Raniero Cantalamessa: «Oriente e Ocidente perante o Mistério da Salvação»
V Pregação de Quaresma: «Oriente e Ocidente perante o Mistério da Salvação»
Texto completo do pregador da Casa Pontifícia, Padre Raniero Cantalamessa, na manhã desta sexta-feira (27 de março de 2015), na capela Redemptoris Mater, pronunciou a quinta e última pregação desta Quaresma, ante o Papa Francisco e vários cardeais, bispos e padres da Cúria Romana.
FONTE: Zenit.org
Com esta meditação, encerramos o nosso percurso pela fé comum do Oriente e do Ocidente, e o encerramos com o que nos diz respeito mais diretamente: o problema da salvação, ou seja, como ortodoxos e mundo latino compreenderam o conteúdo da salvação cristã.
É, provavelmente, o campo em que é mais necessário para nós, latinos, voltar o olhar para o Oriente, a fim de enriquecer e, em parte, corrigir o nosso modo difuso de conceber a redenção operada por Cristo. Temos o privilégio de fazê-lo nesta capela, onde a obra de Cristo e do mistério da salvação foi representada pela arte do padre Rupnik, de acordo com a concepção da Igreja do Oriente e da iconografia bizantina.
Vamos começar com uma autorizada apresentação do modo diferente de entender a salvação entre Oriente e Ocidente, exposta no Dictionnaire de Spiritualité e que sintetiza a opinião dominante nos círculos teológicos:
O propósito da vida para os cristãos gregos é a divinização; o dos cristãos do Ocidente é a conquista da santidade […]. O Verbo se fez carne, de acordo com os gregos, para restituir ao homem a semelhança divina perdida em Adão e para divinizá-lo. De acordo com os latinos, Ele se fez homem para redimir a humanidade […] e para pagar a dívida devida à justiça de Deus [1].
Procuraremos ver em que se baseia essa diferença de visão e o que há de verdadeiro na maneira de apresentá-la.
1. Os dois elementos da salvação na Escritura
Nas profecias do Antigo Testamento que anunciam “a nova e eterna aliança”, já se nota a presença de dois elementos fundamentais: um negativo, que consiste na eliminação do pecado e do mal em geral; e um positivo, que consiste no dom de um coração novo e de um espírito novo; em outras palavras, na destruição das obras do homem e na reedificação ou restauração da obra de Deus. Um texto claro, neste sentido, é este de Ezequiel:
Derramarei sobre vós águas puras, que vos purificarão de todas as vossas imundícies e de todas as vossas abominações. Dar-vos-ei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirar-vos-ei do peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Dentro de vós colocarei o meu espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e observeis os meus preceitos (Ez 36, 25-27).
Existe algo que Deus tirará do homem: a iniquidade, o coração de pedra, e algo que Ele colocará no homem: um coração novo, um espírito novo. No Novo Testamento, esses dois componentes são evidentes. Desde o início do Evangelho, João Batista apresenta Jesus como “o Cordeiro que tira o pecado do mundo”, mas também como “aquele que batiza no Espírito Santo” (Jo 1, 29.33). Nos sinóticos, prevalece o aspecto da redenção do pecado: Jesus aplica a si, em várias ocasiões, a figura do Servo de Javé que toma sobre si e expia os pecados do povo (cf. Is 52,13-53,9); na instituição da Eucaristia, Ele fala do seu sangue derramado “para a remissão dos pecados” (Mt 26,28).
Em João também está presente este aspecto, ligado, precisamente, ao tema do Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. A sua Primeira Carta apresenta Jesus como “a vítima de expiação pelos nossos pecados; não só dos nossos, mas também de todo o mundo” (1 Jo 2,2). Mais acentuado, porém, é o elemento positivo em João. Com o Verbo feito carne, veio ao mundo a luz, a verdade, a vida eterna e a plenitude de toda a graça (cf. Jo 1, 16). O fruto mais enfatizado da morte de Jesus não é a expiação dos pecados, mas o dom do Espírito (cf. Jo 7,39; 19,34).
