A Oração Litúrgica


Do livro “Voir Dieu tel qu’Il est” – Les Éditions du Cerf – Le sel de la terre, 2004
Tradução: Monastério Santos Apóstolos Pedro e Paulo.
Neste mundo, é a Liturgia que exprime da maneira mais adequada o que nós chamamos “oração hypostática”, o que quer dizer uma oração semelhante àquela de Cristo no Jardim de Gêtsemani. Muitos anos passarão antes que nos tornemos capazes de penetrar pelo Espírito em sua verdadeira dimensão. Seguindo atentamente a ordem e o conteúdo deste culto rendido a Deus, nós seremos introduzidos na contemplação do Ser divino e do ser cósmico. Nós aí fazemos memória de numerosos acontecimentos importantes que tiveram lugar desde o “princípio”: a criação por Deus do céu e da terra, a decisão – no Conselho da Santa Trindade – de ” criar o homem à imagem e semelhança de Deus” (Gn. 1, 26), a trágica situação de todos os filhos de Adão, e enfim a vinda misericordiosa em nossa carne do Criador e Deus, revestido da imagem que Ele-Mesmo havia criado. Nós nos impregnamos do ensinamento de Cristo; nós veneramos piedosamente os sofrimentos que Ele conheceu pela nossa redenção; nós O seguimos com temor ao Gêtsemani, e até mesmo no Gólgota; nós estamos ao Seu lado quando dos processos interrogatórios contra Ele por Caifás e Pilatos; nós ouvimos com horror os gritos selvagens: “Crucifica-O”; nós estamos estupefatos, mas também fortificados somos, quando Ele dirige a palavra ao Ladrão crucificado juntamente Consigo: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc. 23,43) e em seguida: ” Eli, Eli, lama sabactâni, isto é, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt. 27,46)” … ” Está consumado” (Jo. 19, 30). Segue então a sepultura, a Ressurreição, as aparições aos Apóstolos e a muitos outros, a Ascensão, o envio do Espírito Santo…
Cada detalhe é portador de um sentido que nos é inacessível. Nós aprendemos assim a viver duas realidades: a realidade divina e a nossa própria – a realidade criada. Nós esperamos a segunda vinda. A cada momento litúrgico, estamos (e somos) por vezes neste tempo aqui e na eternidade; nós continuamos a viver a vida corrompida pela queda – vida que conduz à morte – e, ao mesmo tempo, a palavra do Cristo, Sua Luz permanecem em nós. Podemos repetir quantas vezes quisermos este serviço que Ele nos deu em Sua Providência, nós podemos penetrar mais – o quanto quisermos – na realidade litúrgica; não atingiremos jamais o seu “fim”. Todavia, com júbilo e temor, comungamos à vida divina. E, a partir de então, não podemos mais nos desprender do desígnio grandioso do Criador e Pai, que Se revela a nós. Em verdade, Deus nos amou e nos convidou a estar com Ele pelos séculos dos séculos.
Nós sabemos, no presente, com todas as forças de nossa natureza, que Ele é “de cima, que não é deste mundo” (Jo. 8, 23). O fogo que Ele havia feito descer sobre a terra dos nossos corações (ver Lucas 12, 49) abrasou-Se em nosso sangue pela comunhão com o Seu Sangue. E, tão naturalmente, somos repletos de reconhecimento para com Ele pelos dons imensos que nos gratificou. Nosso serviço, aliás, tem por nome” ação de graças – eucaristia”.
