Metropolita Hilarión: «Uma visão ortodoxa russa do Papado»
Entrevista com o Metropolita Hilarión Alfeyev
VIENA, domingo, 12 de novembro de 2006 (ZENIT.org)
O diálogo entre católicos e ortodoxos pode ser fecundo, ainda que existam dificuldades no caminho rumo à comunhão eucarística, afirma o bispo Hilarión Alfeyev, de Viena e Áustria. O bispo Hilarión, representante da Igreja Ortodoxa Russa nas Instituições Européias, fala nesta entrevista concedida à agência Zenit sobre a próxima visita de Bento XVI à Turquia e sobre outros temas.
— Bento XVI visitará em breve a Turquia porque deseja estreitar relações entre Roma e Constantinopla. O que significa esta viagem para o diálogo ortodoxo católico?
Espera-se que esta visita melhore ainda mais as relações entre as Igrejas de Roma e Constantinopla. Estas duas Igrejas romperam a comunhão mútua em 1054, e isto lhes dá uma responsabilidade particular na restauração da unidade.
Falando sobre o possível impacto desse futuro encontro para as relações ortodoxo-católicas em seu conjunto, teria de recordar que a Igreja Ortodoxa, pelo que se refere à sua estrutura, é significativamente diferente da Igreja Católica.
A Igreja Ortodoxa não tem só um primado. Está integrada por 15 Igrejas autocéfalas, cada uma encabeçada por seu próprio patriarca, arcebispo ou metropolita.
Nesta família de Igrejas, o patriarca de Constantinopla é «primus inter pares», mas sua primazia é de honra, não de jurisdição, dado que não tem autoridade eclesial sobre as outras Igrejas. Quando, por conseguinte, é apresentado como «cabeça» da Igreja Ortodoxa mundial, comete-se um erro. E também é equivocado considerar seu encontro com o Papa de Roma como uma reunião entre as cabeças das Igrejas Ortodoxas e Católica.
Historicamente, até o cisma de 1054, foi o bispo de Roma quem gozou de uma posição de primazia entre as cabeças das Igrejas cristãs. Os cânones da Igreja Oriental — em especial o famoso cânon 28 do Concílio de Calcedônia — designam o segundo e não o primeiro lugar ao patriarca de Constantinopla.
Também o contexto no qual este segundo lugar foi concedido ao patriarca de Constantinopla foi puramente político: no momento em que Constantinopla se converteu na «segunda Roma», capital de Império Romano Bizantino, considerou-se que o bispo de Constantinopla deveria ocupar o segundo lugar depois o bispo de Roma.
Após a ruptura da comunhão entre Roma e Constantinopla, a primazia na família ortodoxa oriental passou ao «segundo da fila», ou seja, ao patriarca de Constantinopla. Isto é, por um acidente histórico, converteu-se em «primus inter pares» entre o Oriente da cristandade.
Creio que, junto aos contatos com o Patriarcado de Constantinopla, é também importante para a Igreja Católica desenvolver relações bilaterais com outras Igrejas ortodoxas, especialmente com a Igreja Ortodoxa Russa. Esta, sendo a segunda Igreja cristã do mundo em número — seus membros são 160 milhões em todo o mundo — está desejosa de desenvolver estas relações, especialmente para oferecer um testemunho cristão comum à sociedade secularizada.
— O senhor acha que esta viagem abrirá novos horizontes nas relações entre o mundo cristão e o muçulmano?
O diálogo entre cristãos e muçulmanos é necessário e oportuno. É completamente lamentável que algumas tentativas de líderes cristãos de animar este diálogo tenham sido mal interpretadas por alguns representantes do mundo muçulmano.
A recente controvérsia sobre a lição acadêmica do Papa Bento XVI em Ratisbona é um vivo exemplo de tais mal-entendidos. A agressiva reação de alguns políticos muçulmanos, assim como de muitos seguidores do Islã, foi vista por alguns observadores como extremamente exagerada.
Alguns analistas se perguntaram: «Estamos caindo em uma ditadura mundial da ideologia muçulmana, quando cada observação crítica do islã — inclusive no contexto de uma lição acadêmica — é brutal e agressivamente rejeitada, enquanto as críticas às demais religiões, especialmente ao cristianismo, são permitidas e estimuladas?»
Eu gostaria de acrescentar que vários teólogos da Igreja Ortodoxa Russa, inclusive aqueles normalmente críticos da Igreja Católica, expressaram seu apoio ao Papa Bento XVI no momento que surgiu a controvérsia sobre sua aula em Ratisbona. Consideravam que o que disse era importante, ainda que, efetivamente, não estava completamente de acordo com as modernas regras não escritas do politicamente correto.