Em São Paulo, vemos estes dois elementos em perfeito equilíbrio. Na Carta aos Romanos, que podemos considerar a primeira exposição arrazoada da salvação cristã, ele primeiro destaca aquilo de que Cristo, com a Sua morte na cruz (Rm 3, 25), veio nos libertar: a morte (Rm 5), o pecado (Rm 6) e a lei (Rm 7); em seguida, no oitavo capítulo, ele expõe todo o esplendor daquilo que Cristo, por meio da sua morte e ressurreição, trouxe para o homem: o Espírito Santo e, com Ele, a filiação divina, o amor de Deus e a certeza da glorificação final. Os dois elementos estão presentes no próprio coração do Kerygma. Jesus “foi condenado à morte pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação” (Rm 4, 25); por “justificação” não se quer falar apenas da remissão dos pecados, mas também do que é dito em seguida no texto: da graça, da paz com Deus, da fé, da esperança, do amor de Deus derramado em nossos corações (Rm 5, 1-5).
Como sempre, na passagem da Escritura para os Padres da Igreja, observa-se uma recepção diferente desses dois elementos. De acordo com a opinião comum, resumida por Bardy no texto citado, o Oriente incorporou o elemento positivo da salvação: a divinização do homem e a restauração da imagem de Deus; o Ocidente recebeu o elemento negativo, a libertação do pecado. A realidade é muito mais complexa e a tentativa de esclarecê-la facilitará a mútua compreensão.
Vamos corrigir, primeiro, algumas generalizações que fazem as duas visões da salvação parecerem mais distantes uma da outra do que de fato estão. Não é de admirar, antes de mais, se, no âmbito latino, não encontramos alguns conceitos centrais para os gregos, como o de “divinização” e “restauração da imagem de Deus”. Eles não aparecem, como tais, no Novo Testamento, que é a única fonte comum, embora tenham servido para transmitir um modo primorosamente bíblico de entender a salvação. O próprio termo theosis, divinização, despertava reservas devido ao uso que dele se fazia na linguagem pagã e na da Roma imperial (apotheosis).
Os latinos expressaram de preferência o efeito positivo do batismo com o conceito paulino da filiação divina. De acordo com São João da Cruz, realizam-se na alma cristã, pela graça, as operações que ocorrem por natureza na Trindade: uma doutrina que não é distante da visão ortodoxa da deificação, mas baseada na afirmação joanina da inabitação da Trindade (Jo 14,23) [2].
Outra observação. Não é inteiramente verdade que a soteriologia ortodoxa se resuma na visão ontológica da divinização e a ocidental na teoria jurídica de Santo Anselmo, da expiação devida ao pecado. A ideia de sacrifício pelo pecado, de redenção, de pagamento de uma dívida (e até mesmo, em alguns casos, de um resgate pago ao diabo!) está presente em Santo Atanásio, em São Basílio, em São Gregório de Nissa e em São João Crisóstomo não menos do que nos seus contemporâneos latinos. Basta, a este propósito, consultar uma boa reconstrução do pensamento cristão das origens [3]. Um texto entre os muitos é este, de Atanásio, que é também um dos mais determinados defensores da tese de divinização:
Restava ainda a pagar a dívida que todos devíamos, porque estávamos todos condenados à morte, e esta foi a causa principal da sua vinda até nós. É por isso que, depois de revelar a sua divindade com as obras, restava-lhe oferecer o sacrifício por todos, cedendo o templo do seu corpo à morte por todos[4].
Para estes Padres gregos antigos, o mistério pascal de Cristo é ainda parte integrante e caminho para a divinização, inclusive na época bizantina. Para Nicolau Cabasilas, havia dois muros que impediam a comunicação entre Deus e nós: a natureza e o pecado. “O primeiro foi retirado pelo Salvador com a sua encarnação; o segundo, com a crucificação, pois a cruz destruiu o pecado”[5].
Apenas em alguns casos é que vemos afirmar-se, no seio da ortodoxia, a ideia de uma salvação da humanidade realizada à raiz da própria encarnação do Verbo, entendida como a assunção não de uma humanidade singular, mas da natureza humana presente em todos os homens, à maneira do universal platônico. Num caso extremo, a divinização ocorre mesmo antes do batismo. Escreve São Simeão, o Novo Teólogo:
Descendo do teu santuário excelso sem te apartares do seio do Pai, e encarnado e nascido da Santa Virgem Maria, já então me replasmaste e vivificaste, liberto da culpa dos nossos primeiros pais e preparada a ascensão ao céu. Em seguida, depois de me teres criado e feito aos poucos crescer, tu, também em teu santo batismo da nova criação, me renovaste e ornaste com o Espírito Santo [6].