A oração litúrgica é uma oração das mais exigentes. Nela vivemos em um terrível dilaceramento de todo o nosso ser. Tendo, no início, abençoado o Reino do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, nós descemos pouco a pouco até às nossas necessidades cotidianas, afim de subir novamente – pela doxologia – até o Altar de Deus. Nossa “theurgia” é caracterizada por um movimento incessante: ora a Deus, ora ao mundo. Pelos Mandamentos Evangélicos e pelo exemplo de Cristo (ver Jo. 13, 15), nós somos levados a abraçar a totalidade do ser universal: desde a criação de tudo o que existe até o fim de nossa história terrestre, e ainda mais longe. Todavia, ao mesmo tempo em que ocorre essa subida inspirante à esfera da Luz celeste nós observamos um aprofundamento da dor de nosso coração: nós vemos que o mundo no seu todo é como outrora, uma presa das trevas hostis. O Espírito não mais encontra eco nos corações afastados de Deus e a oração – como que repulsada pelos homens – retorna àquele que ora, causando-lhe uma ferida dolorosa. Esta esterilidade aparente da oração toma-se, em dados momentos, um terreno favorável a pensamentos âmagos: a humanidade está incuravemente doente, é vão esperar a sua cura; o mal não cessa de se reforçar, de se adentrar mais e mais profundamente no coração das gentes; é necessário deixar de orar pela humanidade, pois este é um sofrimento que não conduz à parte alguma, e nós que oramos nos tornamos a primeira vítima. Para se proteger destes pensamentos depressivos, é necessário recordar-se de Cristo, o Qual lutou só, contra o mundo inteiro. A vitória chegará sem falta, todavia, não sobre o plano da história visível da terra. Essa vitória é, aliás, já um fato inegável: “Eu venci o mundo”, diz o Senhor 00. 16,33).
A possibilidade de fazer o mal é – mesmo até em suas últimas manifestações – dada às criaturas livres. Mas, por quanto tempo o sacrifício não sangrento for oferecido, aos mortos e àqueles que estão para nascer – por quanto tempo ainda existirem almas, que pela inspiração do Espírito Santo, orarão pelos inimigos, a terra será guardada do fogo devorador apocalíptico. Tal era a fé do santo Starets (Ancião) Siluan. Ele via nesta oração semelhante àquela do Cristo, a força “que resiste”, a qual o Apóstolo Paulo menciona em sua Segunda Epístola aos Tessalonicenses (2, 7).
A benevolente Providência de Deus permitiu-me de celebrar a Liturgia durante decênios, de sentir cada vez, durante este serviço – em uma medida mais ou menos maior ¬a condescendência de Deus. Pela oração litúrgica, a alma afunda-se no oceano dos sofrimentos humanos. Durante os anos da Primeira Guerra Mundial, tão catastrófica para a Rússia, e seguidamente durante os primeiros anos da Revolução, no caos indescritível da guerra civil, os tormentos incuráveis de milhões de homens foram impressos para sempre em minha alma. Eu próprio, poderia ter me perdido no desencadeamento desta tempestade. Mas o Senhor miraculosamente me guardou de toda participação neste massacre: eu nunca matei ninguém. Quando chegou a hora de receber a benção do sacerdócio, não encontrei palavras para exprimir meu reconhecimento para com Deus por uma tal graça excepcional a meu respeito: não somente eu não havia atirado em ninguém, mas espero ainda não ter feito mal à ninguém voluntariamente – não falo aqui do erro que podemos todos, somente pelo fato de existir, fazer àqueles que vivem em torno de nós. Graças a isto, não se encontrava em minha vida impedimento canônico algum à recepção do sacerdócio. Entretanto, em espírito, eu só me sentia digno do inferno. Todavia, Deus me deu o contrário: maior era a consciência de minha indignidade, mais generosamente Ele permitiu aproximar-me do seu sacerdócio eterno. “Pois és Tu que ofereces e que és oferecido, Tu que recebes e é distribuído” (oração do Padre durante a Liturgia).
Nós somos salvos, no senso último do termo, pela nossa comunhão aos sofrimentos de Cristo. Participando à vida terrestre do Senhor, nós adquirimos a eternidade plena do amor de Deus. Este amor é – nas condições históricas de nossa vida terrestre – inevitavelmente sofredor e compadecente, mesmo “até o fim”, até a kenosis total. Pelo dom do Espírito Santo, uma benção paradoxal nos é concedida do Alto, segundo a medida da benevolência do Pai para conosco, o conhecimento – pela experiência – do estado de Jesus Cristo. Nós estamos com Cristo na Santa Ceia, no Gêtsemani, nos tribunais de Caífas e de Pila tos; esgotados pelos suplícios e as torturas. Nós portamos com Ele a Cruz, nós vivemos com Ele o estado de abandono por Deus e a descida aos infernos. É seguindo o Cristo que se encontra a nossa cruz invisível mas bem real, conhecida de Deus somente.
