Uma visão católica da Ortodoxia

Tradução do inglês por: Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior
Este texto foi apresentado em um encontro da Pro Scandiae Populis, sobre as relações de católicos e ortodoxos, em Turku (Aabo), Finlândia, no dia 21 de abril de 1995. A seção que esboça uma possível reforma da cúria romana foi inserida neste contexto com o objetivo de esclarecer a um pedido tácito de clarificação do Bispo Ambrósio de Joensuu da Igreja ortodoxa da Finlândia.
Neste artigo eu farei um apanhado geral em quatro partes. Primeiro, eu irei analisar porque os católicos não só deveriam mostrar um pouco de interesse pelo ecumenismo com a Ortodoxia, mas também, tratar os ortodoxos como seus interlocutores ecumênicos privilegiados ou prioritários.
Em segundo lugar, eu irei investigar por que aconteceu o cisma entre as igrejas católicas e ortodoxas, focalizando a atenção nos “pontos históricos divergentes” em que esta divisão se concretizou.
Em terceiro lugar, irei avaliar o estado atual das relações católico-ortodoxas, dando uma especial atenção ao problema dos “uniatas”, ou seja, as igrejas católicas orientais.
Em quarto e último lugar, tendo sido muito favorável e respeitoso ao longo de todo o artigo para com os ortodoxos, concluirei mostrando aquilo que, em meu parecer, há de errado na igreja ortodoxa e por que ela necessita do catolicismo para (humanamente falando) sua própria salvação.
I.
Primeiro, então, por que deveriam os católicos tomar os ortodoxos não só como um parceiro ecumênico, mas como parceiro ecumênico por excelência? Há três tipos de razões: histórica, teológica e prática – das quais, na maioria das discussões, somente a histórica e teológica são mencionadas. O que eu chamo de “prática” nos leva a áreas de controvérsia potencial entre os próprios católicos ocidentais.
As razões históricas para preferir os ortodoxos a todas as outras comunhões separadas se resumem no fato de que o cisma entre a igreja romana e as antigas igrejas calcedonianas do oriente é a mais trágica e penosa das divisões na cristandade histórica se levarmos em conta uma perspectiva universal e não meramente regional.
Embora a Grande Igreja tenha perdido parte da Igreja dos Padres, com a saída da unidade católica das igrejas assírias (nestorianas) e ortodoxas orientais (monofisitas), depois dos concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451) respectivamente, os cristãos que representavam as duas culturas principais da bacia mediterrânea onde o evangelho teve seu maior florescimento – a cultura grega e a latina – viveram em paz e unidade entre si, apesar de agitações ocasionais e de algumas dificuldades locais até o final da época da patrística.
Essa época teve o seu clímax com o sétimo concílio ecumênico, o Niceno II, em 787, o último concílio que os católicos e os ortodoxos tiveram em comum, concílio que, em seus ensinamentos sobre a iconografia, e notavelmente sobre os ícones de Cristo, trouxe um final triunfante à série de definições conciliares acerca da fé cristológica da Igreja, que havia sido iniciada com o concílio de Nicéia, em 325.
A iconografia, a vida litúrgica, o credo e os dogmas da Igreja antiga chegam até nós numa forma que, ao mesmo tempo, é ocidental e oriental; e foi esta rica comunhão da cultura patrística, expressão da fé da comunidade apostólica, que foi quebrada com o cisma entre católicos e ortodoxos, cisma este nunca (tão distante de ser) reparado.
Gostaria, porém, de lembrar que a história da Igreja nos dá pouquíssimos exemplos de cismas históricos superados. Assim, se tivermos a história como nossa mestra, nós não temos nenhum fundamento para confiar ou ser otimistas, que o mais catastrófico de todos os cismas será superado. “Catastrófico” porque, historicamente, como o papa apontou, utilizando uma metáfora criada por um eclesiólogo francês, o falecido Cardeal Yves Congar, cada Igreja, tanto a ocidental como a oriental, desde então, passaria a “respirar apenas com um pulmão”.
Nenhuma Igreja poderia reivindicar agora a totalidade do patrimônio cultural do calcedonismo oriental e ocidental – quer dizer, a correta interpretação cristológica, e, conseqüentemente, trinitária e soteriológica do Evangelho. O resultado da conseqüente rivalidade e conflito foi a criação de uma invisível linha divisória no meio da Europa. E as conseqüências históricas disso, nós as conhecemos suficientemente bem ao olharmos para a situação atual da ex-Iugoslávia.
