O Ciclo Litúrgico da Grande Quaresma

O Ciclo Litúrgico da Grande Quaresma

Pe. Pavlos Koumarianos, Ph.D.
Tradução: Pe. Pavlos Tamanini

Iniciamos, em clima de oração, uma das mais belas jornadas do tempo litúrgico: a Grande Quaresma. Assim, com oração e jejum, a noiva – a Igreja –, inicia o caminho íngreme do Gólgota rumo ao seu amado esposo – Cristo. Em poucas palavras, poderíamos dizer que este é o objetivo do período quaresmal: através de exercícios ascéticos e da participação dos fiéis nos ofícios litúrgicos, a Igreja convida e orienta a todos a participar da Sagrada Paixão do Senhor, carregando com Ele a cruz, partilhando de seu peso e carga.

Se a Cruz de Cristo foi um ato de extremo esvaziamento, um profundo ato de erradicação de todas as sementes de egoísmo e de absoluta dedicação ao mistério da alteridade, então, a Igreja oferece aos fiéis esta mesma experiência através das diversas práticas litúrgicas e ascéticas do período quaresmal. Certamente, o tema focado nas homilias neste período, é o aspecto litúrgico; porém, não podemos separar o aspecto litúrgico do aspecto ascético, porque na Tradição Ortodoxa eles estão tão intimamente interligados que qualquer separação pode parecer mutilação: Liturgia e Ascese caminham juntas, lado a lado!

Neste contexto, vamos examinar os elementos básicos das práticas litúrgicas do período da Grande Quaresma. Quais são as peculiaridades que tornam esse período único e distinto de todo o ano Litúrgico?

As peculiaridades desse período poderiam ser listadas assim:

  1. A celebração da Liturgia de Santo Basílio, o Grande, durante todos os domingos, substituindo a Liturgia de São João Crisóstomo.
  2. O ofício do Akathistos em todas as sextas-feiras à noite.
  3. A celebração da Liturgia dos Pré-santificados em todas as quartas e sextas-feiras à noite, com Ofício de Vésperas.
  4. A celebração das Grandes Completas em vez das Pequenas Completas, que é celebrada durante o resto do ano.
  5. Leituras próprias dos Salmos, na liturgia das Horas.
  6. Cânticos e hinos de caráter particularmente penitencial.
  7. Leitura especifica das Escrituras nos sábados e domingos das celebrações eucarísticas.
  8. No decorrer dos tempos, a Igreja associou acontecimentos de sua história aos temas propostos nas leituras das Escrituras.
  9. Outra característica da Quaresma é o pedido de perdão mútuo entre os fiéis, no lugar da despedida e bênção no final dos ofícios de Vésperas.
  10. E, por último, mas não menos importante, podemos enfatizar a prescrição do jejum rigoroso neste período, durante os dias de semana; aos sábados e domingos, o jejum é um pouco abrandado.

A Liturgia de São Basílio e o Akathistos

A liturgia de São Basílio e o Akathistos não são expressões litúrgicas compiladas exclusivamente para a Quaresma. Na Igreja bizantina, por muito tempo, a liturgia de São Basílio foi celebrada todos os domingos e dias de festas. Era a Liturgia Eucarística regular celebrada durante o ano inteiro. A liturgia de São João Crisóstomo só ficou claramente conhecida e difundida no inicio do segundo milênio. A permanência e a conservação da Liturgia de São Basílio, no período da Quaresma, se deu por seu caráter penitencial. Há mais duas razões que levaram a Igreja manter a Liturgia de São Basílio durante a Quaresma: a) tempo mais prolongado de oração; b) seu expressivo caráter doutrinal e educativo. A Igreja encontrou no período de Quaresma o ambiente perfeito para celebrar a Liturgia de São Basílio e, desta forma, considerando a sua riqueza teológica, especialmente na sua Anáfora, conservá-la.

Quanto ao Akathistos, podemos dizer que é uma quebra, um intervalo do caráter penitencial da Quaresma. O Akathistos não faz parte do enredo devocional desse período. Está relacionado intimamente com a Festa da Anunciação de Maria, que é celebrada durante a Quaresma. Celebra-se o Ahathistos, geralmente às sextas-feiras à noite com o ofício do Orthros de sábado. O período da Quaresma tem seu caráter penitencial que é abrandado pela alegria na celebração da Festa da Anunciação. Poder-se-ia questionar: o fato de existir uma Celebração Festiva no meio de período quaresmal, como fica a preparação para esta Festa, sem que isso acarrete certos desconfortos ou uma ruptura do fluxo penitencial? Por outro lado, pastoralmente não seria justo nem correto deixar esta Festa da Anunciação sem um período de preparação. Assim, a Igreja se utiliza da celebração do Orthros de sábado, para cantar o Akathistos como a preparação para a grande Festa da Anunciação.

