Exaltação da Santa Cruz
SUBSÍDIOS HOMILÉTICOS
A Festa da «Exaltação da Santa Cruz»
A pregação da Cruz é uma necessidade para os que se perdem; mas para os que se salvam – para nós – é força de Deus. Diz a Escritura:
«Destruirei a sabedoria dos sábios, e inutilizarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde o douto? Onde o sofista deste mundo? De fato, como o mundo através de sua própria sabedoria não conheceu Deus na divina sabedoria, quis Deus salvar os crentes através da necessidade da pregação. Assim, enquanto os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos a Cristo crucificado: escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os chamados, tanto judeus quanto gregos, um Cristo, força de Deus e sabedoria de Deus1».
As palavras do apóstolo Paulo, lidas na solenidade da Exaltação da veneranda e santificadora Cruz, marcam o sentido inequívoco que, desde o princípio, tivera para os cristãos o patíbulo dos malfeitores, que era a cruz. Por que, pois, estranhar-se que a Igreja a tenha considerado objeto de culto particular?
Romano o Melode, imaginando um diálogo entre o diabo e o inferno, põe na boca do primeiro as palavras:
«Belial, é tempo de abrires o ouvido. A hora presente far-te-á ver o império da Cruz, e o grande poder do Crucificado. Para ti, a Cruz não é senão loucura; porém toda a Criação a considera como um trono desde que, nela cravado, escuta Cristo como juiz em atividade [2].
A forma de cruz das igrejas antigas, inclusive hoje nas de tradição bizantina, evoca a virtude ou força da ação redentora desse sinal.
A Cruz defende a todos do maligno e de seus ataques. Os marcados com o sinal de Cristo têm a esperança confiante de entrar no paraíso [3].
Nas igrejas bizantinas, atrás do altar e no ponto mais alto do Iconostase, destaca-se a Crucifixãoat com o objetivo de que, de qualquer ponto do templo e a todo momento, possa atrair o olhar dos fiéis para a Árvore da Vida, plantada no novo paraíso universal, frondosa e muito mais honorável que a do Éden». [5]
De modo que, instruídos sobre a adoração da Cruz, feita de matéria comum, rendamos nossa adoração, não à matéria, mas àquele nela crucificado. Após ter degustado a morte sob a árvore proibida, Adão volta à vida sob a árvore da Cruz. Pode, Senhor, de agora em diante saborear de novo as delícias do paraíso. Em Adão está representada toda a linguagem humana, pelo que, também nós, gozamos de idêntico benefício, pois, como outro paraíso, a Igreja possui atualmente uma árvore da vida: a Cruz vivificadora de Cristo. Saboreando seu fruto, alcançamos a imortalidade. [7]
Além dessas citações, por assim dizer externas, são vários os Ofícios que recordam a importância da Cruz na economia de nossa salvação.
O ciclo litúrgico semanal dedica-lhe a Sexta-feira; e cada dia, na liturgia das Horas, a Hora Nona, que foi a da morte na Cruz. [8]
Encontramos, além disso, no calendário, algumas festas dedicadas à Cruz nas quais se celebra o mistério: umas são móveis, outras fixas.
As festas móveis são:
a) A grande Sexta-Feira Santa. No Ofício da Paixão, e cantando o hino:
«Hoje foi colocado no lenho aquele que sustém a terra sobre as águas. É coroado de espinhos o Rei dos anjos. Púrpura injuriosa é a veste de quem cobrira o céu de nuvens. Recebe cusparadas aquele que no rio Jordão libertou Adão de seu pecado. Cravado é o Esposo da Igreja, transpassado pela lança o Filho da Virgem. Teus sofrimentos, Cristo, hoje veneramos; mostra-nos também a glória de tua
ressurreição». [10]
Leva-se processionalmente a Cruz, depositando-a depois no centro da nave para que possa ser venerada pelo clero e o povo fiel [11]
b) Terceiro Domingo da Quaresma. Denomina-se, por isso, Domingo da Adoração da Cruz. Trata-se de uma festa tipicamente constantinopolitana, que teve origem no translado de uma relíquia insigne da Cruz para a capital do Império. Segundo alguns liturgistas, tal festa tinha nascido relacionada com a reposição da verdadeira Cruz de Jerusalém pelo imperador Heráclio, no dia 21 de março de 631, após tê-la resgatado dos persas, que a tinham roubado como despojo de guerra. [12]
A cerimônia litúrgica segue o seguinte programa: no sábado, após as Vésperas, translada-se a relíquia da Santa Cruz para o altar, onde fica exposta durante toda a noite. Os cânticos de Matinas compostos por Teodoro Studita (758-826), [13] vão expressando os temas da festa:
«Dia de adoração da Santa Cruz! Todos se acercam para adorá-la! Vede-a exposta perante nós: brilha com os esplendores da ressurreição de Cristo. Vamos, pois, com alegria espiritual, render-lhe veneração».