— O Papa declinou o título de «Patriarca do Ocidente». O que significa este gesto? Tem um significado ecumênico?
Eu fui o primeiro hierarca ortodoxo que comentou este gesto. Várias semanas depois, o Santo Sínodo do Patriarcado de Constantinopla também fez comentários oficiais.
Em meu comentário, eu argumentei que esta rejeição do título de «Patriarca do Ocidente» pode ser considerada pelos ortodoxos como a confirmação da reclamação, refletida nos outros títulos do Papa, da jurisdição da Igreja universal.
Entre as muitas designações do Pontífice, a de «Bispo de Roma» continua sendo a mais aceitável para as Igrejas Ortodoxas, já que indica o papel do Papa como bispo diocesano da cidade de Roma.
Um título como «arcebispo e metropolita da Província Romana» mostra que a jurisdição do Papa inclui não só a cidade de Roma, mas também a província.
«Primado da Itália» indica que o Bispo de Roma é o «primeiro entre iguais» entre os bispos da Itália, usando a linguagem ortodoxa, primado de uma Igreja local. Seguindo com este raciocínio, nenhum destes três títulos apresentaria um problema para os ortodoxos na eventualidade de um restabelecimento da comunhão eucarística entre o Oriente e o Ocidente.
O principal obstáculo à unidade eclesial entre o Oriente e o Ocidente, segundo muitos teólogos ortodoxos, é a doutrina da jurisdição universal do Bispo de Roma. Neste contexto, são inaceitáveis e inclusive escandalosos, desde o ponto de vista ortodoxo, os títulos que ficam na lista, como «Vigário de Jesus Cristo», «Sucessor do Príncipe dos Apóstolos», «Supremo Pontífice da Igreja Universal».
Segundo a doutrina ortodoxa, Cristo não tem nenhum «vigário» para governar a Igreja universal em seu nome.
O título «Sucessor do Príncipe dos Apóstolos» se refere à doutrina católica do primado de Pedro que, quando passou a ser Bispo de Roma, assegurou o governo da Igreja universal. Esta doutrina foi criticada na literatura apologética ortodoxa desde a época bizantina em diante.
O título «Supremo Pontífice» — «Pontifex Maximus» — originalmente pertencia aos imperadores pagãos da antiga Roma. Não foi rejeitado pelo imperador Constantino quando se converteu ao cristianismo.
Com relação ao Papa de Roma, «Supremo Pontífice da Igreja Universal» é uma designação que indica a jurisdição universal do Papa, um nível de autoridade que não é reconhecido pelas Igrejas Ortodoxas. É precisamente este título o que deveria ser relegado antes, se a motivação fosse o «progresso ecumênico» e o desejo de melhorar as relações católico-ortodoxas.
— Bento XVI busca a «plena e visível unidade» de todos os cristãos. Uma unicidade que não pode ser «criada», mas ele pode animar através de sua própria conversão, de gestos concretos e de um diálogo aberto sobre temas fundamentais. Sobre que temas podem estreitar laços a Ortodoxia e Roma? Como deverão colocá-los em prática?
Creio, antes que mais nada, que é necessário identificar vários níveis de colaboração e depois trabalhar para compreender melhor cada nível.
Um nível tem a ver com as conversas teológicas que a Comissão conjunta Católica Ortodoxa leva a cabo. Estas conversas estão e estarão centradas nas diferenças dogmáticas e eclesiológicas entre as Igrejas Católica e Ortodoxa.
Neste nível, posso predizer muitos anos de trabalho difícil e exaustivo, especialmente quando cheguemos ao tema do primado universal. Surgirão complicações não só por causa das compreensões muito diferentes do primado entre as tradições católica e ortodoxa, mas também pelo fato de que não há compreensão unânime do primado universal entre os próprios ortodoxos.
Este fato já se evidenciou na recente sessão da Comissão em Belgrado, e o desacordo interno dentro da família das Igrejas Ortodoxas sobre este tema concreto se manifestará de modo mais agudo e surpreendente no futuro. Portanto, resta por percorrer um longo e espinhoso caminho.
Há, contudo, outro nível ao que podemos dirigir o olhar, e aqui não é mais o que nos divide, senão o que nos une. Para ser específico, é o nível da cooperação no campo da missão cristã.