As Leituras da Sagrada Escritura

Após a explicação do caráter litúrgico dos primeiros dois elementos, vamos focar nossa atenção agora nos elementos litúrgicos que têm um caráter essencialmente quaresmal. A espinha dorsal do período de seis semanas da Grande Quaresma é o conjunto das leituras e suas respectivas comemorações dos sábados e domingos que compõem este período. As leituras do Evangelho, aos sábados e domingos da Grande Quaresma, são tomadas do Evangelho de São Marcos, com uma exceção: o Primeiro Domingo da Quaresma, quando o Evangelho é tomado de São João. A Epístola é tomada da Carta aos Hebreus.

Penso que as razões desta escolha são óbvias. Marcos é o evangelista que apresenta Cristo como o protótipo de um Mártir, na verdade, o único verdadeiro e autêntico Mártir. Por se celebrar durante a Semana Santa a Paixão e Morte de Cristo, achou-se mais adequado ler os Evangelhos que dão ênfase ao caráter martirológico do Salvador, ou seja, o de São Marcos.

No que diz respeito às leituras das Epístolas, toma-se a dos Hebreus, que enfatiza o sacrifício de Cristo em favor da salvação a humanidade: «Eis por que Cristo entrou, não em santuário feito por mãos de homens, que fosse apenas figura do santuário verdadeiro, mas no próprio Céu, para agora se apresentar como nosso intercessor ante a face de Deus. E não entrou para se oferecer muitas vezes a si mesmo, assim como o pontífice que entrava no santuário todos os anos para oferecer sangue alheio, do contrário, lhe seria necessário padecer muitas vezes, desde o princípio do mundo; é certo que apareceu uma só vez, ao final dos tempos, para a destruição do pecado pelo sacrifício de si mesmo. Como está determinado que os homens morram uma só vez, e logo em seguida vem o juízo, assim Cristo se ofereceu uma só vez para tomar sobre si os pecados da multidão, e aparecerá uma segunda vez, não, porém, em razão do pecado, mas para trazer a salvação àqueles que o esperam». (Hb 9, 24-28 — leitura da epístola de sábado da 5 ª semana da Quaresma.)

Os temas tratados nos Evangelhos, durante a Quaresma são variados e intensificam, gradualmente, o clima penitencial, à medida que se aproxima a Semana Santa. No primeiro Domingo, Natanael e Filipe querem conhecer Jesus. O Senhor os chama com a expressão: «vinde e vede».

O 2º domingo é dedicado à cura física do paralítico e o perdão de seus pecados. A relação entre este Evangelho e o caráter penitencial da Quaresma é obvia!

O 3º domingo é dedicada ao esvaziamento, à negação e ao sacrifício da cruz, não só de Cristo, mas de todos os fiéis que querem segui-Lo.

O 4º domingo narra a cura de um moço possuído por demônios. Quando os discípulos perguntaram a Cristo porque eles mesmos não foram capazes de curar o menino, Jesus responde dando ênfase ao valor da oração e do jejum como instrumentos de poder para afastar o mal.O jejum e a insistência na oração constituem os principais aspectos da espiritualidade quaresmal.

O 5º Domingo pré-anuncia a voluntária morte de Cristo na cruz: «Eis que estamos subindo a Jerusalém, onde o Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes”. Outro tema tratado é “quem é o maior» entre os discípulos, e Jesus responde que a humildade e o serviço medirão quem é o maior no Reino dos Céus.

Observamos que todos esses temas são, de certa forma, uma continuação dos pontos tratados nos Evangelhos do Triodion: o amor ao próximo e o perdão incondicional.

Os Domingos do período da Quaresma

Nos domingos do Período da Quaresma, além de celebrar os pontos em que cada Evangelho propõe, a Igreja, no decorrer dos tempos, acrescentou algumas comemorações tomadas de fatos históricos, com foco teológico ou pastoral. No Primeiro Domingo comemora-se o “Domingo da Ortodoxia”, quando se veneram os santos ícones; no Segundo Domingo comemora-se São Gregório Palamás e a veneração das Santas relíquias; no Terceiro Domingo comemora-se a Adoração da Cruz; no Quarto Domingo, comemora-se São João Clímaco e, no Quinto Domingo, Santa Maria do Egito.

O conjunto destas comemorações, no período da Quaresma, expõe o aspecto doutrinal, dogmático e prático da vida da Igreja. A ascese e a doutrina, neste período, são apresentadas, não só no seu aspecto conceitual, mas como realidade histórica. Os dogmas fazem parte da história e da dinâmica da Verdade anunciada pela Igreja e vivida pelos seus membros. Não se apresenta apenas o dogma, mas a sua vivência na história: o triunfo da veneração aos ícones, um teólogo que, pela edificação pessoal, tornou-se santo; uma mulher que, pelo sacrifício e purificação, chegou à santidade. Não são apenas noções de santidade que são apresentadas na Quaresma, mas exemplos reais de vidas, cujas relíquias são veneradas. No meio da Quaresma a Cruz é apresentada como sinal de Salvação e por isso ela é venerada. «Adoramos a tua Cruz, ó Mestre, e glorificamos a tua santa Ressurreição».