Terminadas as Matinas, o celebrante faz uma procissão na própria igreja, carregando a Cruz no alto para colocá-la finalmente na mesa diante do Iconostase. Vão todos se aproximando para adorar a sagrada relíquia, enquanto cantam:
«Tua Cruz, Senhor, adoramos e proclamamos tua santa ressurreição. Salva teu povo, Senhor, e abençoa tua herança; concede aos governantes14 vitória sobre os bárbaros; e dá-nos, por tua Cruz, parte em teu reino».
A homilética sobre essa festividade insiste no seguinte:
Hoje, mostra-se a Igreja de Cristo como novo paraíso: ao expor o santo madeiro da Cruz, antecipa a Paixão e a Ressurreição. [15]
As duas solenidades móveis vêm coroadas de outras três fixas, com a ordem seguinte, no calendário bizantino: [16]
a) A Exaltação17 universal da veneranda e vivificadora Cruz, que se celebra no dia 14 de setembro e da qual falaremos mais extensamente.
b) A memória da aparição celeste do sinal da Cruz, cuja celebração tem lugar no dia 7 de maio.
Comemora-se, então, a aparição, no céu de Jerusalém, do sinal da Cruz quando era imperador Constâncio, filho de Constantino o Grande, durante o episcopado de São Cirilo de Jerusalém.
A aparição deu-se precisamente no dia 7 de maio de 351, na terça-feira antes da Ascensão, pelas nove horas da manhã: foi visível durante muitas horas e para todos. Marcava no céu o espaço compreendido entre o Gólgota e o Monte das Oliveiras. [18]
O caráter protetor e salvífico da Cruz, como determinante dessa festividade, vem sintetizá-lo a oração própria desse dia que assim diz:
«Abre-me os lábios, ó Rei dos séculos, ilumina minha mente e meu espírito, e santifica minha alma para poder, ó Verbo, louvar tua Cruz venerada; envia teu Espírito e instrui-me, de sorte que possa exclamar com amor: Salve, ó Cruz, glória do universo! Salve, ó Cruz, fortaleza da Igreja! Salve, inexpugnável bastião dos sacerdotes! Salve, diadema dos reis! Salve cetro do soberano Criador de todas as coisas! Salve, ó Cruz, na qual Cristo aceitou padecer e morrer! Salve, grande consolo dos aflitos, arma invencível no meio da luta! Salve, Cruz, ornato dos anjos e proteção dos fiéis! Salve, ó Cruz, pela qual foi o inferno derrotado! Salve, ó Cruz, pela qual fomos redimidos! Salve, lenho bem-aventurado! [19]
c) A procissão da preciosa e vivificadora Cruz, que se celebra no dia primeiro de agosto. Tal como a que coincide com o Terceiro Domingo da Quaresma, também essa festa teve origem em Constantinopla. A relíquia da Cruz ia expondo-se em diversas igrejas, retomando ao palácio imperial a 14 de agosto; longa procissão estacional, pois, com demoradas estações nas várias igrejas. A finalidade era conjurar as enfermidades motivadas pelos calores estivais, por um lado, e santificar, por outro, as ruas da «cidade construída por Deus». [20]
Um dos hinos da festa nos manifesta a profunda veneração de que era objeto nesse dia a Cruz do Senhor, assim como a confiança depositada nela:
«Veneremos a Cruz preciosa, remédio universal e fonte de santidade. É lenitivo das dores, desterra a enfermidade e livra de todo sofrimento os enfermos».
