Santa Melânia, a Jovem

Beatriz de Almeida Moura Guimarães Gonçalves

Melânia, a Jovem em Iluminura do Menológio de Basílio II.

«Um homem que está no mundo não deve ter sobre o monge senão uma única vantagem: a de poder coabitar com sua legítima esposa. Ele tem esse direito, mas de resto, tem o mesmo dever a cumprir que o monge».

(São João Crisóstomo,
VII. Homélie sobre a Epístola aos Hebreus, 4;
Contre les ennemis de l avie monastique
apud FOUCAULT, 2020, p. 313).

Esta, cuja descrição de São João, o Crisóstomo (344–407 d.C.) cabe-lhe perfeitamente, é Santa Melânia, a Jovem (383–439 d.C.). Contudo, ao que antecede a descrição de sua “De Vita”, faz-se mister discorrer alusivamente acerca de alguns eventos, que, pontualmente, conduziram-na ao exemplo de vida em que hoje, 31 de dezembro, é celebrado pela Igreja, o qual os créditos são indubitavelmente partilhados com sua homônima avó, Santa Melânia, a Anciã (350–410 d.C.).

A História de Santa Melânia, a Jovem

Sua beatíssima avó, Santa Melânia, a Anciã, participava direta e indiretamente do monacato, não somente mediante a fundação de um monastério feminino em Jerusalém — onde vivera por 27 anos em companhia de cinquenta virgens (WHITE, 2010, p. 53 apud OSAVA, 2021, p. 616), no Monte das Oliveiras, juntamente com Rufino (MESSIAS, 2014, p. 295), como também por, em virtude do banimento de um grupo monástico de cerca de vinte monges para a Palestina, cujo o responsável fora o prefeito do Egito, auxiliar pessoalmente estes monges exilados (PALLADIUS. The Lausiac history apud SILVA, 2007, p. 86–87).

Esse auxílio tornara-se ainda mais valioso por ter sido exilada da mesma forma que aqueles os quais ajudava e justamente por auxiliá-los. Esta assim fora exilada porque, por obter linhagem nobre, devido a ser filha do ex-cônsul Marcelino, cogitavam que receberiam algum benefício sob extorsão. No entanto, o que fora levado em consideração para seu exílio, fora considerado para sua absolvição, podendo, desta forma, dar continuidade aos seus trabalhos caridosos para com estes monges (SILVA, 2007, p. 86–87).

A mesma que cuidava dos monges e fundava monastérios, persuadia (com seu exemplo e intervenção) tanto aos leigos, como no caso de sua neta, Santa Melânia, a Jovem, como aos membros do clero a adotarem a vida monástica, sendo o caso de Evágrio Pôntico (345–399 d.C), instituído diácono por São Gregório de Nazianzo (330- 390 d.C) (MARÍN, 2018, p. 84) e por esta convertido a monge (MESSIAS, 2014, p. 295).

Outrossim, quando percebera em sua neta determinada inclinação ascética na adoção da vida monástica, e temendo evitar que ingressasse em algum círculo heterodoxo que faziam-se abundantes, visando urgentemente instiga-la pessoalmente, viajou às pressas de Cesaréia da Palestina à Roma. Essa viagem resultou no acatamento do monasticismo por Santa Melânia, a Jovem, e também por outros membros de sua família, sendo estes: sua sobrinha Avita e seu marido Aproniano, bem como sua nora e mãe da Jovem Melânia, Albina (SILVA, 2007, p. 86–87).

A Jovem Santa, que, de acordo com Corassin (1998, p. 20) é considerada a maior herdeira do mundo romano de sua época, distribuíra quarenta e cinco mil moedas de ouro entre Egito, Palestina e Antioquia, destinando outra parte da fortuna às igrejas do Ocidente, bem como vendera suas posses da Espanha, Aquitânia, Tarragona e Gália, retendo as da Sicília, Campânia e África, destinando os rendimentos destes aos mosteiros, simultaneamente providenciando a libertação de oito mil escravos, dentre os que almejavam a alforria, sendo os demais deixados aos cuidados de seu irmão (FURLANI, 2013, p. 308).

Todo o patrimônio herdado supracitado foi o motivo de seus pais, apesar de seu desejo de consagrar-se à virgindade, casarem-na, na idade de quatorze anos, com seu primo Valério Piniano, que tinha a idade de dezessete anos e era filho de um ex-prefeito de Roma. Em virtude de seu almejo à continência, embora tivessem por alguns anos levado a cabo a vida matrimonial, os cônjuges decidiram por viver em continência e, gradualmente, foram se libertando de suas riquezas (CORASSIN, 1998, p. 20).