Quando a Luz incriada desce sobre nós, o júbilo da Ressurreição nos é comunicado. E o nosso espírito contempla o Senhor que subiu “para lá de onde era vindo” (ver Jo. 6, 62). As palavras do Apóstolo nos são queridas: “Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra do Pai” (CL 3, 1).
As dimensões verdadeiras da Liturgia são verdadeiramente divinas. Não extenuaremos jamais o conteúdo, sobretudo enquanto vivermos na carne. Criados do “nada”, nós crescemos progressivamente, nos desenvolvemos, nos aperfeiçoamos. Quanto mais intensa é a nossa sede de Deus, mais abundantes são as torrentes dos novos conhecimentos derramados sobre a nossa cabeça. Partilhando com Cristo o Seu Cálice – pela comunhão ao Seu Corpo e ao Seu Sangue – nós recebemos também a Sua divindade, tal como Ele a manifestou sobre a terra na carne e tal como ela está eternamente no céu. Eis o caminho: unindo-nos no amor à Hypostase divina do Filho Unigênito, nos tornamos semelhantes a Ele. Enquanto Hypostases, na plenitude da perfeição, de “Sua imagem e Sua semelhança”, nós recebemos a adoção filial do Pai Celeste pelos séculos sem fim.
Sobre a Cruz, no último instante, Cristo exclama: “Está consumado” (Jo. 19,30). Se as profundezas do pensamento de Deus são insondáveis, sabemos no entanto que neste momento, uma imensa mutação se opera no ser cósmico por inteiro. Este “está consumado” reflete no Conselho pré-etemo no seio da Trindade, ao qual a Revelação faz alusão de uma maneira velada. Para nós, no entanto, o que almejamos de Deus com esperança não está ainda completamente” consumado”. Na inquietude, nós continuamos a ver “os céus e a terra que agora existem pela mesma palavra se reservam e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios (.u) Mas o dia do Senhor virá como o ladrão de noite: o qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos ardendo, se desfarão, e a terra e as obras que nela há, se queimarão” (ver 11 Pe. 3, 7 e 10). Nós todos, nós estamos presentes, em espírito neste Juízo final tão inacreditavelmente próximo, segundo a descrição que o faz o Apóstolo Pedro.
Citemos, em paralelo às palavras do Apóstolo Pedro, aquelas do próprio Cristo: “Dize-nos que sinal haverá do fim do mundo? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Acautelai-vos, que ninguém vos engane; porque muitos virão em Meu Nome, dizendo: “Eu sou o Cristo, e enganarão a muitos. E ouvireis de guerras e de rumores de guerras, olhai não vos assusteis, porque é mister que isso tudo aconteça, mas ainda não é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares. Mas todas estas coisas são o princípio de dores. Então vos hão de entregar para serdes atormentados, e matar-vos-ão; e sereis odiados de todas as gentes por causa do Meu Nome” (Mt. 24, 3-9).
Homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobrevirão ao mundo. (…) Ora, quando estas coisas começarem a acontecer, olhai para cima e levantai as vossas cabeças, porque a vossa redenção está próxima. (u.) Sabei que o Reino de Deus está perto (…) Aquele dia virá como um laço sobre todos os que habitam na face de toda a terra” (Lc. 21,26,28,31,34-35). “Quando o Filho do homem vier em Sua glória, e todos os santos anjos com Ele, então Se assentará no trono da Sua glória; e todas as nações serão reunidas diante d’Ele, e apartará uns dos outro, como o pastor aparta os bodes das ovelhas; e porá as ovelhas à Sua direita, mas os bodes à esquerda” (Mt. 25,31¬33). Tudo isto entra no ato divino da Liturgia: “Celebrando, pois Senhor, o memorial de tudo o que foi realizado para a nossa salvação: a cruz, o sepulcro, a ressurreição ao terceiro dia, a ascensão aos céus, a segunda e gloriosa vinda: Aquilo que é Teu, recebendo-o de Ti, nós Te oferecemos por todos e por tudo .