Depois da razão histórica, temos a teológica. A segunda razão para dar prioridade às relações ecumênicas com os ortodoxos é teológica. Se o ponto principal do ecumenismo, ou trabalho para a restauração da unidade da Igreja, fosse simplesmente reparar males históricos e esquecer causas historicamente geradoras de conflito, então poderíamos supor que nós deveríamos estar igualmente – ou talvez até mesmo mais – interessados em nos voltarmos para o cisma católico-protestante.
Afinal de contas, não houve, verdadeiramente, nenhuma guerra de religião – como tal – entre católicos e ortodoxos, ao contrário do que ocorreu entre católicos e protestantes no século XVI, na França, ou no século XVII, com o Sacro Império Romano. Mas, teologicamente, não há dúvida que a Igreja católica deva dar mais importância ao dialogo com os ortodoxos, do que às conversações com qualquer grupo protestante.
Pois as igrejas ortodoxas são igrejas na sucessão apostólica; elas são portadoras da Tradição apostólica, testemunhas da fé apostólica, do culto e da ordem – embora elas também estejam, ao mesmo tempo, infelizmente separadas da prima sedes, a primeira sé.
Seus Padres e outros escritores eclesiásticos, seus textos e práticas litúrgicas, sua tradição iconográfica, permanecem loci theologici – fontes autênticas – para as quais o teólogo católico pode e deve se voltar em sua compreensão do cristianismo católico. Não se pode dizer a mesma coisa do patrimônio anglicano, luterano, reformado ou de qualquer outro tipo de protestantismo.
Para dizer a mesma coisa de outra forma: as comunidades ocidentais separadas têm tradições cristãs – no plural, com um “t” minúsculo – que podem ser merecedoras do interesse e respeito do teólogo católico. Mas só os ortodoxos são, juntamente com a Igreja católica, portadores de santa Tradição – no singular, com um “T” maiúsculo, isto é, do evangelho em sua transmissão orgânica e plena através da totalidade da vida doutrinal, doxológica e ética – da Igreja de Cristo.
Há, para os católicos, então, um imperativo teológico de restabelecer a unidade com os ortodoxos, imperativo que não existe em nossa abordagem do protestantismo – embora eu não gostaria de ser mal-interpretado, como se estivesse dizendo que não há nenhuma base teológica para o impulso de aproximação católico-protestante porque nós encontramos esta base na oração de nosso Senhor, na Última Ceia, para “que todos sejam um”.
Estou enfatizando que deveríamos dar uma maior prioridade para as relações com os ortodoxos, porque eu não acredito nas afirmações otimistas de muitos especialistas em ecumenismo, de que todos os diálogos bilaterais – cada uma das negociações com as comunhões separadas –favoreçam uns aos outros de forma positiva e sem problemas.
Seria agradável pensar que um passo em direção a um grupo separado de cristãos nunca significasse um passo para longe de um outro, mas a freqüência com que esta piedosa reivindicação é repetida não faz com que ela se torne mais plausível. A questão da ordenação de mulheres, tomando um exemplo particularmente claro, é evidentemente um tópico que nos aproximaria do mundo protestante, e que nos afastaria dos ortodoxos como um todo – e vice-versa.
Isto me leva à terceira razão para defender a relação ecumênica com os ortodoxos: suas vantagens práticas. Atualmente, a Igreja católica, em muitas partes do mundo, está passando por uma das crises mais sérias de sua história, uma crise que é o resultado de um encontro desorientador com a cultura secularista e agravado por uma perda do discernimento cristão por parte de muitas pessoas durante os últimos vinte e cinco anos – desde a mais alta hierarquia até o fiel comum.
Esta crise abrange muitos aspectos da vida da Igreja, mas, principalmente a teologia e a catequese, a liturgia e a espiritualidade, a vida religiosa e a ética cristã em geral. Em todas estas áreas, ou ao menos na maioria delas, os ortodoxos possuem uma boa postura capaz de estabilizar o catolicismo.
Se nós nos perguntássemos, numa abordagem simplesmente empírica e fenomenológica, como é a Igreja ortodoxa, nós poderíamos descrevê-la como uma Igreja dogmática, litúrgica, contemplativa e monástica – fornecendo, em todos estes aspectos, um contrapeso útil, capaz de equilibrar certas características do atual catolicismo ocidental.