Até aqui, portanto, as diferentes teorias da salvação não são tão fortemente divididas entre Oriente e Ocidente, como se costuma acreditar. A diferença é clara e constante, desde o início até hoje, na compreensão do pecado original e, portanto, no efeito primário do batismo. Os orientais nunca entenderam o pecado original no sentido de uma verdadeira “culpa” hereditária, mas como a transmissão de uma natureza ferida e propensa ao pecado, como uma perda progressiva da imagem de Deus no homem, não só devida ao pecado Adão, mas ao de todas as gerações sucessivas.
Com o símbolo niceno-constantinopolitano, todos professam “um só batismo para a remissão dos pecados”, mas, para os orientais, o batismo não tem principalmente o escopo de tirar o pecado original (nas crianças, não tem de forma alguma este escopo), mas sim o de libertar o homem do poder do pecado em geral, restaurar a imagem de Deus, perdida, e inserir a criatura no novo Adão, que é Cristo. Esta perspectiva diferente se reflete, por exemplo, na imagem que temos da Virgem Maria. No Ocidente, ela é vista como “Imaculada”, ou seja, concebida sem o pecado (mácula) original, havendo inclusive a definição dogmática deste título; no Oriente, o título correspondente é o de Panagia, a toda santa.
2. Uma comparação assimétrica
Não preciso me debruçar longamente sobre o modo ocidental de conceber a salvação operada por Cristo, porque ele nos é mais familiar. Digamos apenas que acontece aqui um paradoxo notável. Aquele que foi, em todo o cristianismo, o cantor por excelência da graça, aquele que destacou melhor do que todos a sua novidade no tocante à lei e a sua necessidade absoluta para a salvação, aquele que identificou tal dom com o próprio Doador, que é o Espírito Santo, foi também aquele que, por circunstâncias históricas, mais contribuiu para restringir o seu campo de ação.
A polêmica com os pelagianos levou Agostinho a destacar, da graça, especialmente o aspecto de preservação e cura do pecado, a chamada graça preveniente, adjuvante, sanante. A sua doutrina do pecado original, como verdadeira culpa hereditária, transmitida no ato da geração sexual, fez com que o batismo fosse visto prevalentemente como libertação do pecado original.
Nem Agostinho nem outros depois dele silenciaram quanto aos demais bens do batismo: a filiação divina, a inserção no corpo de Cristo, o dom do Espírito e tantos outros magníficos dons. O fato é, porém, que, no modo de administrá-lo e na opinião geral, o aspecto negativo de libertação do pecado original prevaleceu sempre sobre o positivo de dom do Espírito Santo (sendo este atribuído mais destacadamente ao sacramento da confirmação). Mesmo hoje, quando se pergunta a um cristão o que significa estar “em graça de Deus” ou viver “em graça”, a resposta é quase sempre viver sem pecados mortais na consciência.
É a consequência inevitável de todas as heresias: a de forçar a teologia a se concentrar momentaneamente num ponto da doutrina em detrimento do todo. É um fato normal em muitos momentos do desenvolvimento do dogma. Foi isto o que levou alguns autores alexandrinos ao limite do monofisismo para se oporem ao nestorianismo, e vice-versa. E o que foi que fez com que a ruptura momentânea do equilíbrio, no caso de Agostinho, fosse tão diferente e tão duradoura? A resposta é simples: a sua própria estatura e autoridade solitária!
Houve, depois dele, quem propusesse uma explicação diferente e mais próxima da dos gregos: João Duns Scotus (1265-1308). O fim principal da encarnação não é, para ele, a redenção do pecado, mas a restauração de todas as coisas em Cristo, “em vista do qual todas as coisas foram criadas” (Col 1,15 ss.); o objetivo é a união, em Cristo, da natureza divina com a humana [7]. A encarnação, portanto, teria ocorrido mesmo que Adão não tivesse pecado. O pecado de Adão só determinou a modalidade desta recapitulação de todas as coisas em Cristo, tornando-a “redentora”.
