Rito e cultura no Oriente

Rito e cultura no Oriente

Todo rito é a expressão de uma cultura. Por cultura entendamos fórmulas de oração, gestos litúrgicos, os cantos, as maneiras de decorar as igrejas, o estilo das pinturas ou da música sacra, em resumo, todo um conjunto a exprimir uma alma, um fundo de tradições, de pensamentos, gostos e sentimentos, transmitidos através dos séculos. De tudo isso o rito é a síntese expressiva.
O rito bizantino-eslavo é um rito de monges, composto por eles e para eles, inalterado desde séculos, como um velho mosteiro que os ruídos de fora não perturbam, surdo aos apelos das multidões inconstantes, sempre idêntico a si mesmo, mais sensível às controvérsias teológicas dos Concílios da Calcedônia e de Éfeso que aos movimentos de ação social ou de apostolado operário. Rito austero, com seus ícones de fisionomias ascéticas, hieráticas. Esses monges associaram a santidade ao silêncio, à prece, às longas noites de oração, aos jejuns, muito mais que ao apostolado ardente de um Francisco Xavier. Monges «enclausurados» que não se ocupam com o apostolado; que, segundo a expressão saborosa de Thomas Merton, “deixam os outros em paz”.
Apenas, para as multidões eslavas, sua vida mesma é já um apelo, e o rito é a expressão desse apelo mudo para a Beleza e a contemplação. Tal apelo traduziu-se neste senso do sagrado que o povo possui de forma tão acentuada, tão delicada que o revolta em face de nossas madonas mimosas, nossos “menino-Jesus” engraçadinhos, diante do mundanismo convencional de certas expressões de nossos santos. Os seus próprios santos, as imagens, têm muitas vezes alguma coisa de duro: nunca os traços fisionômicos exprimem a beleza humana plástica, mas neles transparece a luz espiritual.
Muitos outros elementos seriam de notar-se, a prender intimamente o rito eslavo à cultura do Oriente, distinguindo-o profundamente de outras expressões religiosas. Quereríamos insistir sobre o caráter contemplativo, passivo desse rito e da cultura que ele representa e à qual se acha indissoluvelmente ligado. Sem dúvida a oração ocidental contém também um elemento contemplativo, mas o Oriente e o Ocidente resolveram de forma diferente o dilema proposto pela contemplação. Como a alma que recebeu o tesouro das graças divinas, apreciando-lhe devidamente o valor e desejando levar outrem a participar de sua ventura, poderá assegurar essa comunicação, sem deixar de respeitar a liberdade desse outrem? Como não se arriscar a violar a intimidade das consciências, mesmo do modo mais inocente?
Em todo esforço religioso distinguem-se dois momentos antitéticos na resposta às graças de união. Num primeiro momento, Deus se dá e a alma é transportada de júbilo. Mas a alegria que vem de Deus tende a derramar-se sobre outrem, a comunicar-se; como todas as coisas boas, a alegria é expansiva, difusiva, irradiante. Mas há um escolho ameaçador no segundo momento: é impor aos outros nosso modo pessoal de participar da alegria divina. “Um dos piores erros da alma contemplativa”, escreve Thomas Merton, “é o zelo intempestivo que tenta fazer participarem os outros do conhecimento da própria contemplação, supondo que todos hão de querer encarar as coisas como nós, do nosso ponto de vista.”
Nas respostas diferentes oferecidas a essa dificuldade pelo Oriente e pelo Ocidente se revela a diferença de suas culturas. O Ocidente assimilou, sobretudo, o preceito do Senhor: “Ide, ensinai a todas as nações.” Os ocidentais tentam operar pelo ensino a difusão das realidades contempladas. O apóstolo transmite um ensinamento por via de autoridade: pretende submeter os espíritos ao Cristo que o enviou. Donde a necessidade de difundir a verdade e denunciar o erro. Se o apóstolo apresentasse o seu próprio ponto de vista para impô-lo aos outros, arriscar-se-ia a merecer a censura de zelo intempestivo; mas ele fala por via de autoridade, quer dizer, em nome de outro, em nome do Cristo.