Pessoalmente, creio que é completamente prematuro e não-realista esperar a restauração da plena comunhão eucarística entre Oriente e Ocidente em um futuro previsível. Contudo, nada nos impede, a católicos e ortodoxos, de testemunhar juntos Cristo e seu Evangelho ao mundo moderno. Podemos não estar unidos administrativamente ou eclesiasticamente, mas devemos aprender a ser colaboradores e aliados frente a desafios comuns: secularismos militantes, relativismo, ateísmo ou um Islã militante.
Por esta razão, desde a eleição do Papa Bento XVI, pedimos repetidamente o fomento das relações entre as Igrejas Católica e Ortodoxa mediante a criação de uma aliança para a defesa dos valores cristãos na Europa. As palavras «estratégia» e «aliança» não foram até agora comumente aceitas para descrever uma colaboração como esta.
Para mim, não são as palavras que importam, mas a conotação que há por trás delas. Eu usei a palavra «aliança» não em sentido de uma «Santa Aliança», mas como se emprega em «A Aliança Mundial das Igrejas Reformadas», por exemplo, como um termo que designa uma colaboração e «parceria» sem unidade plena administrativa ou eclesial.
Também buscava evitar termos marcadamente eclesiais, como «união» porque recordam os ortodoxos de Ferrara-Florença e outros intentos similares — infelizes — de conseguir a unidade eclesial sem um acordo pleno doutrinal.
Não se necessita agora nem de uma «união» eclesial nem uma composição doutrinal apressada, mas sim uma cooperação «estratégica», no sentido de desenvolver uma estratégia comum para combater todos os desafios da modernidade.
O raciocínio que há por trás da minha proposta é este: nossas Igrejas estão a caminho rumo à unidade, mas é preciso ser pragmáticos e reconhecer que é provável que passem décadas, ou até séculos, antes que a unidade seja restaurada.
Enquanto isso, necessitamos desesperadamente dirigir-nos ao mundo com uma voz única. Sem ser uma Igreja, não podemos atuar como uma Igreja? Não podemos apresentar-nos à sociedade secularizada como um corpo unificado?
Creio com força que é possível para as duas Igrejas falar com uma só voz; pode ter uma resposta católico-ortodoxa aos desafios do secularismo, liberalismo e relativismo. Também no diálogo com o Islã, católicos e ortodoxos podem atuar juntos.
Acrescentaria que qualquer aproximação entre católicos e ortodoxos não deverá minar os mecanismos existentes de cooperação ecumênica que incluem também anglicanos e protestantes, tais como o Conselho Mundial das Igrejas e a Conferência de Igrejas Européias.
Contudo, na luta contra o secularismo, liberalismo e relativismo, assim como na defesa dos valores tradicionais cristãos, a Igreja Católica adota uma postura muito mais sem composições que muitos protestantes. Fazendo isso, se distancia daqueles protestantes cujas posições estão mais a tom com o desenvolvimento moderno.
A recente liberação da doutrina e moralidade em muitas comunidades protestantes, assim como na Igreja Anglicana, torna a cooperação entre elas e as Igrejas de Tradição, às que pertencem as Igrejas Católica e Ortodoxa, cada vez mais difícil.
Outro nível de cooperação católico-ortodoxo deveria ser o do intercâmbio cultural entre representantes das duas Igrejas. Muitos mal entendidos que existem entre nós têm uma origem puramente cultural.
Um melhor conhecimento da herança cultural mútua deveria fomentar definitivamente nossa aproximação. Exposições de ícones, concertos de coros, projetos literários conjuntos, conferências sobre temas culturais, tudo isto pode ajudar-nos a superar séculos de velhos preconceitos e melhorar o entendimento das tradições mútuas.
— Em sua carta ao Papa, em 22 de fevereiro, o Patriarca de Moscou menciona alguns desafios do mundo moderno, que deverão ser resolvidos conjuntamente, e seu profundo desejo de devolver os valores cristãos à sociedade. Como se podem unir forças, de forma que os perigos do materialismo, consumismo, agnosticismo, secularismo e relativismo possam ser superados?
Estas questões surgiram durante a conferência «Dar uma Alma à Europa», que aconteceu em Viena de 3 a 5 de maio de 2006. A conferência foi organizada conjuntamente pelo Pontifício Conselho para a Cultura e o Departamento de Relações exteriores do Patriarcado de Moscou.
Os cinqüenta representantes da Igreja Católica e das Igrejas Ortodoxas Russas se reuniram para ponderar os desafios que o cristianismo enfrenta na Europa e desenvolver de colaboração para enfrentá-los.