Mas a voz de Scotus ficou isolada e só recentemente foi reavaliada pelos teólogos. A que se impôs foi outra voz, que não reequilibrava o pensamento de Agostinho, mas o exasperava. Falo de Lutero, que também teve o mérito, para toda a cristandade, de recolocar a palavra de Deus, a Bíblia, no centro e no topo de tudo, inclusive das palavras dos Padres, que são sempre palavras de homens. Com ele, a diferença em relação ao Oriente, no entendimento da salvação, se torna realmente radical. À teoria da divinização do homem, opõe-se a tese de uma justiça imputada extrinsecamente por Deus, que mantém o batizado “justo e pecador” ao mesmo tempo: pecador em si mesmo, justo aos olhos de Deus.
Mas deixemos de lado este desenvolvimento posterior, que merece uma discussão à parte. Voltando à comparação entre a ortodoxia e a Igreja católica, precisamos destacar um fato que, aos olhos de alguns autores ortodoxos, fazia com que, no passado, a nossa concepção da salvação e da vida cristã parecesse diferente da deles em quase todos os pontos. Trata-se de uma assimetria de fundo. No Oriente, a teologia, a espiritualidade e a mística são unidas; não se concebe uma teologia que não seja também mística, isto é, experiencial. A reconstrução da posição ortodoxa é feita levando-se em conta os teólogos, como os capadócios, o Damasceno, Máximo Confessor, mas também os movimentos espirituais, como os Padres do Deserto, o hesicasmo, o monaquismo, o palamismo, a Filocalia, autores místicos como Simeão, o Novo Teólogo, Serafim de Sarov, e assim por diante.
Infelizmente, isto não aconteceu no Ocidente, onde, inclusive no ensino, a mística e a espiritualidade ocuparam, especialmente com o advento da Escolástica, um lugar diferente da dogmática; mais do que isto: a mistura das coisas chegou a ser vista com desconfiança. A comparação entre o Oriente e o Ocidente latino levaria a resultados muito diferentes e muito menos conflitivos se fossem considerados os muitos movimentos espirituais e autores místicos católicos, nos quais a salvação cristã não é teorizada, mas vivida.
Dos três livros já citados [8], que são os que mais contribuíram para tornar conhecida no Ocidente a “teologia mística” do Oriente cristão, só um menciona (duas vezes, e com tendência negativa) São João da Cruz. No entanto, com o tema da “noite escura”, ele, assim como vários outros no Ocidente, se coloca na linha da visão de Deus na escuridão de São Gregório de Nissa. Nenhuma menção é feita ao monaquismo ocidental, a São Francisco de Assis e à sua espiritualidade positiva e cristocêntrica; a escritos místicos como a “Nuvem do Não-Conhecimento”, tão em sintonia com o apofatismo da teologia oriental. Mas isto, repito, é culpa mais nossa que dos autores orientais, se é que podemos falar de culpa. Fomos nós que realizamos a nefasta separação entre teologia e espiritualidade e não podemos pedir que os outros façam uma síntese que nem nós tentamos fazer ainda.
3. Uma chance para o Ocidente
Voltemos ao parecer de Bardy, do qual partimos: o Oriente, diz ele, tem uma visão mais otimista e positiva do homem e da salvação; o Ocidente, uma visão mais pessimista. Eu gostaria de mostrar que, também neste caso, a regra de ouro no diálogo entre Oriente e Ocidente não é a do aut – aut, mas a do et – et. Se a doutrina oriental, com a sua altíssima ideia da grandeza e da dignidade do homem como imagem de Deus, destacou a possibilidade da encarnação, a doutrina ocidental, com a insistência no pecado e na miséria do homem, salientou a sua necessidade. Um discípulo tardio de Agostinho, Blaise Pascal, observou:
O conhecimento de Deus sem o da nossa miséria produz orgulho. O conhecimento da nossa miséria sem o de Deus produz desespero. O conhecimento de Jesus Cristo é o ponto de equilíbrio, porque nele encontramos Deus e a nossa miséria [9].
Para Agostinho, Santo Anselmo, Lutero, a insistência na gravidade do pecado [10] era um modo diferente de enfatizar a grandeza do remédio proporcionado por Cristo. Eles acentuavam “a abundância do pecado” para exaltar “a superabundância da graça” (cf. Rm 5,20). Em ambos os casos, a chave de tudo é a obra de Jesus, vista pelos orientais a partir de um lado, por assim dizer, e pelos ocidentais a partir de outro. Os dois lados são legítimos e necessários. Diante da explosão do “mal absoluto” na Segunda Guerra Mundial, alguém notou até que ponto tinha chegado o esquecimento desta amarga verdade sobre o homem, depois de dois séculos de ingênua fé no supostamente imparável progresso do homem [11].