Assim, em primeiro lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja dogmática. Ela vive da plenitude da verdade impressa pelo Espírito nas mentes dos apóstolos no primeiro Pentecostes, uma plenitude que transformou a percepção dos apóstolos e que tornou possível o tipo de pensamento especificamente cristão que chamamos de pensamento dogmático.
A Trindade Santa, o Deus-homem, a Mãe de Deus e os santos, a Igreja como o mistério do Reino expresso em uma vida comum na terra, os sacramentos como meios para a deificação da humanidade – nossa participação na vida incriada do próprio Deus – estas são as verdades entre as quais os ortodoxos vivem, se movem e têm seu ser.
A teologia ortodoxa, em todas suas formas, é um chamado à renovação de nossas mentes em Cristo, tal renovação não tem como regra a pura razão ou a cultura secular, mas na pregação apostólica atestada pelos Santos Padres, em conformidade com os principais dogmas de fé que foram resumidos nos concílios ecumênicos da Igreja [1].
A Igreja ortodoxa é uma Igreja litúrgica*
Em segundo lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja litúrgica. É uma Igreja que recebe da liturgia toda uma atmosfera expressa em poesia, música e iconografia, texto e gestualidade, e o traço característico desta vida litúrgica não é a capacidade de a liturgia expressar as preocupações contemporâneas (por legítimas que sejam tais preocupações em seu próprio contexto), mas, para ser bem claro, seu traço característico é a capacidade de a liturgia agir como um veículo do Reino: ela é nossa entrada antecipada, aqui e agora, na vida divina.
Igreja ortodoxa é uma Igreja contemplativa*
Em terceiro lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja contemplativa. Embora certamente não ignore os chamados à atividade missionária e à caridade prática, essenciais ao evangelho e à comunidade do evangelho como tais, a Igreja ortodoxa põe ênfase na vida de oração como condição absolutamente necessária de todo cristianismo que mereça este nome.
Na tradição dos Padres do deserto, e da maioria dos grandes teólogos místicos, como os Padres capadócios, São Maximo Confessor e São Gregório Palamas, tal como seu pensamento está contido na Filocalia (a antologia da espiritualidade cristã oriental), os ortodoxos dão testemunho da primazia daquele que o próprio Salvador chamou de primeiro e maior mandamento: amar ao Senhor Deus com todo o coração, alma, mente e força. É com a luz deste mandamento – com seu apelo a um processo teocêntrico de conversão e santificação pessoal em Deus – que os nossos esforços por viver o mandamento correlativo de amar o próximo e a nós mesmos devem ser guiados.
Igreja ortodoxa é uma Igreja monástica*
Em quarto lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja monástica, uma Igreja com um coração monástico onde os monastérios fornecem os padres espirituais de bispos, os conselheiros dos leigos e o exemplo de radicalidade cristã. Uma Igreja sem um monaquismo florescente, sem o “martírio vivo” de um asceticismo inspirado pelo mistério pascal da cruz do Senhor e pela ressurreição, dificilmente seria uma Igreja de acordo com o pensamento do Cristo dos evangelhos, pois o monaquismo, dentre todos os modos de vida dos cristãos, é o que mais claramente, e publicamente, tudo abandona por causa do Reino.
Para falar de forma prática, a volta desta Igreja dogmática, litúrgica, contemplativa e monástica à unidade católica, só poderia ter o efeito de estabilizar e fortalecer esses aspectos do catolicismo ocidental que hoje estão mais ameaçados pelo securalismo e pelo liberalismo teológico corrosivos.
II.
Volto agora à verdadeira origem do cisma de um ponto de vista católico, juntamente com um relato – necessariamente resumido e simples – dos quatro “pontos históricos divergentes”: as questões disputadas, que os historiadores mostraram ter preocupado muito os orientais, quando olham para o desenvolvimento da Igreja latina, e que constituiu a pauta das discussões dos concílios de Lyon II, em 1274 e Florença em 1439.
Este é, sem dúvida, um assunto enorme e que requereria um relato da maior parte da história da Igreja no primeiro milênio para ser bem desenvolvido. Aqui eu só posso dar uma indicação breve e indicar aos interessados em maiores detalhes históricos – e certamente o fascinante material disponível não falta – a minha obra Roma e as Igrejas Orientais: Um Estudo do Cisma [2].
