o Deus de nossos pais. Amém».
(Ode VII dos Hinos da Festa)
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