São precisamente o materialismo, o consumismo, o agnosticismo, o secularismo e o relativismo, todos baseados na ideologia humanista liberal, que constituem um desafio real para o cristianismo. E é a ideologia humanista liberal que devemos neutralizar se desejamos preservar os valores tradicionais para nós e para as futuras gerações.
Hoje, a ideologia humanista liberal, permanecendo em sua própria plataforma de universalidade autofabricada, se impõe às pessoas que cresceram em outras tradições morais e espirituais e têm diferentes sistemas de valores. Estas pessoas vêem no ditado total da ideologia ocidental uma ameaça à sua identidade.
O evidente caráter anti-religioso do humanismo liberal moderno suscita não aceitação e rejeição daqueles cuja conduta está motivada religiosamente e cuja vida espiritual está fundada na experiência religiosa.
Existem diversas variações da resposta religiosa aos desafios do liberalismo totalitário e do secularismo militante. A resposta mais radical foi dada pelos extremistas islâmicos, que declararam a «jihad» contra a civilização ocidental pós-cristã com todos seus chamados valores humanos comuns.
O fenômeno do terrorismo islâmico não se pode compreender sem a completa apreciação da reação que surgiu no mundo islâmico contemporâneo como resultado das tentativas do Ocidente de impor sua visão do mundo e seus padrões de conduta nele.
Na medida em que o Ocidente secularizado persistir em reclamar um monopólio global da visão do mundo, propagando seus padrões como sem alternativa e obrigatórios para todos os países, a espada de Dâmocles do terrorismo continuará pendendo sobre toda a civilização ocidental.
Outra variação da resposta religiosa ao desafio do secularismo é o intento que se está fazendo de adaptar a própria religião, incluindo suas doutrinas e sua moral, aos padrões liberais modernos.
Algumas comunidades protestantes descenderam já por este caminho infiltrando os padrões liberais em sua doutrina e prática eclesial desde há várias décadas. O resultado deste processo foi uma erosão dos fundamentos dogmáticos e morais do cristianismo, com sacerdotes aos que é permitido justificar ou realizar «matrimônios do mesmo sexo», membros do clero que mantêm tais relações eles mesmos, e teólogos que reescrevem a Bíblia criando incontáveis versões de cristianismo politicamente correto, orientado aos valores liberais.
Finalmente, a terceira variação na resposta religiosa ao secularismo é a tentativa de entrar em um diálogo pacífico, não agressivo com ele, com o objetivo de obter um equilíbrio entre o modelo liberal-democrático da estrutura social ocidental e o modo religioso de vida. Tal caminho foi escolhido pelas Igrejas cristãs que permaneceram fiéis à tradição, como as Igrejas Católica e Ortodoxa.
Hoje, as Igrejas Católica e Ortodoxa têm a capacidade de levar a cabo um diálogo com a sociedade secularizada em um alto nível intelectual. Nas doutrinas sociais de ambas Igrejas, os problemas relativos ao diálogo com o humanismo secularizado em matéria de valores foram profundamente examinados desde todos os ângulos.
A Igreja Católica tratou estas questões em muitos documentos do Magistério; o mais recente deles foi o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, levado a cabo pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz e publicado em 2004.
Na tradição ortodoxa, o documento mais significativo deste tipo é «Bases do Conceito Social da Igreja Ortodoxa Russa», publicado em 2000.
Ambos documentos promovem a prioridade dos valores religiosos sobre os interesses da vida secular. Opondo-se ao humanismo ateu, fomentam, ao contrário, um humanismo guiado pelos valores espirituais.
Isto significa um humanismo «que transcorre pelos padrões do plano de amor de Deus na história», um «humanismo integral capaz de criar uma nova ordem social, econômica e política, fundado na dignidade e liberdade de cada pessoa humana, fundado na paz, na justiça e na solidariedade».
A comparação entre os dois documentos revela surpreendentes similaridades nas doutrinas sociais das Igrejas Católica e Ortodoxa. Se nossa compreensão dos assuntos sociais é tão similar, por que não podemos unir forças para defendê-los?
Creio que chegou o momento para todos os cristãos de escolher seguir a linha tradicional, especialmente católicos e ortodoxos, para formar uma frente comum que busque combater o secularismo e o relativismo, para levar a cabo um diálogo responsável com o Islã e com as outras grandes religiões do mundo, e defender os valores cristãos contra todos os desafios da modernidade. Dentro de 20, 30 ou 40 anos, pode ser tarde demais.