São Serafim de Sarov, cujo fogo queimará as divisões entre os cristãos

Em 2003, a Igreja russa comemora um acontecimento que, em um sentido, coroa seu percurso histórico e ao mesmo tempo lança uma luz profética sobre seu futuro: o centenário da canonização de São Serafim de Sarov. Esse homem, que durante sua vida nada mais queria do que a solidão mais completa e a humildade mais profunda, tornou-se o mais amado e venerado da Igreja da Rússia cristã do século XX.

São Serafim de Sarov

 Parece que o povo russo reconheceu na imagem de Serafim o mais autêntico ícone do Cristo “russo” e o reflexo de sua alma religiosa.

Serafim” quer dizer “ardente”, “inflamado”. Na Igreja Ortodoxa, quando um homem toma o hábito monástico, seu superior pede-lhe um novo nome, o celeste, fiel sinal da renúncia da velha natureza do Adão decaído. Mas “ardente” Prochor Mosnin (seu nome civil) o era desde o nascimento, em 1759, na família de um mercador rico de Kursk (ao sul de Moscou).

Na lógica natural das coisas, também ele deveria seguir esse caminho. Contudo, parece que a Mãe de Deus, sempre venerada de modo particular pelo futuro santo, o tivesse escolhido desde o nascimento, para depois se manifestar tantas vezes durante a vida de seu escolhido. Aos sete anos, tendo caído do campanário da catedral construída pelo pai, Prochor saiu ileso. Três anos depois, tomado por uma doença mortal, foi curado milagrosamente após ter beijado o ícone da Virgem carregado em procissão perto de sua casa. E depois. Muitas vezes durante sua vida monástica Serafim foi visitado por ela. Numa dessas visitas, Maria, segundo o testemunho do discípulo de São Serafim, dele disse, voltando-se para São João Evangelista, que a acompanhava: “Esse é de nossa estirpe”.

Seu caminho foi extraordinário, mas também muito típico para um monge russo. A vocação precoce e sem hesitações, o encontro com o staretz que o enviou para o mosteiro de Sarov (na região de Nijnij Novgorod, além do Volga), o noviciado e o pesado trabalho físico, a ordenação sacerdotal e depois o eremitério e a solidão por longos anos, numa vida semelhante à dos antigos Pais do deserto, mas com o gelo implacável e no fim da vida, nos anos 20 do século XIX, a missão junto ao povo como pai espiritual de milhares de peregrinos que o procuravam para um conselho, um socorro, mas, sobretudo procuravam a ternura de Deus, da qual ele era testemunha privilegiada.

São Serafim teria podido dizer de si as palavras de São Paulo: “Aquele que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou com sua graça, teve a bondade de revelar a mim o Seu Filho, para que o anunciasse em meio aos pagãos” (Gl 1,15). Mas, humilde como nenhum outro, como poderia dizê-lo? Andou pelos bosques mais selvagens possíveis para viver sua vida fiel no diálogo com o Senhor e na penitência permanente. Mas Deus o elegeu para revelar a sua imagem no anúncio do amor. Um amor ardente por todos (sobretudo pelas crianças), um amor a Deus sem limites.

Quem seria capaz de rezar mil dias e mil noites sobre uma pedra tosca sem estar inflamado pelo amor que protege do frio, da fome, dos animais selvagens, dos insetos, dos ataques dos demônios? Os frutos dessa graça de amor, São Serafim levou a seus contemporâneos, mas continua a traze-los também a nós, “pagãos” de hoje: a alegria pascal que irradiava (acolhia todos os hóspedes com as palavras “Cristo ressuscitado, minha alegria!”, a alegria desarmada, a clarividência, a sabedoria espiritual, o dom da cura (que se manifesta até os dias de hoje), o calor das lágrimas… A todos esses dons acrescentava-se um outro, que o tornou conhecido em todo o mundo: o dom do Espírito, do qual tornou-se o profeta, o praticante, o amigo íntimo… O fim da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo de Deus, todo o resto – também a oração, a ascese, o jejum – são apenas instrumentos, disse a seu discípulo. Com sua confissão pneumatológica, São Serafim conseguiu dar voz aos séculos da oração silenciosa dos santos desconhecidos. Todo o Santo, e Serafim em particular, é uma figura escatológica. Inflamado pelo amor e pela purificação da alma, e transformado como que numa janela que deixa entrever o oceano de luz que lava a lama da vida terrestre, quando ela se avizinha do Reino de Deus. Esse Reino não está dividido, como o estão as Igrejas.

A imagem de São Serafim, de sua vida, oração e palavra, são marcadas pelo mistério do Reino, cujo fogo deveria queimar, num dia, as nossas divisões. Naquele dia, a memória do santo russo é festejada em todo o mundo como revelação da universalidade do amor no Espírito professado por São Serafim.

FONTE: JESUS – Mensile di Cultura e Atalità Religiosa, Anno XXV – Agosto/2003 – N. 8

Traduziu para Ecclesia: Pe. José Artulino Besen – Florianópolis – SC