O desenvolvimento do cisma entre o oriente grego e o ocidente latino foi provocado, essencialmente, por três fatores. O primeiro destes é a distância cultural crescente, e assim o estranhamento, a suspeita e, eventualmente, a hostilidade que contrapôs, um contra o outro, os bizantinos e os latinos da bacia mediterrânea, assim como áreas da Europa distantes umas das outras – especialmente a Rússia por um lado, e o mundo germânico no outro, evangelizadas, como foram, respectivamente, pelas Igrejas mães grega romana.
Já que um idioma comum, uma organização política comum, uma estrutura social comum, e um universo teológico comum, no final da patrística e no início do período medieval, se tornaram coisa do passado, os cristãos orientais e ocidentais deixaram de se sentir partes de uma comunidade – e isto encontrou uma brutal expressão no saque de Constantinopla pelo exército cruzado, em 1204.
O segundo fator principal que contribuiu para o cisma foi a rivalidade entre os imperadores bizantinos e os papas romanos, considerados como dirigentes da comunidade cristã, responsáveis pela sua direção global e para o ajuste de seus problemas organizacionais ou conflitos internos. Constantino, o Grande, não somente herdou a ideologia imperial dos governantes da res publica romana, mas também permitiu – talvez encorajou – a transformação desta ideologia em uma amadurecida teologia imperial, por meio de figuras como Eusébio de Cesaréia [3].
O imperador cristão, embora não pretendesse ter o poder de determinar os dogmas, reivindicou um direito global de supervisão da vida pública e externa das igrejas. Mas esta era exatamente a posição que os ocidentais desejavam dar ao Papa, apoiando-se na teologia em desenvolvimento do único ministério “petrino” do bispo de Roma. No primeiro milênio, de uma forma geral, não havia acordo eclesiológico sobre o primado de Roma. Encontra-se, seja latinos que tomaram uma visão minimalista, seja gregos que tomaram uma visão maximalista.
Mas, em geral, é claro que os ocidentais vieram a favorecer uma alta teologia da Igreja e do bispo de Roma, enquanto os orientais olhavam tal doutrina teológica com um mau pressentimento, vendo-o como um afastamento do ethos da Pentarquia (a idéia da concórdia necessária dos cinco patriarcados de Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém – que, ao menos, por volta do oitavo século deveria ser tida como a visão bizantina normal do que comportava especificamente o poder episcopal).
O terceiro e último fator no desenvolvimento das tensões em um verdadeiro cisma foi o aparecimento das quatro questões disputadas que serviram como lentes que concentraram o calor emitido nestas tensões crônicas ou estruturais, até que ele se tornasse explosivo.
Seguindo a ordem do seu aparecimento histórico, os tópicos ou questões são: o Filioque, a natureza do primado romano, o uso de pães ázimos ou não fermentados na missa ocidental, e a doutrina do purgatório, especialmente a representação de o estágio intermediário ser um fogo purificador.
Em todos estes pontos (até mesmo o dos ázimos que poderia ser considerado um assunto singularmente improdutivo ou pelo menos periférico para o pensamento cristão) idéias teológicas de grande interesse foram levadas à frente por ambos os lados, embora hoje, provavelmente, só o Filioque e a questão do primado sejam consideradas como “pontos de divisão”.
Com relação ao Filioque – a processão do Espírito Santo, conforme a versão latina emendada do credo niceno-constantinopolitano, não somente do Pai, mas também do Filho –, creio eu que, se pudéssemos contar com um mínimo de boa vontade, nós seríamos capazes, sem dano para a integridade doutrinal de nossas duas comunhões, solucionar este questão técnica de teologia trinitária: técnica, mas também crucial para nossa forma de ver o Espírito em sua relação com o Filho, e assim como as suas respectivas economias relacionadas com nossas vidas. O problema do primado romano é menos facilmente resolvido, e eu retornarei a ele ao final de minha exposição.
Isto nos basta – muito esquematicamente, e inadequadamente – no que tange à gênese histórica do cisma e seus quatro pontos de conflagração doutrinal, a ação dos três fatores (o estranhamento cultural mútuo, as expectativas contraditórias sobre os papéis do imperador e do papa, e as questões teológicas especificamente) significou que, por volta de 1450, a igreja bizantina, rejeitando a união florentina de 1439, definitivamente rompeu a comunhão com a sé romana, situação esta que foi gradualmente se estendendo de um modo bastante desigual para o resto do mundo ortodoxo no decorrer dos séculos XVI e XVII, havendo alguns exemplos de communicatio in sacris – por exemplo, do costume do clero latino, principalmente jesuítas, de pregar e ouvir as confissões dos fiéis ortodoxos gregos – em alguns lugares, em data tão recente quanto a primeira metade do século XVIII.