O apogeu do desapego das posses foi em 410 d.C., na tomada de Roma por Alarico, o qual fixaram-se em Tagaste adjuntos ao bispo Alípio, onde venderam seus bens da Numídia e Mauritânia em prol do auxílio dos pobres e resgate dos prisioneiros, dotando “[…] a igreja deste santo homem com rendimentos e doações, joias de ouro e prata, assim como tecidos preciosos, enquanto esta igreja era anteriormente pobre, de tal forma que o santo (Alípio) se tornou objeto de inveja para o restante dos bispos desta província” (VITA MEL, 21 apud CORASSIN, 1998, p. 21), embora igualmente auxiliasse financeiramente as igrejas dos outros bispos da África: Santo Agostinho de Hipona e Aurélio de Cartago (CORASSIN, 1998, p. 21).

Ao participarem de uma Liturgia em Hipona, o povo tumultuara para ordenar Piniano como presbítero, visto que, nesta época, tinham decisiva influência em eleições eclesiásticas. No entanto, Piniano recusara, onde, a partir dessa recusa, fizeram-no jurar que se aceitasse ser clérigo, somente o seria da igreja de Hipona, pois, de acordo com Santo Agostinho de Hipona: “o comportamento da multidão foi ditado não pela cobiça pelo dinheiro de Piniano, mas pelo desejo de reter junto a si este santo homem” (Santo Agostinho de Hipona, Epist. CXXVI, 11 apud CORASSIN, 1998, p. 21).

De acordo com Gorce (1962, p. 143–145 apud DE SOUZA; VENTURINI, [s.d.], p. 2028), “(…) eles adotaram a prática de sempre fazerem visitas a todos os doentes, sem exceção, para cuidar deles; hospedavam estrangeiros de passagem e não os deixavam partir sem que os cobrissem de muitas provisões para a viagem. Todos aqueles que se encontravam na necessidade e todos os pobres eram assistidos largamente por eles. Visitavam todas as prisões, lugares de relegação e, nas minas, eles libertavam os detidos por dívidas, fornecendo-lhes dinheiro necessário”.

Os fatos hagiográficos supramencionados, situam-se em sua biografia “A Vida de Melânia, a Jovem”, o qual, em subsequência de seu falecimento, fora redigida em grego (século V d.C.), a partir do que Gerôncio, seu biógrafo, presenciara com a Santa e do que ela lhe transmitira. Esta fora redigida devido a encomenda de um padre muito próximo de Gerôncio, que somente o persuadiu da redação em um segundo pedido e sob intensas orientações espirituais, pois, em um primeiro pedido, mediante a escusa de “inabilidade” na escrita, o até então pretendido biógrafo recusara-se. Não obstante, da mesma forma que em Gerôncio, as ações de Santa Melânia, a Jovem, encontram-se nos escritos dos Padres Santo Agostinho de Hipona (354–430 d.C.), São Jerônimo de Estridão (c. 347–420 d.C.) e Rufino(DE SOUZA; VENTURINI, [s.d], p. 2024).

Portanto, ainda com a atuação da Divina Providência na elaboração, conservação e extensão da biografia de Santa Melânia, a Jovem, seus atos fazem-se inquantificáveis, pois “quem então saberá, (…) falar de sua absoluta renuncia às coisas da vida, de seu zelo mais ardente que fogo, pela fé ortodoxa, da sua caridade intransitável, de sua energia em servir e de sua constância em se prostrar por terra — maltrato e misticismo incansável da alma e do corpo, doçura e abstinência rivalizando com os poderes abstratos — da humildade de suas vestes, sua humildade e de todo o resto, da mãe de todos os bens (GORCE, 1962, p. 127 apud DE SOUZA; VENTURINI, [s.d.], p. 2025)?

REFERÊNCIAS

CORASSIN, Maria Luiza. Caridade compulsória: formas de pressão popular na sociedade romana tardo-antiga. Revista de História, n. 138, p. 17–25, 1998.

DE SOUZA, Murilo Moreira; VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. O MONASTICISMO NA BIOGRAFIA DE MELÂNIA, A JOVEM. [s.d].

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: as confissões da carne. Tradução de Heliana de Barros Conde Rodrigues e Vera Porto Carrero. 1ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2020. v. 4.

FURLANI, João Carlos. Reflexões sobre a História Social das mulheres na Antiguidade Tardia: o caso das devotas cristãs. Revista Cadernos de Clio, v. 4, n. 1, 2013.

MARÍN, Antonio Royo, O.P. Grandes mestres da vida espiritual: história da espiritualidade. Tradução de Ricardo Harada. Campinas, SP: Ecclesiae, 2019.

MESSIAS, T. Evágrio Pôntico. Atualidade Teológica, v. 17, n. 44, 2014.

OSAVA, Marcelo Massao. A atuação das mulheres nos primeiros séculos do cristianismo: A fé operante pela caridade. Annales Faje, v. 6, n. 1, p. 613–619, 2021.

SILVA, Gilvan Ventura da. Ascetismo, gênero e poder no Baixo Império Romano: Paládio de Helenópolis e o status das devotas cristãs. História (São Paulo), v. 26, p. 82–97, 2007.