Primado ou hegemonia?
A história de uma separação
Quando, em 7 de dezembro de 1965, na conclusão do Concílio Vaticano II, latinos e gregos “apagaram da memória” a excomunhão recíproca de 1054, essa data, de mais de nove séculos antes, tornou-se seguramente mais popular. Com certeza mais do que era na época dos fatos.
Se nos ativermos às fontes, como ensina o bom método histórico, o primeiro dado que impressionará é que “o cisma de 1054 é totalmente ignorado pela historiografia bizantina contemporânea”, como lembram todos os autores, citando a Storia dell’Impero Bizantino, de Georg Ostrogorsky (p. 293), referência até hoje no Ocidente também. Essa data constituiu e constitui um marco da historiografia para apenas uma parte determinada da cristandade. Não por acaso, foi escolhida para abrir o quinto volume de um dos maiores trabalhos historiográficos “francos” dos últimos anos, a Histoire du christianismeRda Desclée (já traduzida nas principais línguas), significativamente dedicado ao Apogée de la papauté et de l’expansion de la chrétienté (1054-1274), enquanto que, ao invés, essa data “não marca uma ruptura na história geral da Igreja Bizantina” (Ostrogorsky, op. cit., p. 16).
Não será inoportuno, portanto, concentrar a atenção também nas interpretações, além das fontes. Nunca, como nesse caso, foi preciso recorrer também aos intérpretes, e não apenas aos fatos, para compreender. Pois, nessa história de separação, “os fatos podem ser enfatizados num sentido ou em outro”, adverte Giorgio Fedalto, um dos historiadores que tem grande experiência nessa questão (Le Chiese d’Oriente, vol. I, p. 112).
Os fatos:
Comecemos dos fatos. Sem nenhuma ênfase.
O ano de 1054 é o último do frágil governo de Constantino IX, esposo de Zoé, última representante da dinastia macedônica, ao lado da irmã, Teodora. Com essa dinastia (cuja história foi narrada apaixonadamente por Léon Bloy, em Constantinople et Byzance, de 1917, na vigília do fim de todos os Impérios), o Império bizantino havia atingido o seu apogeu, mas já se encontrava a caminho do ocaso após a morte do grande Basílio II (†1025). Esse não é um dado qualquer. Como também não é um dado qualquer o fato de que essa poderosa dinastia, por mais de um século e meio, manteve relações até amigáveis com Roma. “Não foi, contrariamente ao que é comum se pensar, o ‘cesaropapismo’ bizantino que provocou a ruptura. […] Foi uma combinação peculiar de fatores, que fez com que, a um papado forte e alheio a qualquer compromisso, se opusesse um patriarcado igualmente forte, particularmente consciente da própria dignidade, mas apoiado num Império fraco” (Ostrogorsky, op. cit., pp. 305-306).
O ajuste de contas começa na periferia, na Itália meridional, havia séculos objeto das contrapostas pretensões jurisdicionais tanto do patriarcado romano quanto do constantinopolitano. Gastaríamos muito tempo repercorrer essa história. Basta dizer que, a partir dos primeiros anos do século XI, “o cruzamento da política pontifícia com os interesses dos normandos e do imperador alemão sobre a Itália meridional provoca uma situação nova nessa região”, escreve o grande bizantinista Hans-Georg Beck na Storia della Chiesa, organizada por Hubert Jedin (vol. IV, p. 533). De fato, suscitava indignação em Bizâncio o apoio dado por Roma não apenas aos normandos, instalados entre a Pulha e a Campânia às custas dos bizantinos, mas também à insurreição irredentista do grego latinizado Meles, em Bari. Por coincidência, justamente naqueles anos, em Constantinopla, começa-se a não mais mencionar o papa na liturgia e, do lado ocidental, só nessa época (1014) é que o Filioque é introduzido na liturgia romana. E não antes, como demonstrou Vittorio Peri, com perícia de filólogo, em vários ensaios hoje reunidos no segundo dos dois impecáveis volumes Da Oriente e da Occidente. Le Chiese cristiane dall’Impero romano all’Europa moderna, Roma-Pádua, Editora Antenore, 2002).