III.
Passo agora à terceira parte de meu artigo que concerne à situação atual das relações católico-ortodoxas. Depois de uma fase preparatória de contatos iniciais, conhecida como o “diálogo da caridade”, o diálogo teológico católico-ortodoxo foi oficialmente estabelecido em 1979, com a “declaração comum” feita pelo Patriarca Ecumênico Dimítrio I e pelo Papa João Paulo II na conclusão da visita ao Fanar, a sede patriarcal em Istambul, em novembro daquele ano.
Neste contexto, a situação entre ortodoxos e católicos era em certos aspectos mais otimista do que, por assim dizer, no tempo do concílio de Florença, mas, em outros aspectos, ela era menos promissora. Era mais promissora por causa da participação dos ortodoxos no Movimento Ecumênico desde a década 1920, que levou a que se acostumassem à idéia de trabalhar para unidade cristã – embora uma minoria forte e barulhenta sempre tenha expressado reservas para com esta política como que para confirmar o que os católicos chamariam de “indiferentismo”.
Se em suas origens, o Movimento Ecumênico era uma idéia principalmente pan-protestante, a entrada dos ortodoxos em seus objetivos pressionou o movimento, contudo, em uma direção que tornou possível para a Igreja católica o seu ingresso, quase quarenta anos depois, na véspera do Concílio Vaticano II. Os ortodoxos tiveram este efeito saudável no qual a sua voz – combinada com a dos anglicanos de mentalidade neo-patrística (então um grupo mais numeroso do que hoje) – conseguiu dispersar a sensação de que o ecumenismo seria basicamente um movimento que preparava para uma união de cristãos puramente moral e sentimental – ao invés uma união doutrinal e sacramental.
Assim, por meio destas linhas gerais, as igrejas ortodoxas funcionaram de forma construtiva dentro do Movimento Ecumênico até os anos 80, embora ainda não se possa dizer se elas poderão continuar fazendo o mesmo no futuro no contexto do Conselho Mundial de Igrejas – considerando que este conselho foi capturado por um programa de trabalho bastante secular.
A este luminoso relato sobre o ecumenismo ortodoxo deve ser anexado um caveat importante. É possível superestimar o componente teológico do papel de Ortodoxia no Movimento Ecumênico do século XX, se negligenciarmos o fato que o desejo de muitos ortodoxos de uma maior interação com comunhões ocidentais era em parte um desejo pragmático e até mesmo político.
Com o colapso da Rússia tsarista em 1917, não havia mais o poderoso protetor das igrejas ortodoxas, e comunidades ortodoxas em estados hostis como a Rússia bolchevique ou a Turquia kemalista, ou em estados ortodoxos confessionais relativamente fracos como a Bulgária e Grécia, precisavam do apoio de uma consciência política cristã que ainda sobrevivia nas grandes potências da primeira metade deste século como a Inglaterra e os Estados Unidos.
Esta precaução realista sobre os motivos de algum ecumenismo ortodoxo me leva às características menos esperançosas do que a situação que cercou a abertura de diálogo oficial no início dos anos 80.
No mais de quinhentos anos de falência da união florentina, ortodoxos e católicos tiveram tempo para ensaiar ainda mais polêmicas um contra o outro, desgastar as imagens um do outro, e também acrescentar (especialmente do lado ortodoxo) novas questões de controvérsia doutrinal embora em um caso, a definição em 1870 da jurisdição universal e infalibilidade doutrinal do bispo de Roma, a consternação dos ortodoxos fosse, é claro, completamente previsível, como fora indicado por vários bispos católicos orientais no Concílio Vaticano I.
Nós achamos pensadores ortodoxos tão influentes como, por exemplo, o teólogo grego leigo João Romanides que ataca a doutrina ocidental do pecado original como herética, fazendo o dogma latino mariano da imaculada conceição – a justificação original de Maria – supérfluo, senão absurdo. Ou novamente, e este poderia ser um ponto que ocupou os responsáveis pelo diálogo oficial dos últimos quinze anos, algum ortodoxo gostaria agora de considerar a prática pastoral através da qual muitas igrejas locais no ocidente latino adiam a confirmação (ou crismação) de crianças até depois da sua primeira santa comunhão como baseada em um grave erro de apreciação da doutrina sacramental.