Já é tempo de operares, ó Senhor” (51.119,126). “Mestre, digna¬Te abençoar!” Eis as palavras que o Diácono dirige ao Presbítero no início da Liturgia. O sentido destas palavras é o seguinte: “Eis que é chegado o tempo para o Senhor (Ele-Próprio) agir”. Assim, desta forma, a Liturgia é, antes de tudo um ato divino. Todos os conceitos nela mudam de dimensão, de sentido. O que significa, por exemplo, a palavra “tempo”? A imolação do Cordeiro estava já pré-decidida no Conselho pré-eterno do Deus-Trindade. “Sabendo que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver que por tradição recebestes dos vossos pais com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o Qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor por vós (…) que credes em Deus que O ressuscitou dentre os mortos (…)” (I Pe. 1, 18-21). Dois planos da existência são aqui mencionados: um, “antes da fundação do mundo” – o outro, nosso tempo histórico. A Liturgia se celebra diariamente sobre toda a face da terra, de século a século. Portanto, o “tempo” da Liturgia é “agora e sempre e pelos séculos dos séculos”. Em efeito, Cristo “havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados está assentado para sempre à destra de Deus (…) porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hb.l0, 12-14).
Tal é o caráter “eterno no tempo” e o “temporal na eternidade” deste mistério. Neste mistério, nós encontramos ¬hierurgicamente – algumas infrações na ordem cronológica: nossas necessidades efêmeras aí se entrelaçam com as disposições eternas de Deus. A Liturgia não é um “memorial” psicológico (ver Lc. 22,19 e 1 Cor.ll, 24) de um acontecimento que teve lugar no passado, mas antes uma força constantemente presente na História. Milhares de anos passam, mas sua atualidade não muda: “Para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um dia” (11 Pe. 3, 8). Para nós, o tempo histórico é como o “lugar” de nosso primeiro encontro com Deus e Sua eternidade. Esta última abraça todos os séculos, não de uma maneira extensiva, mas global. Na Liturgia nós vivemos, ao mesmo tempo e conjuntamente, a corruptibilidade de nossa existência terrestre e a antecipação do Reino vindo com poder (ver Mc. 9, 1). Na Liturgia nós participamos antecipadamente ao banquete das bodas do Reino do Pai celeste (ver Mt, 22, 2). Nós já possuímos este dom” em partes” no presente, e esperamos com perseverança a vinda “do que é perfeito”, quando” o que o é em partes será aniquilado” (I Cor. 13, 10).
A Liturgia é construída de maneira que ela possa (re )traçar em nossa consciência – da forma mais completa possível – a “obra” de Cristo sobre a terra ao. 17,4). Pela constante repetição deste ato, nós assimilamos cada vez mais o seu sentido universal, que torna-se nossa contemplação pessoal, nossa visão do mundo. Este quadro é de uma riqueza extraordinária; de fato, ele é inesgotável, eternamente novo e vivente. Este ato sacerdotal – breve em sua duração – contém o memorial (Lc. 22,19) de acontecimentos que se desenvolvem há milhares de anos e concernem uma multidão inumerável de homens, todos filhos e filhas de Adão. Desde a criação do mundo a aparição do homem, desde o momento da queda de Adão, que abalou a existência cósmica, até a vinda sobre a terra do Deus-Salvador e de Seu clamor: “Tudo está consumado” – instante em que Ele provou da morte segundo a humanidade que Ele havia assumido e onde deu início o restabelecimento do que Deus havia criado – tudo se tece em uma única contemplação, uma única oração. Pouco antes de celebrar Sua primeira e única Liturgia, e de viver Sua agonia no Getsêmani, o Senhor tratou de tudo isto com os Seus Discípulos (Mt. 26, 38), portanto trazendo n’Ele “as nossas enfermidatks” (Is. 53, 3-4). Ele nos dá de tocar as Suas feridas (ver Jo. 20, 25), quando ingressamos efetivamente e conscientemente em tudo o que se realiza na hora da Liturgia.
A Liturgia é a ação de Deus Ele-Próprio; ela pertence integralmente ao plano da eternidade. Nela se manifesta o amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a compaixão do Seu amor pelos pecadores que vão à sua perdição. O amor de Deus é um amor sacrificial. Graças a este sacrifício a humanidade é impedida de desaparecer (ver Gn. 2, 17); é pela sua força vivificante que a vida do mundo é preservada. Em Seu amor, Deus dá a Sua vida aos filhos de Deus bem-amados: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho Unigênito, para que todo aquele que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo. 3, 16; I Jo. 4, 9-10).
