MIRCEA Eliade: «Palamàs e a Luz Tabórica»
Tradução para o português por Pe. André [Sperandio]
No século XIV, um monge calabrês, Barlaam, atacou os hesicastas do Monte Athos, acusando-os de messalianismo. Baseava-se suas acusações na sua própria afirmação de que eles desfrutavam da visão da luz incriada. Mas, indiretamente, o monge calabrês prestou um grande serviço à teologia mística oriental, pois deu oportunidade ao grande teólogo Gregório Palamàs, arcebispo de Tessalônica de defender os hesicastas do Monte Athos no Concílio de Constantinopla (1341) e desenvolvendo uma teologia mística sobre a luz tabórica.
Palamàs não teve dificuldade em demonstrar que nas Sagradas Escrituras a luz divina e a glória de Deus são mencionadas a cada passo, e que o próprio Deus é chamado de luz. E mais ainda, ele tinha à sua disposição uma abundante literatura mística e ascética – dos Padres do Deserto a Simeão, o Novo Teólogo – para demonstrar que a deificação pelo Espírito Santo e as manifestações visíveis da graça se distinguem pela visão da luz incriada ou por emanações de luz. Para Palamàs, escreve Vladimir Lossky,
“a luz divina é um dado da experiência mística. É o caráter visível da divindade, das energias pelas quais Deus se comunica e se revela àqueles que purificaram seus corações”[1].
Esta luz divina e divinizante é a graça. A transfiguração de Jesus constitui evidentemente o mistério central da teologia de Palamàs. A discussão com Barlaão girava especialmente em torno deste ponto: a luz da transfiguração é criada ou incriada? A maioria dos Padres da Igreja considerava a luz vista pelos apóstolos incriada e divina. Palamàs dedicou-se a desenvolver este ponto[2]. Para ele, a luz é própria de Deus por natureza, existe fora do tempo e do espaço e torna-se visível nas teofanias do Antigo Testamento. No Monte Tabor não houve mudança em Jesus, mas houve uma transformação nos apóstolos. Estes, pela graça divina, receberam o faculdade de ver Jesus como ele é: resplandecente em sua luz divina. Adão também possuía esta faculdade antes da queda, e ela será restaurada ao homem no fim escatológico. Ou seja, a percepção de Deus na sua luz incriada está associada à percepção das origens e do fim, ao paraíso antes da história e ao eschaton que porá fim à história. Mas aqueles que se fazem dignos do reino de Deus desfrutam já desde agora da visão da luz incriada, como os apóstolos no Monte Tabor.
Por outro lado, e a propósito da tradição dos monges egípcios, Palamàs afirma que a visão da luz incriada é acompanhada pela luminescência objetiva do santo.
“Aquele que participa na energia divina se converte, ele mesmo, de alguma maneira, em luz; é unido à luz e, mediante a luz, vê em plena consciência tudo o que permanece escondido para quem não teve esta graça”[3].
Palamàs se fundamenta especialmente na experiência mística de Simeão, o novo teólogo. Na Vida de Simeão, escrita por Nicetas Stethatos, há algumas indicações particularmente precisas a respeito desta experiência.
“Uma noite, quando ele estava orando e em que sua inteligência purificada se uniu à primeira Inteligência, ele viu uma luz no alto. De repente, esta luz pura e imensa que vinha do céu lançou sobre ele sua claridade, iluminando tudo e produzindo um esplendor semelhante ao dia. Parecia que a casa e a cela onde se encontrava se haviam desvanecido, passando ao nada num piscar de olhos; que ‘ele próprio foi arrebatado aos ares e que havia se esquecido completamente de seu corpo …’.