Porém, nada disto impediu a Comissão Internacional Comum para o Diálogo Teológico entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa – para usar o seu título prolixo – de produzir vários (três, para ser preciso) documentos muito úteis para uma compreensão comum (na Grande Igreja da qual a ortodoxia e o catolicismo são as duas expressões) do mistério da própria Igreja, em sua estrutura sacramental e especialmente eucarística, visto em relação com o mistério do Deus unitrino, a realidade fundamental de nossa fé. Estas declarações são conhecidas pelo lugar e data de sua origem: Munique 1982, Bari 1987, e Válamo (na Finlândia) 1988 [4].
Uma sombra lançada mais recentemente, era em 1979 apenas uma nuvem no horizonte, uma nuvem, como nos confrontos de Elias com Acab no Primeiro Livro de Reis, não maior que a mão de um homem. E esta é a ameaça feita ao diálogo pelo revigoramento das igrejas uniatas então suprimidas pelos comunistas, ou seja, as igrejas católicas orientais, especialmente as da Ucrânia e da Transilvânia, durante o final dos anos 80 e da década de 90.
A existência de comunidades de rito bizantino em união com a Santa Sé já era um importante incômodo para os ortodoxos, apesar de algumas destas comunidades, por exemplo na Itália Meridional e Sicília, terem gozado de uma história sem ruptura de união e não tenham sido de forma alguma resultado de proselitismo ou trapaça política.
O que os ortodoxos bastante natural e justamente objetam é o uniatismo como método de separar dioceses ortodoxas e paróquias de suas igrejas mães com o princípio de divide et impera. Nem todas as uniões parciais com os ortodoxos bizantinos podem ser julgadas historicamente sob este título, pois algumas, como uma união com parte do patriarcado antioqueno que produziu a atual igreja melquita, é principalmente o resultado da iniciativa oriental, e não ocidental.
É certamente uma das ironias da história da Igreja que o mesmo Papa (João Paulo II) que conduziu o início do diálogo católico-ortodoxo seja também o Papa que protagonizou a destruição do comunismo. O fim da hegemonia marxista-leninista, a desintegração interna da União soviética, as rebeliões emuladas contra a nomenklatura nacional comunista em países como a Romênia, fez com que fosse possível o re-aparecimento de igrejas católicas orientais, outrora violentamente re-unificadas com as ortodoxas pelo Comintern de Stalin nas repercussões do pós-guerra.
O processo foi suficiente para colocar em dificuldade o projeto de reunião católico-ortodoxa que é a grande meta da política eclesiástica, enquanto distinta da política meramente pública, mais querida ao coração deste eslavo extraordinário que é bispo de Roma.
Assim em junho de 1990, na reunião plenária da Comissão em Freising na Baviera, os ortodoxos recusaram continuar com o programa de trabalho oficial discutindo “Conciliaridade e autoridade: as conseqüências eclesiológicas e canônicas da estrutura sacramental da Igreja” até que um documento possa ser redigido sobre as igrejas católicas de rito bizantino, um documento que foi depois produzido em Balamand no Líbano em 1993 e que, lamentavelmente, tanto não satisfez muitos ortodoxos, como ainda enfureceu muitos católicos orientais [5].
Adicione o texto do seu título aqui
Isto me traz à quarta e última seção de minha “visão de conjunto” onde, como mencionei no início, irei individuar um aspecto negativo da ortodoxia para fazer um comentário, assim espero, caridoso e pacífico de como, em minha opinião, os ortodoxos necessitam da comunhão católica da mesma forma que – por razões bastante diferentes já esboçadas – os católicos precisam (neste momento histórico, sobretudo) da igreja ortodoxa.
A animosidade, na verdade a fúria mal-disfarçada, com que muitos ortodoxos reagem ao tema do uniatismo quase não tem explicação. A não ser em termos de um difundido e não prontamente defensável sentimento ortodoxo sobre a relação entre a nação e a Igreja.