Hinos sagrados

Os hinos, cânticos e salmos dos Ofícios no Período da Quaresma foram escolhidos respeitando-se o caráter penitencial do Tempo litúrgico. Alias, evidencia-se, sobremaneira, o aspecto penitencial e de purificação dos pecados através destes Hinos. O melhor exemplo disso é o «Cânone de Santo André de Creta», inserido no ofício regular das Grandes Completas dos 4 primeiros dias da 1 ª semana da Quaresma, bem como no Orthros (Matinas) da quinta-feira da 5ª semana.

Os hinos, orações e os cânticos do tempo da Quaresma constituem um excelente aprendizado dos textos espirituais e teológicos. A própria Psicologia e Psicoterapia ensinam sobre o poder curativo e libertador dos hinos e orações feitas no período da Quaresma. Estes hinos, orações e leituras dos Pais da Igreja trazem à luz o que o ser humano tem oculto.

Os primeiros hinos, já cantados no Triodion, nos ensinam sobre as conseqüências do pecado. Eles descrevem a alma humana tão cheia de paixões, de tendências, de fraquezas espirituais, de inclinações que, naturalmente, vão de encontro à vontade de Deus. No entanto, esses hinos não descrevem apenas o aspecto negativo da fraqueza humana. Eles também inspiram otimismo e alegria, na esperança de abrir a possibilidade de retorno a Deus, a possibilidade de salvação através de arrependimento. Ensinam-nos que, se quisermos, podemos lutar contra as paixões e derrotá-las. O mais importante é que estes hinos nos mostram que somos partes integrantes de um corpo místico, a Igreja, onde estamos em comunhão com os irmãos de fé, com os santos, com os apóstolos, com a Theotokos e onde partilhamos o que temos de melhor. Os santos nos auxiliam a caminhar rumo à santidade, intercedendo a Deus por nós, ao mesmo tempo em que são modelos e intercessores nossos. Quando falhamos, não estamos sozinhos; podemos contar com a ajuda dos irmãos e com a ajuda dos santos. Assim, mesmo sendo pecadores, somos santificados pela graça, desde que nos arrependamos e peçamos perdão, e estejamos inseridos e em comunhão neste Corpo Santo que é a Igreja.

A Liturgia dos Pré-Santificados

A Liturgia dos Pré-Santificados é a expressão da sabedoria litúrgica e pastoral da Tradição Bizantina, pensada para o Período da Quaresma. Em Bizâncio, a liturgia dos Pré-santificados era celebrada diariamente. Na luta espiritual da Grande Quaresma, os fiéis, mais do que nunca, necessitam do reforço da Santa Comunhão que é dada aos fieis na celebração dos Pré-santificados. É interessante observar que, embora os fiéis possam receber a Santa Comunhão, não há consagração nesta Liturgia. A consagração se dá na oração da Anáfora que é suprimida nesta Liturgia. Se compararmos a Divina Liturgia com a Liturgia dos Pré-Santificados, é justamente a parte da Anáfora que falta. A Anáfora não é somente a parte da Epíclese, mas, sobretudo, uma oração de oferecimento dos Santos Dons a Deus. O ato de oferecimento dos Santos Dons reveste-se de um caráter festivo e triunfante, inadequado no período Quaresmal. Assim, os Santos Padres formularam a Liturgia dos Pré-Santificados na qual a Anáfora é suprimida, mantendo, no entanto, a distribuição da Santa Comunhão aos fiéis. A Sagrada Comunhão é dada aos fiéis após longas orações penitenciais e de purificação.

Jejum e devoção

A Igreja, através dos séculos, na formulação dos ofícios e celebrações próprias do tempo quaresmal, buscou reunir elementos litúrgicos com outras comemorações. Manteve a Liturgia de São Basílio para os domingos da Quaresma; acrescentou Salmos e cânones para os diversos Ofícios da Liturgia das Horas; utilizou a versão mais longa das Completas. O mesmo pode ser observado com a prática do jejum: Nos primeiros séculos observava-se apenas dois dias de jejum antes do Domingo de Páscoa. Estes dois dias se tornaram, mais tarde, uma semana. Depois, no século 4º, em Roma, 3 semanas; Ainda no 4º século, no Egito, passou para 5 semanas. este período de 5 semanas cresceu para 6 semanas em Antioquia e Constantinopla, no 4º século; em Jerusalém no 5º século; em Alexandria, no 7º século. Desde o 4º século os monges da Palestina prolongaram o jejum para 8 semanas.

É realmente difícil compreender este acréscimo do número de semanas de jejum, assim como o aumento do tamanho e quantidade de orações, hinos, prostrações e outras práticas litúrgicas. Já no Ocidente, observa-se, na prática, um caminho contrário: cada vez mais se vai reduzindo o tempo de jejum e as orações do período da Quaresma. Entretanto, a Igreja exorta que a paciência, a oração e o jejum são partes integrantes deste período e devem ser respeitadas como santa Tradição.