No momento do cisma, porém, as circunstâncias pareciam ser mais favoráveis a um encontro que a um conflito. Com efeito, por volta da metade do século XI, planejava-se uma operação antinormanda, fruto de um entendimento entre bizantinos, alemães e latinos no qual trabalhara Argiro de Bari, filho do Meles acima citado. O papado reformador pretendia livrar-se também do peso da proteção dos normandos. Mas o projeto havia sido feito não apenas sem estes, mas também sem Miguel Cerulário, o patriarca constantinopolitano cuja “personalidade impetuosa, para não dizer revolucionária, representa uma exceção na história dos patriarcas bizantinos” (Storia della Chiesa, organizada por Jedin, vol. IV, pp. 533-534). Para impedir o entendimento, Cerulário pôs em prática uma ação de ruptura, fechando os mosteiros e as igrejas latinas em Constantinopla, e entregando a propaganda antilatina a Leão, um funcionário do Palácio constantinopolitano elevado ao arcebispado búlgaro de Ócrida (contrariando sua tradição, a Igreja bizantina agia também num sentido centralizador naquele momento).
O encarregado da resposta, em Roma, foi Humberto de Silvacândida, que a redigiu reprovando mais de noventa erros dos gregos. Silvacândida é um revolucionário também, num palatium lateranense que Leão IX começa a transformar em curia (ou seja, corte): como escreve Edith Pásztor, que estudou especificamente essa questão em vários ensaios publicados em Onus Apostolicae Sedis. Cúria Romana e cardinalato nei secoli XI-XV, não fazem parte formalmente da corte “os verdadeiros grandes realizadores da reforma” (p. 12), como Humberto, cuja participação “acontece já claramente acima das estruturas do palatium” (pp. 12-13). Os organismos tradicionais são esvaziados de significado. Humberto, proveniente do mesmo âmbito reformador de Leão IX e nomeado por ele para a sede suburbicária de Silvacândida, não fora inserido nos quadros do palatium mediante a nomeação a bibliotecário (ou seja, Secretário de Estado). “Apesar disso, recebe um papel de primeiro plano na política de Leão IX e na preparação de vários atos e cartas oficiais. É a primeira vez que um bispo suburbicário participa ativamente dos negócios da Igreja Romana sem ter o cargo de bibliotecário” (p. 11). A forma das coisas nunca é indiferente.
Tanto que o papa Leão IX, assumindo um papel de general que não lhe competia, arma um exército e toma pessoalmente a direção da operação contra os normandos na Pulha, sendo derrotado e aprisionado em junho de 1053.
Esse enfraquecimento do papado reforçava as razões para um entendimento entre bizantinos e latinos. Assim, em janeiro de 1054, a delegação papal liderada por Humberto de Silvacândida é enviada a Constantinopla para retomar o fio da meada dos acordos e é acolhida com honras pelo imperador. Os diplomatas, porém, negligenciando o fato de que também acontecia uma revolução em Bizâncio, enganam-se ao considerar o imperador o interlocutor maior. Assim, o patriarca é ofuscado. E Humberto também. Desencadeia-se a controvérsia dialética. Humberto manda traduzir em grego a sua resposta anterior, polêmica, e entra numa disputa deplorável, tachando de heresia, na própria casa dos gregos, muitos de seus costumes, legítimos, embora diferentes dos da tradição latina. O conflito termina em 16 de julho de 1054, quando se depõe sobre o altar de Santa a bula de excomunhão contra o patriarca Cerulário e seus seguidores. Este, convocando o sínodo alguns dias depois, responde com a excomunhão contra os latinos. Assim, “o encontro, que deveria sancionar um acordo, tornou-se causa de um atrito maior” (Fedalto, Le Chiese d’Oriente, vol. I, p. 113).
Mesmo com tudo isso, não se estava diante de nada realmente novo. Apenas se aguçavam as divergências, causadas, entre outras coisas, não por dois homens apegados demais à suas respectivas tradições, mas por dois revolucionários. O jesuíta Wilhelm de Vries, falecido em 1997, depois de dedicar toda a sua longuíssima vida a manter vivo o diálogo com o Oriente, chegou a dizer há alguns anos (uma coisa que infelizmente continua a ser válida, na nossa opinião) que, “propriamente falando, a ortodoxia e o catolicismo estão hoje mais distantes um do outro do que naquela época, em meados do século XI” (Ortodossia e cattolicesimo, p. 75).
O que fez com que essa situação se precipitasse?
