O canto litúrgico na tradição bizantina grega

Quando a voz masculina canta Deus!
Manuel NIN*, osb
Professor de liturgias orientais

A música litúrgica no Oriente desenvolveu-se sobretudo sob o ponto de vista vocal. São as vozes dos cantores, geralmente homens, e muitas vezes as de todo o povo, que marcam o desenrolar-se da liturgia.

Testemunhos do canto litúrgico, ou se quisermos da liturgia cantada, na tradição bizantina grega encontram-se já nos textos dos Padres a partir do IV século. É suficiente citar as composições hinográficas de santo Efrén, o Sírio (†373) com indicações – não observações, mas frases simples – de carácter musical hoje indecifrável: são textos muito compridos que eram cantados por todos ou por um cantor ao qual o povo respondia com um refrão.

Este papel central da voz no canto litúrgico tem um carácter original que vem da tradição antioquena e em estreita ligação com as tradições siríacas orientais e ocidentais. Até ao século IX, sobretudo após a crise iconoclasta, não há observações musicais.

Celebrada hoje em muitos Países mediterrâneos, desde o Próximo oriente até à Calábria e à Sicília, a liturgia bizantina grega possui tradições específicas de todos os lugares, mas também características comuns. São composições musicais de carácter monódico, ou seja, cantadas sem instrumentos musicais por uma ou mais vozes, segundo os casos, mas sem a polifonia que se desenvolveu sobretudo nas liturgias da tradição bizantina eslava.

Não há instrumentos musicais, é a voz humana o único instrumento no louvor de Deus e na proclamação da Palavra. Portanto, pode-se dizer que a tradição bizantina grega desfruta a voz e o canto como modo para exprimir a oração litúrgica.

Qual é a função do cantor, e sobretudo da voz, na liturgia bizantina grega? Em primeiro lugar, o canto dos textos litúrgicos está estruturado a partir do oktoèchos, ou seja, do conjunto de oito tons musicais diversos ligados, por sua vez, com um conjunto de textos poéticos previstos para um ciclo de também oito semanas. São composições que datam de um período entre o século V e o IX, obras de teologia poética de autores anónimos ou de grandes hinográficos, como Romano o Melode ou João Damasceno. Estes oito tons musicais são aplicados aos diversos textos litúrgicos bizantinos durante o ano litúrgico.

Em segundo lugar, a voz singular tem um papel fundamental na recitação e na oração dos Salmos ou dos versículos do Saltério, livro bíblico atribuído a David, rei e profeta, que possui um lugar muito importante na tradição bizantina, sobretudo na praxe monástica. Cada salmo é recitado por um leitor, com uma leitura que muitas vezes não é uma simples declamação privada, mas com uma entoação vocal que não somente permite seguir o texto, mas também, e sobretudo, orar com o salmista.

Em terceiro lugar, em todas as liturgias cristãs, do Oriente e do Ocidente, o Evangelho é cantado pelo diácono, para o anunciar através da beleza e da força do canto. Contudo, a melodia nunca sacrifica, pelo contrário deste modo realça o valor e o sentido do texto, a beleza e a força da palavra daquele que a liturgia, com o livro dos Salmos (44,7) proclama como «o mais belo entre os filhos dos homens».

Em quarto lugar, têm uma função importante as vozes ou os tons melodiosos do bispo ou do sacerdote celebrante durante as orações ao longo da liturgia e sobretudo na anáfora, também ela cantada a partir dos oito tons já mencionados, e o do diácono no canto das diversas ladainhas no decorrer da celebração.

Por fim, em último lugar, realçam as melodias para os textos particulares ou próprios durante o ano litúrgico. Trata-se de melodias que muitas vezes entraram na alma do povo fiel que as canta e, deste modo, torna-se realmente concelebrante da liturgia, sobretudo durante a liturgia da Semana Santa.