O caráter eterno da Liturgia se exprime também no fato de que o Senhor deu aos Apóstolos o Seu Corpo e o Seu Sangue durante a Santa Ceia, antes mesmo de Sua morte sobre a Cruz. No plano histórico, a sucessão cronológica não é respeitada. Mas ela é mantida no Conselho pré-eterno da Trindade Santa, lá onde tudo está unificado em um ato único, que não tem duração mas antes abraça tudo. Desde o princípio, tudo era realizado no desígnio divino de criar o mundo. Já então, Cristo estava designado como vítima imaculada. Mais de uma vez, Ele disse aos Apóstolos que seria julgado, que deveria morrer e em seguida ressuscitar.
Possa o Espírito Santo nos dar a todos de contemplar o Cristo morrendo solitário, condenado por todos, incompreendido por todos. Ele morreu só, de uma morte hum~ente infame; mas, por este meio, todavia, Ele abalou o mundo inteiro. Ele mudou radicalmente a marcha da História, salvou milhares de gentes em vista de uma eternidade bem¬aventurada, cumulou de benefícios a criação toda inteira.
O Padre que se prepara a celebrar a Liturgia deve portar tudo isto em sua consciência, tanto quanto for possível, “de sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (ver Fp. 2, 5). Quanto mais o cristão se aproxima de Cristo, menos ele encontra companheiros de rota para andar em sua companhia.
Se temos presente no espírito a solidão completa de Cristo, não deveríamos nós também estarmos prontos a morrer na solidão? Mesmo se devíamos – por amor por Ele – morrer sem testemunho nas mãos de tiranos na câmara de tortura de uma prisão, Ele não nos deixaria só. Ele partilharia conosco esta proeza, “porque naquilo que Ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados” (Hb. 2, 18).
Se estamos atentos à Sua idéia principal e às suas diversas partes constitutivas, o ato litúrgico nos ensinará a permanecer na atmosfera de Cristo. O Senhor nos exercita a abraçar em espírito o mundo inteiro: a cada instante, milhões de pessoas são esmagadas sob os golpes de um destino impiedoso, ou se encontram à beira da morte, invocando pelos seus gemidos a ajuda do Alto. Nós podemos – de acordo com a nossa experiência pessoal de toda espécie de sofrimentos – nos imergir no mar imenso dos sofrimentos dos homens e, pela oração partilhar suas ânsias e, também por vezes, suas alegrias. É possível que, em um dado momento, tomemos tanto parte aos tormentos da humanidade inteira, que nem o nosso corpo, nem o nosso psiquismo, nem o nosso pensamento não serão os mesmos ao seguirem o nosso espírito cativado pela oração e se apresentarem a Deus por meio de gemidos inefáveis (ver Rm. 8, 26-27). Uma tal oração não é o fruto de esforços humanos, mas um dom do Espírito Santo: ela conduz aos confins da morte e, ao mesmo tempo, ela vivifica; ela nos conduz ao Gêtsemani, mesmo ao Gólgota e, ao mesmo tempo, ela permite de antecipar a ressurreição. Nesta oração, nós conhecemos o Cristo que desce ao inferno em Seu amor infinito e vencedor da morte.
A salvação se comunica ao mundo pela celebração da Liturgia. Ela se comunica em particular àqueles que têm sede de receber a bênção do Pai celeste. Nada se iguala à obra de Cristo, nas vias da redenção da humanidade, nada lhe é semelhante, aqueles à quem é confiado o serviço da Liturgia instituída pelo Senhor, assistem seus irmãos em suas caminhadas à imortalidade. Neste serviço, a Igreja ora há desde dois mil anos, cuidadosa – tal como o Apóstolo Paulo – de que o verdadeiro conhecimento das coisas reveladas por Deus seja dado aos homens, que eles possam “compreender com todos os Santos, qual seja a largura, e o conhecimento, e a altura e a profundidade” do desígnio pré-etemo do Criador para conosco, predestinando-nos, desde antes da fundação do mundo, para filhos da adoção em Seu Filho Bem-Amado (vede Ef. 3, 14-21; 1,5).