Aquilo que aconteceu logo depois.
As cruzadas
As duas décadas que se seguiram ao ano de 1054 foram muito amargas para o Império Bizantino. Não é apenas a histoire bataille que reconhece na derrota de Mazinkert para os turcos e na perda de Bari, último baluarte bizantino na península italiana tomado pelos normandos, ambos acontecimentos de 1071, dois episódios sintomáticos, nas extremidades do Império, de uma retração geral. Com efeito, no Oriente, por obra dos turcos, o Império perde definitivamente a Armênia, a Capadócia, a Cilícia e a Ásia Menor. A reconquista da Sicília por parte de Rugero, o Normando, e a independência do Montenegro e da Croácia privam Bizâncio de seus últimos pontos de força no Ocidente.
Ainda que essa derrota, no Ocidente, aconteça sob a alta proteção de Gregório VII aos movimentos nacionalistas – se podemos chamá-los assim -, é a ele que o novo imperador bizantino pede ajuda para o Oriente. Gregório menciona esse apelo numa carta de 1074: “Os cristãos de além-mar, que são massacrados pelos pagãos de uma forma como nunca se ouviu falar e mortos todos os dias como animais, vendo o povo cristão ser reduzido a nada e impelidos por condições realmente miseráveis, dirigiram-se a mim humildemente, implorando que eu socorra de alguma forma esses nossos irmãos, a fim de que não desapareça – nunca! – a religião cristã no nosso tempo”.
Ao menos idealmente, uma vez que Gregório não é capaz de pôr em prática o seu projeto, a acolhida desse apelo parece ser o verdadeiro início das cruzadas, esse movimento armado que se realiza não mais atrás do impulso do imperador cristão, mas do papa: a mim, escreve o Papa, é dirigida a súplica, para que eu socorra os nossos irmãos. Por outro lado, Gregório, na mesma carta, diz-se movido a essa empreitada também pelo fato de que a Igreja de Constantinopla “concordiam apostolicae sedis exspectat”. Um sonho parecia estar a um passo de se tornar realidade: a cristandade reunida sob um único chefe, que era ao mesmo tempo o único pastor. Um sonho cultivado desde a época dos carolíngios, quando a deriva que estes impuseram afastou os latinos dos gregos. De fato, se do século VIII ao século XI cresceu a separação, não apenas política, entre o Ocidente e o Oriente cristão, foi justamente por causa dos carolíngios, com o seu encastelamento numa doutrina de imagens destoantes da doutrina estabelecida no segundo Concílio de Nicéia e no Filioque. “Não se costuma falar o bastante do cisma entre a Igreja carolíngia e a Igreja de Roma e os patriarcados da Igreja bizantina ainda em comunhão com Roma, que se realizou entre os séculos VIII e XI”, escreve secamente Vittorio Peri (Da Oriente e da Occidenteö p. 738). “O início do cisma milenar entre o Ocidente e o Oriente encontra sua gênese histórica justamente nesse cisma entre a Igreja carolíngia e a Igreja grega do Oriente, não compartilhado, na época, pela Igreja romana” (id., ibid., p. 742).
Voltamos ao final do século XI, quando, superando qualquer cisma, o anseio de levar ajuda aos irmãos do Oriente e de libertar o Santo Sepulcro foi de tal forma irresistível que, em julho de 1099, Jerusalém seria libertada.
As expressões de entusiasmo e de religiosidade daqueles anos, porém, já “não podem ser entendidas segundo critérios históricos posteriores, mesmo poucos séculos depois da empreitada”, adverte Fedalto, argutamente, pois, de um lado, a libertação do Santo Sepulcro foi acompanhada da ocupação de terras e da formação de principados (cf. Fedalto, La Chiesa latina in Oriente, vol. I, p. 82); de outro, a reforma gregoriana estava manifestando seus efeitos. “Pode-se afirmar sem medo de errar que a cruzada não teria sido possível sem toda aquela preparação que recebe o nome de reforma gregoriana, e que encontrou em Gregório VII o expoente de maior relevo. É verdade que a reforma visava em primeiro lugar a uma reavaliação espiritual da Igreja, com a conseqüente correção dos abusos e o restabelecimento da autoridade pontifícia e episcopal; todavia, o fenômeno de centralização papal que a reforma comportou teve como conseqüência conferir uma dinâmica muito mais expressiva a qualquer decisão, inclusive as decisões voltadas à ordem civil. O papa certamente não concebia a Igreja como desencarnada da realidade temporal; se nos salvamos na história, é justamente a história que deve ser salva e redimida pelo cristão. Sem uma intervenção nos negócios temporais, fica-se à mercê dos inimigos” (id., ibid., pp. 76-77).