Um destes casos específicos é o canto dos Enkòmia no matutino do Sábado Santo, cuja melodia tornou­ se um patrimônio que entrou no coração dos fiéis bizantinos. Trata-se do elogio fúnebre de Jesus formado por 176 estrofes divididas em três grupos que foi composto entre os séculos XII e XIV. O canto dos Enkòmia é feito diante do túmulo de Cristo, colocado no centro da igreja, e as estrofes são cantadas de modo alternado por dois coros, por vezes entrelaçadas com versículos do longo salmo 118.

A música, o canto forte e realmente sentido destas estrofes fazem do povo fiel o verdadeiro celebrante, que encarna as diversas personagens da composição poética, assumindo a dor, o pranto e a alegria.

O papel do canto, da voz melodiosa na tradição bizantina, nos mosteiros, nas catedrais, nas igrejinhas dos campos, é fundamental, seja pela beleza seja sobretudo pela força do anúncio da Palavra e pela celebração do louvor a Deus que é Pai, que se revelou plenamente no Filho e que nos santifica no Espírito Santo.

*Manuel Nin, osb, é presbítero catalão, nascido em Tarragona (Espanha) em 1956. Ingressou na Ordem beneditina no Mosteiro de Montserrat, fazendo a profissão solene em 1980, sendo ordenado sacerdote em 1998. É especialista em liturgias orientais. Atualmente é Professor em Roma no Pontifício Instituto “Santo Anselmo”, no Pontifício Instituto Oriental e na Pontifícia Universidade da Santa Cruz; e Reitor do Pontifício Colégio Grego de Roma. Este artigo foi publicado em L’Osservatore Romano – Mulher e Igreja, de 1º de setembro de 2014 e encontra-se disponível no site indicado acima.

A cidade de Bizâncio, que se tornara Constantinopla desde que Constantino a fizera capital do Império (330), é um verdadeiro conservatório da cultura helênica e dos novos costumes cristãos, de onde renascerá o Ocidente cristão culturalmente esmagado pelos bárbaros.

Capital do Império do Oriente (ou Império bizantino) até sua conquista pelos turcos em 1453, principal centro religioso e político da cristandade até o advento dos carolíngios (a Igreja romana se separa então do Império e se coloca sob a proteção dos francos), Constantinopla permanecerá por muito tempo o foco irradiante do helenismo cristão, a pedra angular entre o Oriente e o Ocidente, o cadinho em que se fundem as culturas.

A verdadeira eclosão da música bizantina deve situar-se depois de 398, quando São João Crisóstomo, que se tornou patriarca de Constantinopla, encarrega o mestre da música imperial de compor novos hinos, adaptados à liturgia de que é promotor, juntamente com Basílio, o Grande.

O canto bizantino, essencialmente monódico, pratica uma heterofonia simplíssima, cujas formas mais características são os floreios vocalizados sobre um tema em valores longos e nas grandes sustentações do som fundamental, qualificadas de ison (“igual”), cujo equivalente encontramos na música da Índia e, provavelmente, também na da Grécia.

A liturgia musical bizantina sobreviveu ao Império; ela é, hoje, a da Igreja grega (gregos, servos, albaneses, búlgaros, romenos) e da Igreja russa (que adotou no fim do século X a liturgia musical búlgara, distinguindo-se mais tarde por um estilo especificamente russo, que evolui de forma diferente). Outros ritos do Oriente conservaram em sua música litúrgica o testemunho de seus vínculos bizantinos, mas evoluíram sob a influência da música árabe e das tradições autóctones: são os ritos maronita, sírio, armênio e copta.

O Canto Bizantino influenciou fortemente o Canto Gregoriano.

FONTE:

CANDÉ, Roland de; História Universal da Música – volume I. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1994. (pg. 188-190).

ATENÇÃO: Clique no reprodutor de áudio mostrado no topo (ou no canto superior direito) desta página para ouvir uma seleção dos mais belos hinos litúrgicos ortodoxos.