Os séculos se sucedem, mas no entanto, no Espírito Santo nada envelhece. O mesmo Espírito que pôs as orações na boca de Paulo, inspira hoje ainda no coração dos Padres e, de uma maneira geral, dos crentes, uma oração pela qual o nosso ser profundo reconhece que Deus é nosso Pai e que a Luz do Ser sem princípio manifestou-se sobre a terra.
Pai Santo, Tu nos honraste com a Tua imagem. Tu que nos deste a bênção de conhecer a Tua Verdade pela Encarnação de Teu Filho e a descida do Espírito Santo que procede de Ti, não desvie a Tua Face de nós, Teus indignos servos, antes acolhe a nossa oração. Envia do Alto sobre todos os filhos da terra um espírito de verdadeira piedade, afim de que o Universo preencha-se da Luz incorruptível do Teu conhecimento. Nós Te rogamos, ó Pai mui bom, escuta-nos e apressa-Te nos ter em piedade.
A Liturgia é um dom inestimável à humanidade. Por meio dela conhecemos o mistério do amor crucificado de Deus, mistério oculto desde os séculos. Nela vivemos efetivamente a imagem da Ressurreição. Por ela subimos à montanha e contemplamos a glória da Transfiguração. Ela estanca a sede de nossa alma com a água” que jorra para a vida eterna” ao. 4, 14). Aqueles que comeram o maná no deserto estão mortos, mas aqueles que comem o pão co céu viverão para sempre (ver Jo. 6,58). Os servos da Nova Aliança selados pelo sangue de Cristo, estão liberados do antigo véu (ver 11 Cor. 3, 12-18); eles oferecem com o rosto descoberto sua suplica à Face do Pai. A Igreja onde se realiza a Liturgia é o átrio do Reino santo que está nos céus. Este serviço é para nós a fonte de puras delícias. Aquele que celebra o mistério da Liturgia se encontra em uma proximidade imediata do Filho de Deus, Ele que é a “realização da Lei e dos Profetas” (Liturgia de São João Chrisóstomo). E por meio de quem nos tornamos possuidores das “palavras da vida eterna” (Jo 6,68;17,8).
Para aqueles que estão corrompidos pelo pecado, o encontro imediato com o Filho Unigênito do Pai não se faz sem dor. Ele nos abala, (…) me parece, até o arrasamento total; todavia ele nos regenera em seguida, tornando-nos livres a respeito do pecado. Ele nos faz comunicar à universalidade teândrica do Cristo, conduzindo a imagem de Deus em nós à perfeição.
O Padre que celebra a Liturgia, assim como os crentes que assistem-na, aprendem a viver sobre dois planos, como o exemplo de Cristo Ele-Próprio: permanecer em espírito na esfera do divino e ao mesmo tempo, participar estreitamente nos trágicos destinos do mundo. Em certos momentos, a atenção do Padre tende ao panorama grandioso do mundo criado, que faz também parte do conteúdo da oração litúrgica; lhe será dado de assimilar o sentido da graça derramada sobre nós, de ser iluminado pela luz que irradia da Trindade Santa. Uma tal imersão na Liturgia é indispensável a todos, para que a sua realidade eterna nos acompanhe em nosso cotidiano; para que a oração sacerdotal torne-se nossa natureza; para que em verdade sejamos estabelecidos “reis e sacerdotes para Deus” independentemente da nossa procedência, de nossa raça, língua, povo e nação (ver Ap. 5, 9-10).
No seu todo, a Liturgia abraça não somente os acontecimentos bíblicos ligados à economia da salvação do homem, mas também, a vida cósmica em sua totalidade – nisso compreende-se o que existia antes da criação do mundo e do que nós esperamos quando “Deus será tudo em todos” (I Cor. 15, 28), quando “não mais houver tempo” (Ap. 10,6). A Divina Liturgia nos prepara a esta saída do tempo que corre. Sua plenitude apodera-se inteiramente de nós, a tal ponto que quando estava no deserto e celebrava só – somente com um monge no coro, o qual respondia às suplicas das ectenias, lia as epístolas dos Apóstolos e ajudava em outras tarefas, substituindo assim ao povo – nem eu, nem esse monge, jamais sentimos falta alguma. O mundo inteiro estava lá conosco: o mundo e o Senhor, o Senhor e a eternidade. É esta experiência do deserto que me ensinou a viver a oração sacerdotal com a assembléia do povo assim como sem a sua presença visível.