Na verdade, deve haver algum fator de psicologia social ou ideologia incorporada que complicam este tema. Tenha-se em mente que os ortodoxos não tiveram dificuldade alguma neste século de criar formas de ortodoxia de rito ocidental, como por exemplo, na França debaixo da égide do patriarcado romeno ou, mais recentemente, nos Estados Unidos debaixo da jurisdição de um exarca do patriarca de Antioquia. E o que são estas entidades se não uniatismo ortodoxo – contra o qual a Igreja católica, porém, não fez alguma objeção.
Nem as igrejas não-calcedonianas como os assírios (no Iraque e Irã), o jacobitas (na Síria) ou os cristãos siro-malabares de sul da Índia, reagem deste modo diante da idéia de que algumas das suas comunidades possam estar em paz e comunhão com a irmã mais velha Roma. Uma exceção parcial – e significativa – entre tais igrejas ortodoxas não-calcedonianas são os copta do Egito – justamente por causa da noção de que o patriarca copta é pai de toda nação copta. Em outras palavras, entrou aqui o que nós podemos chamar um fator político – dando à palavra “político” seu possível significado mais largo.
É o vínculo íntimo entre Igreja e consciência nacional, consciência patriótica que faz o uniatismo tão absolutamente inaceitável em tais países como a Grécia e Romênia e é este fenômeno de nacionalismo ortodoxo que eu acho a característica menos atraente da ortodoxia hoje.
Um exemplo extremo é a filo difundida na Igreja de Sérvia que passa pelo nome de São Sava, rei sérvio da idade média – conseqüentemente Svetosavlje, “São-Sava-nismo”. Esta criação do famoso bispo Nikolay Velimirovich, que morreu em 1956, argumenta que o povo sérvio é, pela sua história de martírio, uma nação eleita, até mesmo entre os ortodoxos, portadora sem igual de sofrimento salvífico, um povo incomparavelmente santo, em contraposição especialmente aos seus vizinhos ocidentais que são apenas pseudocristãos, que crêem na humanidade sem divindade [6].
E se as origens de tais atitudes ortodoxas se encontram nas tentativas de nacionalistas do século dezenove de mobilizar o potencial político dos camponeses ortodoxos contra os governantes islâmicos e católicos, que eu não vacilaria em chamar de profundamente não cristãs, estas forças podem contrariar até mesmo os interesses da ortodoxia – como nós estamos vendo hoje na embaraçosa campanha no Sagrado Monte Athos de desalojar os monges não-gregos e desencorajar os peregrinos não-gregos, totalmente contra o espírito da república monástica atonita que, historicamente, é um testemunho vivo da inter-racialidade ortodoxa, internacionalismo ortodoxo.
Para uma mente católica, a Igreja de Pentecostes é uma Igreja de todas as nações no sentido de ecclesia ex gentibus, uma Igreja tomada de todas as nações e reunida – é claro que também com seus próprios talentos espirituais e humanos – em uma comunidade universal à imagem da divina Triunidade onde a diferença entre o Pai, Filho e Espírito somente serve às suas relações de comunhão.
A Igreja de Pentecostes não é uma ecclesia in gentibus, uma Igreja distribuída entre as nações, no sentido de dividida entre elas, se acomodando completamente às suas estruturas, e deixando o seu sentido de identidade autônoma imperturbado.
Falando como alguém que cresceu em uma Igreja nacional, a Igreja da Inglaterra, embora eu seja feliz por me considerar perfeitamente inglês, eu também considero como uma bênção da catolicidade me sentir livre do particularismo, na vida mais espaçosa de uma Igreja que cresceu para ser um sinal para todas as nações, uma Igreja onde toda raça, cor e cultura podem se sentir em casa, na casa do Pai.
É nesta perspectiva final que se deveria considerar o papel do bispo de Roma como um “primado universal” no serviço da comunhão global das igrejas. Um dos mais amados títulos do bispo de Roma para o ocidente medieval era o de papa universalis, e enquanto não se possa nem se deva resumir todos os aspectos de eclesiologia latina no período da alta Idade Média, para um cristão católico a comunhão universal das igrejas locais em sua variedade múltipla precisa de um pai no Papa, da mesma maneira que como a própria igreja local, com suas congregações variadas, ministérios e atividades, precisa de um pai na pessoa do bispo.