Onde está, então, a lacuna da nossa soteriologia que nos faz ter que olhar para o Oriente? Está no fato de que a graça, mesmo sendo exaltada, acabou reduzida, na prática, à sua dimensão negativa de remédio para o pecado. Até o grito do Exultet pascal, “Ó feliz culpa que nos mereceu tão grande Redentor!”, se bem considerarmos, fica na perspectiva do pecado e da redenção.
É precisamente neste ponto, graças a Deus, que vemos há certo tempo uma mudança capaz de marcar época. Todas as Igrejas do Ocidente, ou nascidas dele, têm sido atravessadas há mais de um século por uma corrente de graça que é o movimento pentecostal e as várias renovações carismáticas derivadas dele nas Igrejas tradicionais. Não se trata, na realidade, de um movimento no sentido corrente do termo. Não tem fundador, regra, espiritualidade própria; não tem estruturas de governo, apenas de coordenação e serviço. É justamente uma corrente de graça, que deveria se espalhar por toda a Igreja como um choque elétrico na massa, para, assim, deixar de ser um fenômeno separado.
Não é possível ignorar por mais tempo, ou considerar marginal, um fenômeno que, de formas mais ou menos profundas, atingiu centenas de milhões de crentes em Cristo em todas as confissões cristãs e dezenas de milhões só na Igreja católica. Ao receber pela primeira vez, em 19 de maio de 1975, os líderes da Renovação Carismática Católica na Basílica de São Pedro, o beato papa Paulo VI, em seu discurso, chamou o movimento de “uma chance para a Igreja e para o mundo”.
O teólogo Yves Congar, em seu relatório ao Congresso Internacional de Pneumatologia, realizado no Vaticano por ocasião do XVI centenário do Concílio Ecumênico de Constantinopla de 381, declarou a respeito dos sinais do despertar do Espírito Santo em nosso tempo:
Como não situar aqui a corrente carismática, também conhecida como Renovação no Espírito? Ela se espalhou como fogo em palha. É muito mais que uma moda passageira… Por um lado, acima de tudo, ela se parece com um movimento de avivamento: pelo caráter público e verificável da sua ação que muda a vida das pessoas… É como uma jovialidade, um frescor e novas possibilidades dentro da velha Igreja, nossa Mãe [12].
O que, neste momento, eu gostaria de destacar é um ponto preciso: em que sentido e de que maneira podemos dizer que esta realidade é uma chance para a Igreja católica e para as Igrejas nascidas da Reforma? Eu acho que é por isto: ela permite restituir à salvação cristã o rico e edificante conteúdo positivo resumido no dom do Espírito Santo. O objetivo primário da vida cristã reaparece, conforme dizia São Serafim de Sarov, como “o recebimento do Espírito Santo” [13]. São João Paulo II, em um discurso para os líderes da Renovação Carismática Católica em 1998, disse:
O Movimento Carismático Católico […], como um novo Pentecostes, despertou na vida da Igreja um extraordinário florescimento de grupos e movimentos particularmente sensíveis à ação do Espírito […]. Quantos fiéis leigos têm experimentado em suas próprias vidas o impactante poder do Espírito Santo e dos seus dons! Quantas pessoas redescobriram a fé, o gosto da oração, a força e a beleza da Palavra de Deus, traduzindo tudo isso em generoso serviço à missão da Igreja! Quantas vidas foram profundamente mudadas! [14].
Eu não digo que, entre as pessoas que se identificam com esta “corrente de graça”, todas vivam essas características, mas sei, por experiência, que todos, mesmo os mais simples, sabem do que se trata e aspiram a realizá-las na sua vida. Até a imagem externa da vida cristã é diferente: é um cristianismo alegre, contagiante, que nada tem do pessimismo sombrio que Nietzsche censurava. O pecado não é banalizado, porque um dos primeiros efeitos da vinda do Paráclito ao coração do homem é “convencê-lo do pecado” (Jo 16,8).