Eu me permito dizer que o quê domina em minha consciência é a experiência contemporânea e não aquela dos anciãos. Vivi esta experiência sem ainda não conhecer as obras dos Santos Padres. Inspirado, como eu o creio, pelo mesmo Espírito – Aquele que procede de Deus – , minha experiência coincide em muitos pontos com os escritos dos Padres ascetas; ela é todavia, ao mesmo tempo, também diferente deles, em virtude das impressionantes mudanças ocorridas na vida do mundo. As premonições escatológicas caracterizam bem mais o nosso século do que não importa qual século passado. “A terra e as obras que nela há, se queimarão” (11 Pe. 3, 10). O fogo apocalíptico está já pronto e se encontra nas mãos dos insensatos. A paz desapareceu da face do mundo. O lado positivo destes acontecimentos terríveis consiste no fato de que não somente os cristãos, mas também os não crentes são instantemente convidados a alargarem seus espíritos e ultrapassarem os limites estreitos de seus instintos ou culturas nacionais, para pensar nas dimensões de toda humanidade. Nós podemos, por vezes, observar e até com bastante freqüência, movimentos contrários ao que acabamos de dizer: povos pouco numerosos e pouco desenvolvidos aspirando à independência; estas aspirações geralmente completamente antípodas das necessidades autênticas dos homens sempre existiram na História paradoxal da humanidade caída.
Para o Padre que celebra hoje o sacrifício não sangrento, tornou-se impossível limitar-se unicamente as necessidades locais, esquecendo-se do resto da humanidade que se debate convulsivamente no aperto infernal da raiva mútua e da violência. Nossa época contemporânea tem muito, por estar carregada de catástrofes escatológicas, que se preparar, a oração cristã não deve enfraquecer face à esta situação aparentemente sem esperança. Ela deve, ao contrário, crescer em intensidade: nós estamos lançados na primeira linha de uma imensa batalha espiritual.
Ela é muito elevada, a ciência do espírito evangélico: ela é inacessível à nossa força natural – aquela da nossa natureza em seu estado de queda. A experiência bi-milenar de nossa Igreja na ascese da penitência mostra no entanto que uma força espiritual pode ser dada do Alto ao homem; ele toma-se então capaz de suportar uma compaixão sobrenatural. Nosso corpo presente – com seu aparelho psíquico – é incomparavelmente mais fraco do que o espírito: “O espírito está pronto mas a carne é fraca” (Mt. 26, 41). Nosso “composto” corporal só segue o movimento do nosso espírito em direção a Deus até um certo nível, depois do qual ele fica esgotado. A compaixão nos mata. O instinto de conservação nos fecha os olhos, afim de não vermos as inumeráveis angústias que abatem nossos semelhantes. Porém aquele que provou do Espírito de Cristo, não pode recusar de encontrar este oceano de males; ele não pode deixar de se unir à oração do Senhor que nos deu um “exemplo” 00. 13, 15). Porque Ele orou pelo mundo inteiro, nós devemos também, vivermos com Ele e termos os mesmos sentimentos que Ele (Fp. 2, 5). O quê é particularmente indispensável para o Padre, se ele aspira entrar ainda mais na visão universal da Liturgia.
Não existe, na realidade, outro cálice litúrgico além daquele, único, que o Senhor Ele-Próprio ofereceu(,) antes de Seu êxodo, em vista do sacrifício de redenção. Ele somente é verdadeiramente Sacerdote. Pela sua benevolência, a Liturgia – ainda que ela não possa ser repetida – se re-intera durante os séculos. É na re-interação deste mistério – eterno em sua essência – que se manifesta sua atualidade, sua presença constante nos limites da História. A Liturgia indivisÍvel se divide e se partilha sem cessar até os confins do mundo. A câmara alta de Sião cresce de maneira admirável, afim de tomar¬ se acessível às gerações sempre novas” dnqueles que n’Ele crêem (ver Jo. 17, 20). Pela santa comunhão, Cristo reúne Seus fiéis na unidade que o nosso Criador nos fixou como tarefa: criados” à imagem e à semelhança”, nós somos chamados à unidade, à imagem da Trindade Santa.