O infeliz desvio que levaria à ocupação de Bizâncio, em 1204, pelos venezianos e pelos francos (nome dado a todos os ocidentais, no jargão bizantino), e, a posteriori, a usar o cisma como justificativa dessa ação, estava na lógica desse movimento de reforma.
Não convém ir a fundo na escandalosa crueldade da quarta cruzada, que, de qualquer forma, ficaria para sempre na memória dos gregos. Não convém deter-se para explicar que o papa Inocêncio III foi enganado pelos venezianos: pela própria natureza da cruzada, a responsabilidade pesava sobre seu chefe. É muito mais conveniente considerar que a cruzada foi movida pela idéia de que a cristandade era uma só, a latina. No início, entre outras coisas, em razão do pouco conhecimento da realidade articulada do cristianismo oriental; depois de mais de um século, também por um projeto de conquista. No início, aquela idéia permitia poder correr em auxílio aos irmãos; depois de mais de um século, permitia puni-los enquanto cismáticos. Não é por acaso que, depois da tomada de Constantinopla, em 1204, quando se forma não só um Império latino do Oriente, mas também uma hierarquia latina no Oriente, a literatura sobre a cruzada se interessa mais pelo cisma do que por Jerusalém. Que, no entanto, precisava ser novamente libertada, visto que em 1187 fora retomada por Saladino. Mas, a partir de então, “era o cisma da Igreja grega que atraía a principal atenção dos autores. […] Estava encerrada a época gloriosa dos apelos para libertar o Santo Sepulcro. Havia amadurecido uma outra, a da evangelização […]. A cruzada, à qual se dava cada vez menos crédito, acabara por se tornar uma outra coisa: a oportunidade para abrir caminho para a Igreja latina no Oriente ou, se quiserem, para manter o islã longe da Europa” (id., ibid., pp. 82-83). Poderíamos dizer: a tendência à eliminação do Oriente cristão, pelo fato de se encontrar no caminho para Jerusalém. “Sendo o papado romano o centro de toda a cristandade possível, quem não o reconhecesse como única forma canônica na Europa cristã pós-gregoriana, com juramento de obediência e de fidelidade, por essa própria atitude perdia o título jurídico a ocupar uma igreja, com seus bens e pertences” (id., ibid., p. 89).
Reforma e hegemonia
Voltemos atrás, tanto cronológica quanto geograficamente, até o Ocidente da segunda metade do século XI. O “juramento de obediência e de fidelidade” nos remete à fórmula da vassalagem feudal que, no “Resgate antifeudal da Igreja”, como intitulava seu capítulo sobre Gregório VII, Giorgio Falco via abolida pelo “mais terrível destruidor do velho mundo feudal e maior criador de uma nova realidade histórica” (La Santa Romana Repubblica, p. 148). Contrariamente ao que afirmava e afirma esse idealismo histórico-filosófico (com a realidade de lutos e ruínas que traz consigo), a reforma gregoriana não acaba com as relações feudais, mas assume-as, para acabar com a coordenação de poderes precedente. Na Europa cristã pós-gregoriana, a vassalagem se reforça, mas com a inversão das partes. Foi o que explicou suficientemente o falecido Cinzio Violante em suas obras, fazendo-o por último nessa síntese, breve mas extremamente eficaz, quase um testamento, que é Chiesa feudale e riforme in Occidente (sec. X-XII). Introduzione a un tema storiografico. “Com a reforma eclesiástica romana, o processo de feudalização da Igreja não perdeu o fôlego, mas, pelo contrário, intensificou-se.