O Oriente entende as coisas de outra maneira. Ele conhece também a necessidade de comunicação do contemplativo; mas, como a contemplação é, antes de tudo, para o oriental, comunicação com a beleza, e a Beleza é essencialmente gratuita (ela não se impõe, propõe-se a uma liberdade), ele não vos pedirá que a reconheçais, contentar-se-á em compreende-Ia e fartar-se dela, conforme a expressão forte dos livros santos. Para tornar os homens contemplativos, apaixonados pela Beleza, deve-se “deixá-los em paz” (Tomas Merton), não se fará nenhuma propaganda, nenhum proselitismo; o cristão mostrará essa Beleza e tomá-Ia-á à saciedade. Também a oração do Oriente é especialmente uma oração de louvor, sem finalidade terrestre; nela a súplica aparece muito raramente. Ela traduz primeiro o êxtase do amor humilde.
Ao contrário da cultura ocidental, a do Oriente não conhece autoridade; cada um obedece, pouco mais ou menos, apenas ao starets que escolheu. A ação religiosa não se orienta para o sucesso das empresas; ela se basta a si mesma.
Percebe-se, pois, a diferença das maneiras pelas quais se quer evitar o escolho a que nos referimos. O Ocidente fala por autoridade e faz apelo à obediência. O Oriente evita todo excesso de zelo, não fazendo pressão sobre outrem. Ilustremos esta diversidade pelo exemplo da oração-tipo; o Pater contém duas partes: a elevação da alma (Pai nosso que estais nos céus), depois a súplica (O pão nosso de cada dia nos dai hoje…). Ainda que reconhecida como a mais importante (a oração é uma elevação da alma para Deus), no Ocidente a primeira parte é comumente orientada para as súplicas da segunda parte. Na maioria dos casos a oração oriental contenta-se com o primeiro elemento, o louvor.
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Outras diferenças entre o Oriente e o Ocidente sublinham bem a ligação existente entre o rito e a cultura. Notemos a situação do altar: nas igrejas latinas o altar-mor se encontra no centro de convergência dos olhares; os construtores modernos preocupam-se com a sua visibilidade em relação a todos os lugares em que se colocam os fiéis nas igrejas; todos querem ver o desenvolvimento das cerimônias litúrgicas. Nas igrejas russas, pelo contrário (ela não se abre senão para os ofícios), o olhar esbarra com uma parede cheia de imagens – iconostase -, que impede a visão do altar. Por que, pois, o altar está disposto de modo a ser bem visto, no primeiro caso, e a ficar escondido, no segundo? É porque se trata de dois ritos, correspondentes a duas mentalidades, a duas culturas. Uma é apaixonada pela clareza, é a cultura latina. A claridade é para ela sinal de verdade, vitória sobre as trevas do pecado e da incredulidade. O verdadeiro é claro, a claridade é indício de vida. A outra cultura é mais atraída, polarizada, pelo mistério; o oriental não se espanta com o mistério, precisa dele.
Em 1929, em Velehrad (Tchecoslováquia), na capela Cyrilka, muito venerada pelos morávios, o arcebispo de Olomouc me pedira para fazer um iconostase conforme a disposição das igrejas orientais e de modo a comemorar o apostolado em eslavo dos irmãos Cirilo e Metódio. Os camponeses morávios, católicos de rito latino, que assistiram à inauguração, logo me pediram que os deixasse ver o que o iconostase ocultava. O fato de estar escondido o altar desconcertava-os. Queriam examinar o que havia de misterioso. Diante dos objetos do culto, o “discos”, o cálice, os pães, o candelabro de sete braços, a “darochranitelnitza”, queriam descobrir algum mistério fabuloso, algum sortilégio. Desejavam desvelar o mistério para satisfazer a sua necessidade de claridade, de compreensão. Os russos, ao contrário, respeitosos do mistério, abster-se-iam por certo de pedir para penetrar no santo dos santos. O mistério deve permanecer inviolado; é assim que é objeto de fé suprema.