Não é questão de aderir a este “movimento”, ou a qualquer movimento, mas de abrir-se à ação do Espírito no estado de vida em que se esteja. O Espírito Santo não é monopólio de ninguém, muito menos do movimento pentecostal e carismático. O importante é não sair da corrente de graça que atravessa, de várias formas, todo o cristianismo; é ver nela uma iniciativa de Deus e uma chance para a Igreja, e não uma ameaça ou uma infiltração estranha ao catolicismo.
Algo que pode destruir essa chance vem de dentro dela. A Escritura afirma a primazia da obra santificadora do Espírito sobre a sua atividade carismática. Basta ler conjuntamente 1 Coríntios 12 e 13, sobre os diversos carismas e sobre a melhor estrada de todas, que é a caridade. Seria comprometer esta oportunidade se a ênfase nos carismas, e nalgum deles em particular, prevalecesse sobre o esforço de uma autêntica vida “em Cristo” e “no Espírito”, com base na conformação a Cristo e, portanto, na mortificação das obras da carne e na busca dos frutos do Espírito.
Espero que o próximo retiro mundial do clero, organizado para junho aqui em Roma em preparação do 50º aniversário da Renovação Carismática Católica, em 2017, sirva para reafirmar vigorosamente esta prioridade, continuando também a incentivar de todas as formas o exercício dos carismas, tão úteis e necessários, de acordo com o Concílio Vaticano II, “à renovação e à maior expansão da Igreja” [15].
Deixemos os irmãos ortodoxos decidirem se esta corrente de graça é destinada apenas a nós, Igrejas do Ocidente e nascidas dele, ou se um novo Pentecostes é uma necessidade também do Oriente cristão. Enquanto isso, não podemos deixar de lhes agradecer por terem cultivado e tenazmente defendido ao longo dos séculos um ideal de vida cristã bonito e edificante, do qual toda a cristandade se beneficiou, inclusive por meio do silencioso instrumento do ícone.
Desenvolvemos as nossas reflexões sobre a fé comum do Oriente e do Ocidente tendo à nossa frente, nesta capela, a imagem da Jerusalém celeste com os santos ortodoxos e católicos reunidos em grupos mistos, de três em três. Peçamos a eles a ajuda para realizar, na Igreja aqui da terra, a mesma comunhão fraterna de amor que eles vivem na Jerusalém celeste.
Agradeço ao Santo Padre e aos veneráveis padres, irmãos e irmãs, pela benévola atenção e desejo a todos uma Feliz Páscoa!
NOTAS:
- G. Bardy, Dictionnaire de spiritualité, ascétique et mystique, III, Beauchesne, Paris 1937, col. 1389s; cf. também Y. Spiteris, Salvezza e peccato nella tradizione orientale, EDB, Bolonha 1999.
- João da Cruz, Cântico Espiritual A, estrofe 38.
- Cf. J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, Londres 1968, cap. 14.
- Atanásio, De Incarnatione, 20.
- N. Cabasilas, Vida em Cristo, III, 1 (PG 153, 572).
- Simeão, o Novo Teólogo, Hinos (SCh 196, 1973, 330 s.).
- Duns Scoto, Reportationes Parisienses, III, d.7,q.4,§ 5 (ed. Wadding, vol. XI, pág. 451).
- V. Lossky, P. Evdokimov, J. Meyendorf, citados na primeira meditação.
- B. Pascal, Pensamentos, 527 (Brunschvicg); cf. M. Pelikan, Jesus Through the Centuries, Harper and Row, Nova Iorque 1987, pág. 73-76.
- Anselmo, Cur Deus homo, XXI: (Nondum considerasti quanti ponderis sit peccatum: “Não considerastes ainda a gravidade do pecado”).
- W. Lippman, cit. por M. Pelikan, op. cit., pág. 76.
- Y. Congar, Actualité de la Pneumatologie, em Credo in Spiritum Sanctum, Libreria Editrice Vaticana, 1983, I, pág. 17ss.
- Serafim de Sarov, Colóquio com Motovilov, em I. Gorainoff, Seraphim de Sarov, Paris 1996.
- João Paulo II, Discurso à Comissão Nacional de Serviço e ao Conselho Nacional da Renovação Carismática, 4 de abril de 1998.
- Lumen gentium, 12.