Pai Santo, guarda em Teu Nome aqueles que Me deste,
para que sejam um, assim com Nós” (Jo.17, 11).
Em sua realidade eterna, a Liturgia é sempre a Páscoa do Senhor, presente conosco. Antes da vinda do Senhor, a Páscoa judia consistia na reminiscência de um acontecimento histórico: a passagem do Povo de Israel através do Mar Vermelho como libertação da servidão egípcia, protótipo de todas as servidões. Todavia, a Páscoa cristã é a libertação do pecado e da morte; a passagem de condições particulares e limitadas para condições universais e divinas; a ascensão das coisas terrestres da existência para aquelas celestes, da imortalidade. E isto nos é outorgado de o realizar em Sua memória (Lc. 22, 19), em Seu Nome. O Cristo – centro verdadeiro do universo – é o centro de nossa atenção. “Todns as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nadn do que foi feito se fez” 00.1,3). É lá que se encontra a mudança radical do caráter de nossa festa pascal. A Liturgia inteira, em seu caráter essencial, nada mais é do que a memória de Cristo, e não de algum fato histórico. Uma “memória” compreendida como entrada viva na esfera do Espírito do Cristo, em suas dimensões divina e terrestre. É Ele o sentido e a luz da Páscoa cristã.
A atualidade eterna da Liturgia é igualmente enfatizada pelo conteúdo da oração que todos os fiéis recitam antes de comungar aos Santos Mistérios do Corpo e do Sangue de Cristo: “Recebe-me, Senhor, neste dia, na Tua mística Ceia”. Neste “neste dia”, este agora, não existe nem passado, nem futuro, mas somente o presente. Por esta oração, nós pedimos novamente de sermos acolhidos no seio da divindade eterna da Santíssima Trindade.
A alma do Padre, inevitavelmente, será várias vezes abatida vendo tantos sofrimentos, injustiças e violências. Estes horrores e a aparente absurdidade da maioria das ações humanas, são os sinais do estado de queda do nosso mundo. É por uma ascese perseverante que devemos manter – sem diminuição – nossa inspiração pela oração litúrgica em favor da humanidade toda inteira. Todas as paixões e os horrores do pecado – seja em nós mesmos ou nos outros que estão em tomo de nós – constituem o conteúdo cotidiano desta oração universal. O dever do Padre é o de repetir imutavelmente, no tempo, o ato divino da redenção do mundo, realizando assim o Mandamento de Cristo: “Fazei isto em memória de Mim”. “Memória” viva, como presença visível, na história do mundo, da oração do Senhor no Gêtsemani e de Sua morte sobre a Cruz no Gólgota.
A Liturgia é, em sua realidade espiritual eterna, um sacrifício pelos pecados da humanidade. Eis porque, quando encontramos em nós ou fora de nós a massa esmagadora dos pecados, não cessamos de permanecer no interior do ato litúrgico. Se guardarmos uma tal consciência do sacerdócio, toda a nossa vida tornar-se-á um serviço pela salvação do mundo. Tal é a essência do dom que Deus nos faz, com “sacerdócio real”.
Ser portador da graça do “sacerdócio real” (I Pe.2, 5 e 9) é possível mesmo sem estar revestido da dignidade sacerdotal. A essência interior deste sacerdócio é a de orar pelo mundo inteiro, seguindo o “exemplo” 00. 13, 15) do Senhor, Ele¬Próprio. Para nós, homens, a medida última que nos é acessível é a de orar pelo Adão total, tal como por nós próprios. Uma tal oração torna-se (o) sinal de que se restabelece em nós a “imagem” segundo a qual o homem fora criado (Gn. 1, 26). Os sofrimentos e a Ressurreição de Cristo concederam esta graça para a humanidade (ver Lc. 24,46-49). Todos aqueles que crêem no Filho de Deus são chamados a acolher este dom de Deus: “Estar revestido do sacerdócio real”. Esta bênção não tem preço, e se adquire por uma longa e dolorosa ascese.
FONTE: Boletim Interparoquial da Diocese do Rio de Janeiro – Olinda e Recife
da Eparquia do Brasil, sob a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Polônia / Julho-2007