Enquanto o ocidental busca acompanhar todos os gestos do padre, pedindo que se lhes explique tudo nas missas dialogadas, o oriental se recolhe em amor humilde e repete: “Kyrie eleison” (Senhor, tem piedade). O ocidental procura ver Jesus na hóstia; para corresponder a seus desejos, multiplicam-se as exposições, as bênçãos, procissões, como para trazer uma claridade que dissipe o claro-escuro da fé. Ao passo que o oriental tem menos desejos de compreender que de adorar.
O oriental não vai aos ofícios do domingo tanto para cumprir um preceito quanto para responder a uma necessidade de sua alma, esquecer as preocupações materiais da vida, subtrair-se ao mundo do pecado, sentir-se um momento como que transportado a um outro mundo. Ele espera o culto dominical como uma recompensa pela sua semana; aí ele se sente longe da terra, melhor. Assim o ortodoxo fica admirado, escandalizado até, quando toma conhecimento de que a Igreja católica prescreve aos fiéis assistirem a missa “sob pena de pecado grave”. “Nós vamos”, responde, “não sob ameaça, mas por necessidade da alma”. De um lado, o senso de um dever a cumprir, a submissão aos preceitos da Igreja; de outro, uma necessidade de alargamento, de subtração aos cuidados da vida ordinária, uma aspiração para uma atmosfera pura num ambiente sagrado.
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Não se pode fazer coexistir o rito oriental com as disposições contrárias ao espírito que ele revela. Assim a preferência dada às finalidades práticas seria destruidora da liberdade tal como a compreende a alma oriental. O ocidente não encontra nenhuma incompatibilidade prendendo a liberdade ao exercício da autoridade. O Oriente une a liberdade ao gosto do Belo, para ele critério do verdadeiro.
A compreensão dessas divergências é da maior importância para que nos encontremos em condições de fazer juízos legítimos sobre nossos irmãos do Oriente. Os ocidentais qualificam às vezes de inerte o clero do Oriente, de preguiçosos os seus monges; como se o verdadeiro trabalho produtivo, a eficácia, fossem testemunhos indispensáveis da virtude. Sentem dificuldade em legitimar os quatro longos jejuns da Igreja ortodoxa parecendo sua observância rigorosa impedir o que – segundo o nosso modo de ver – é um bem maior – a ação. Assim, cada um, pelo seu lado, é inclinado a julgar o outro, de maneira talvez injusta, segundo as suas próprias normas.
Há, evidentemente, outros traços da cultura oriental, que explicam as particularidades de seus ritos. Rito e cultura formam, de fato, um todo vivo, como um organismo requer certas condições exteriores para crescer.
Aos que querem impor ao Oriente suas maneiras de ver e de fazer, é preciso propor a questão: Estais bem certos de que essas coisas que por justo motivo vos são caras sejam indispensáveis à vida religiosa daqueles que participam de cultura tão diversa da vossa? Meditai o exemplo do Cristo, que tinha escrúpulo em alterar pela sua própria vontade a Mensagem recebida do Pai. “Minha doutrina não vem de mim, mas daquele que me enviou”. São Paulo repete com freqüência os seus títulos de apostolado, para deixar bem claro que não fazia mais que obedecer, junto aos gentios, à inspiração que o ultrapassa, a ele, a seus gostos, sua formação nacional, sua cultura…
Se, apesar de tudo, se pensasse dever latinizar toda a Igreja, seria preciso abandonar toda pretensão de União das Igrejas do Oriente, contentando-se apenas com a adjunção dos indivíduos que quisessem unir-se à Igreja latina. Deve ficar bem claro, de qualquer forma, que seria desonesto celebrar como os ortodoxos, usar ritos orientais, rejeitando as culturas que esses ritos implicam, como se se pudesse fazer passar o espírito latino sob o rito oriental.
A conclusão se impõe: desde que a Igreja católica decidiu reconhecer os ritos do Oriente, pelo mesmo fato aceitou reconhecer as culturas a eles ligadas, e o mesmo se dá com o rito e a cultura dos latinos.

FONTE: Revista VERBVM, PUC RJ, Tomo XVIII – Setembro-Dezembro/ 1961, Fascículo 3-4