Noutra ocasião,
“… lá em cima, lá no alto, começou a brilhar uma espécie de luz de aurora […]; Essa luz aumentava aos poucos, iluminando cada vez mais o ar, e ele se sentia como se estivesse livre do corpo e das coisas terrenas. E à medida que essa luz, que continuava a brilhar cada vez mais, até se tornar como um sol no seu esplendor do meio-dia, pousou sobre ele, ele foi capaz de perceber que ele próprio era o centro da luz; e se encheu de júbilo e lágrimas pela doçura que de tão perto encheu todo o seu corpo. E viu a luz unir-se a ele de uma forma incrível, penetrando pouco a pouco na sua carne e nos seus membros […]. E viu, então, como essa luz acabava por invadi-lo por completo, até encher seu coração e suas entranhas, até convertê-lo em fogo e luz. E como acabara de acontecer com ele em relação à casa, também perdeu o sentido da forma, da altitude, da espessura e das aparências do próprio corpo”[4].
Esta concepção é preservada até hoje nas Igrejas Ortodoxas. Citarei, como exemplo de irradiação corporal, o célebre caso de São Serafim de Sarov (início do século XIX). O discípulo que mais tarde registrou as “revelações” do santo diz que certa vez o viu tão brilhante que lhe era impossível olhar para ele. E exclamou:
“Não consigo olhar para ti, padre; os teus olhos projetam brilhos, o teu rosto tornou-se mais resplandecente que o sol e sinto-me com dificuldade de olhar para ti”.
Serafim então começou a orar e o discípulo conseguiu vê-lo.
“Eu olho para ti e sou dominado por um piedoso medo. Imagine, em pleno sol, sob seus resplandecentes raios do meio-dia, o rosto de um homem que fala contigo. Vês o movimento de seus lábios, a expressão e movimento de seus olhos, ouves sua voz, sentes suas mãos em teus ombros, mas não vês nem as mãos nem o corpo de teu interlocutor, apenas a luz resplandecente que se propaga por alguns metros ao teu redor, iluminando o prado coberto de neve e os flocos brancos com seu brilho que não param de cair”[5].
Seria emocionante comparar esta experiência do discípulo de São Serafim com a história que Arjuna conta, no capítulo XI do Bhagavad-Gita, sobre a epifania de Krishna.
Lembremos também que Sri Ramakrishna, contemporâneo de São Serafim de Sarov, às vezes parecia luminoso ou como se estivesse rodeado de chamas.
“Seu corpo parecia ainda mais alto e leve como um corpo visto em sonho. Ele ia ficando luminoso, a cor marrom de seu corpo ganhava um tom muito claro … A cor ocre de sua roupa confundia-se com a luminosidade de seu corpo, e podia-se acreditar que ele estava rodeado de chamas ….”[6]
Notas:
[1] Vladimir Lossky, “La théologie de la lumière chez Saint Grégoire Palamas de Thessa!onique”: “Dieu Vivant”, I (1945), pp. 93-118, esp. pág. 107. Cf. também, do mesmo autor, “Essai sur la théoIogie de l’Eglise d’Orient”, Paris, 1944, esp. pp. 214 e segs. Ver Jean Meyendorff, “Saint Gregoire Palamas et la mystique orthodoxe”, Paris, 1959, pp. 86 e segs.
[2] V. Lossky, “La théologie de la lumière”, pp. 110 e segs.
[3] Sermão para a festa da Apresentação no Templo da Santa Virgem, texto traduzido por Lossky, op. cit.., pág. 110.
[4] Vie de Syméon le nouveau théologien”, n. 5, pp. 8-10; n. 69, pp. 94-95; textos citados por J. Lemaître, op. cit.., col. 1852, 1853.
[5] “Révélation de Saint Séraphim de Sarov”, fragmento traduzido por Lossky, op. cit.., pp. 111-112. Sobre a irradiação dos santos, cf. o importante arquivo compilado por O. Leroy, “La splendeur corporelle des saints”, Paris, 1936.
[6] (Saradananda, “Sri Ramakrisbna, o Grande Mestre”, tradução para o inglês, segunda edição revisada, p. 825).
FONTE: Христианская мысль, Nº 3, 2006.
Monasterio de la Transfiguración de nuestro Señor Jesucristo