[…] A ‘reconquista cristã do mundo’ para restaurar e estender a Cristandade e sobretudo para protegê-la de novos abusos dos poderes seculares foi levada a cabo pela Igreja também mediante o uso de meios feudais, como a criação de Estados vassalos” (id., ibid., p. 149). “A propriedade das terras não interessava tanto ao papado quanto a possibilidade de ter à sua disposição vassalos engajados nas empreitadas militares” (Storia della Chiesa, organizada por Jedin, vol. IV, p. 472). Essa é a verdadeira questão. Pois, entre outras coisas, foram justamente “as exigências financeiras da luta pelo direito de investidura dos feudos e da preparação das cruzadas” (Violante, Chiesa feudale e riforme in Occidente [sec. X-XII], p. 157) que determinaram a “crescente introdução da própria Igreja, de todas as suas instituições e – a certa altura – da própria Sé Apostólica no desenvolvimento da economia monetária […]. Especialmente Gregório VII, Urbano II e o próprio Pascoal II, promotor da pobreza, foram obrigados pelas novas exigências de grandes despesas, que se haviam criado por motivos religiosos, a engordar as finanças pontifícias com novas receitas” (id., ibid.).
Não foi apenas porque pretendia corrigir indisciplinas que a reforma criou agitação e resistências. Até mesmo os antipapas daquele período (ou seja, os papas obedientes ao imperador, neste caso do Ocidente), como um Clemente III, esforçavam-se por reformar a vida do clero, lutando contra o concubinato e a simonia. “A própria Igreja do reino da Alemanha, inteiramente sob o controle imperial, parece-nos hoje, de um modo geral, bem ordenada e em perfeito funcionamento no século XI […]. Na realidade, a imagem que as fontes filopapais, em particular as “gregorianas”, davam das Igrejas que resistiam à reforma romana […] era determinada por uma forte contraposição ideológica” (id., ibid., p. 153). E que Igreja teria sido mais resistente que a grega? Que outra teria merecido uma avaliação pior?
Dizendo isso, não se põe em questão nem a santidade de Leão IX, nem a de Gregório VII; não se põe em questão o primado romano. A pergunta, simplesmente, é se essa libertas, da qual o primeiro a falar foi justamente Leão IX, não foi reivindicada também e sobretudo em razão de um projeto de hegemonia. A Histoire du christianisme reconhece francamente que “Roma visava a instalação da libertas romana, na medida em que o papa substituía o imperador e, oferecendo, a seu modo, liberdade às Igrejas, ao mesmo tempo garantia a elas a sua proteção e o seu controle” (p. 15). É sobre isso que, dentro do próprio partido gregoriano, Pedro Damião se afasta de Hýldebrando (futuro Gregório VII) e de Humberto de Silvacândida, pois não compartilha a “passagem de uma eclesiologia substancialmente unitária, na qual o poder temporal leigo do imperador e a autoridade espiritual do papa eram um todo inseparável, que podia ser posto em prática de vários modos e de acordo com várias instituições, a uma eclesiologia cuja tese fundamental era, ao contrário, a plena libertas Ecclesiae (Violante, Chiesa feudale e riforme in Occidente [sec. X-XII], pp. 132-133).
Não acreditamos que o hino que Giorgio Falco eleva a essa libertas faça bem à Igreja, como muitos talvez sejam levados a crer, inclusive diversos eclesiásticos; ele faz parte da propaganda ideológica que usa a reforma gregoriana para defender seus próprios pontos de vista: “A Igreja estava finalmente livre, ou seja, depois de quase dois séculos de esforços desesperados, conseguira reformar o clero, livrá-lo dos tentáculos do laicato e do mundanismo, e seguia agora com seu exército hierárquico, imenso, compacto, obediente a um comando, rumo à conquista da hegemonia européia” (La Santa Romana Repubblica, p. 254). Esse ponto de vista não dá atenção ao fato de que tudo isso conduz a “uma guerra mais medonha e universal”, necessária gestação do futuro: “A reforma que culmina com Gregório VII não traz a paz aos homens; pelo contrário, leva a uma guerra mais medonha e universal. […] Sob a fervorosa e combativa atividade de centralização romana, molda-se pouco a pouco uma segunda Europa, depois da de Carlos Magno, mais estável, vasta, consciente de si; as multidões que clamam por vir à luz – protagonistas do amanhã – são chamadas a ser testemunhas e partícipes da luta” (id., ibid.). Esse ponto de vista não se importa com a conservação do depositum, mas em salmodiar “sobre a maior revolução da Idade Média, a mais profunda fé política e religiosa. […] Gregório VII é a revolução e o futuro” (id., ibid., p. 255). Pura ênfase