É dito freqüentemente que tal uma eclesiologia do serviço papal é irremediavelmente ocidental e latina, e incapaz de tradução em condições orientais. Eu acredito que tal declaração é injusta. Da mesma maneira que um patriarca, como um primaz regional, é responsável pelo funcionamento devido das igrejas locais de sua região, sob o seu governo episcopal, assim um primado universal é responsável pelo funcionamento da ordem e das obrigações de todo o episcopado, e assim para todas as igrejas em uma escala mundial.
Nem é necessário dizer: este serviço serve para a construção, não para a destruição, de toda ordem episcopal, fundada em última instância no testamento do desejo do Redentor, ao estabelecer a missão apostólica, e mais tarde depurada pela Tradição na instituição de patriarcados e outros primados nesta ou naquela porção do todo eclesial. Mas, ao mesmo tempo, se o ministério de um bispo primaz verdadeiramente é satisfazer as necessidades da Igreja universal, isso o levará, às vezes, a ter de tomar decisões que são duras ou impopulares em algumas comunidades locais.
Para que as Igrejas ortodoxas e católicas se tornem uma só, algumas reformas da estrutura do primado romano seriam não menos necessárias, especialmente no nível da cúria romana. A congregação para as Igrejas Orientais se tornaria um secretariado no serviço dos apocrisários permanentes (enviados) dos patriarcas e outros primazes.
A grande maioria dos outros dicastérios seria redefinida como órgãos do patriarca ocidental, ao invés do sumo pontífice. E tal primazia não seria meramente um carimbar com o selo da cúria romana as decisões das igrejas locais ou regionais, para que estas tivessem valor; isso pareceria algo pouco realístico.
Assim o Papa, como primaz universal, precisaria manter: primeiro, um órgão doutrinal para a coordenação do ensinamento da Igreja, e, em segundo lugar, algum tipo de “secretariado apostólico”, substituindo a presente mal-nomeada “Secretaria de Estado”, para uma harmonização dos princípios de ação pastoral. A tudo isso, pode-se acrescentar, em terceiro lugar, algum dos “novos organismos curiais” que lidam com os que estão fora da casa de fé que se possa julgar como útil, e finalmente, um permanente “Conselho para os Negócios Públicos da Igreja”, para a defesa da liberdade das igrejas (e dos direitos humanos) diante do poder Estatal.
A utilidade do quarto destes itens para os Ortodoxos é óbvia. Para o restante (dos quais somente os dois primeiros são de importância crucial), eles só deveriam funcionar nas raras ocasiões de “crise de administração” como instrumentos de ação papal nas igrejas orientais. Normalmente, eles deveriam funcionar, na verdade, como canais por meio dos quais os impulsos das igrejas orientais – impulsos dogmáticos, litúrgicos, contemplativos, monásticos – que poderiam atingir, através do papa, de forma mais abrangente, a Igreja e mundo.
Para este propósito os apocrisários dos patriarcas, juntamente com os prefeitos dos dicastérios ocidentais, precisariam constituir seus comitês administrativos, sob a presidência papal. Isso aconteceria sem a necessidade de se dizer que as igrejas orientais desfrutariam naturalmente de total paridade com a igreja latina por todo o mundo, e não simplesmente em suas pátrias – que é a prática católica atual [7].
Os ortodoxos têm que perguntar a si mesmos (como já o fazem!) se tais instrumentos de comunhão universal (que limitam e libertam) talvez não valham a pena. Ou os prazeres da particularidade têm que vir primeiro?
Notas
- Cf. A. Nichols, O. P., Light from the East. Authors and Themes in Orthodox Theology (London 1995).
- Rome and the Eastern Churches. A Study in Schism (Edinburgh 1992).
- J.-M. Sansterre, ‘Eusebe de Césarée et la naissance de la théorie “cesaropapiste”‘, Byzantion 42 (1972), pp. 131-195; 532-594.
- Convenientemente coligidos em P. McPartlan (ed.), One in 2000? Towards Catholic-Orthodox Unity (Middlegreen, Slough, 1993).
- Publicado em inglês in One in Christ XXX 1 (1994), pp. 74-82.
- Cf. T. Bremer, Ekklesiale Struktur and Ekklesiologie in der Serbischen Orthodoxen Kirche im 19. and 20. Jahrhundert (Würzburg 1992).
- Uma causa justificável de ira entre os católicos orientais de hoje: cf. T. E. Bird, ‘The Vatican Decree on the Eastern Catholic Churches Thirty Years Later’, Sophia 21, 4 (1994), pp. 23-29.