E agora, após breve análise sobre as festas litúrgicas, nas quais as igrejas de tradição bizantina dedicam especial atenção à Cruz, detenhamo-nos para refletir sobre a festividade da Exaltação:
A festa da «Exaltação Universal da preciosa e vivificadora Cruz» surge em Jerusalém. Lê-se em um discurso do monge Alexandre [21] sobre essa festividade que …
a imperatriz Helena – mãe de Constantino, o Grande – assegurava ter tido uma visão celeste, na qual se ordenava ir a Jerusalém para descobrir os santos lugares durante tanto tempo ignorados (.. .). Ante a dúvida e as vacilações de não poucos, exorta todos a uma fervorosa oração. Logo vem a ser descoberto por aquele bispo o lugar da divina Paixão, onde se tinha colocado a estátua da impuríssima Vênus. Com a autoridade que lhe outorga seu cargo, a imperatriz mandou, então, destruir o templo do demônio. Feito isso, de imediato descobriu-se o sepulcro de Jesus Cristo, aparecendo, pouco depois, três cruzes. Após busca diligente, encontraram-se também os cravos. A imperatriz quis saber imediatamente qual das três cruzes era a de Jesus Cristo. Achando-se ali gravemente enferma, quase à morte, uma nobre dama, aplicando-lhe as cruzes, pôde-se saber, no mesmo instante, qual era a Cruz desejada, uma vez que, com a aplicação da Cruz de Jesus Cristo, tocada pela graça divina, ergue-se do leito a enferma completamente curada e glorificando ao Senhor em alta voz (…). O imperador pede ao então bispo, Macário, que apresse a edificação das respectivas basílicas, enviando-lhe um arquiteto e grande soma em dinheiro, com a ordem expressa de que os sagrados edifícios (no Gólgota, em Belém, e no Monte das Oliveiras) se decorassem com o maior esplendor, de sorte que não houvesse nada igual no mundo. [22]
No século V, o dia 13 de setembro é aniversário da dedicação das basílicas constantinianas. Segundo a peregrina Egéria, tinha-se determinado esse dia, alguns anos antes – talvez em 335 – por ser a data do descobrimento da Cruz. [23]
Cirilo de Jerusalém, na XIII Catequese, que se realizara provavelmente em 347, diz textualmente:
A Paixão é real: verdadeiramente foi crucificado. E não nos envergonhemos disso. Foi crucificado. E não o negamos; pelo contrário, comprazemo-nos em afirmá-lo. Chegaria a envergonhar-me, se me atrevesse a negar o Gólgota que temos à vista; afastaria dos olhos o madeiro da Cruz que dessa cidade distribuiu-se como relíquias pelo mundo todo. Reconheço a Cruz, porque conheço a ressurreição. Se o Crucificado tivesse permanecido em tal situação, não reconheceria a Cruz; apressar-me-ia, pelo contrário, em escondê-la, juntamente com meu Mestre. Como após a Cruz vem a Ressurreição, não me envergonho de falar longamente da mesma. [24]
A festa da Cruz, a 14 de setembro, difundiu-se rapidamente por todo o Oriente, eclipsando a comemoração da dedicação da basílica constantiniana. [25]
Em Roma, no século VI, celebrava-se a Exaltação no dia 3 de maio. Posteriormente – no século VII – começou a apresentar-se o madeiro da Cruz à veneração do povo, no dia 14 de setembro. [26]
O resgate da Cruz pelo imperador Heráclio em 631 não veio senão incrementar e consolidar um culto já amplamente difundido.
As igrejas de tradição bizantina relacionaram a festa do dia 14 de setembro entre as do Senhor (despotika) – de primeira classe – e, portanto, entre as 12 grandes festividades litúrgicas. É precedida de uma vigília (preortia) e seguida de sete dias pós-festivos (meteortia), mais outro oitavo de despedida da festa (apodosis), que coincide com o dia 21 do referido mês de setembro.
A celebração litúrgica, muito simples em si, tem seu ponto mais alto no gesto do celebrante, que podemos ver refletido no Ícone. Vejamo-lo em detalhes.
No dia da festa, o celebrante, após pequena procissão, pára no centro da igreja; e levanta então, ao alto, a relíquia da Cruz. A assembléia faz, ao mesmo tempo, a mais simples de todas as orações e mais própria de uma criatura ante a misericórdia do Deus criador: «Piedade, Senhor!» Repete-se 100 vezes a oração. Repete o celebrante o gesto de elevar ao alto a Cruz, voltando-se para os quatro pontos cardeais, enquanto o povo reza, canta e exclama 100 vezes: «Piedade, Senhor!» Deposita-se depois a Cruz em um grande recipiente cheio de flores e coloca-se sobre um tetrapodium no centro da igreja. O Clero e todos os fiéis, prostrando-se de joelhos, vão adorando a Cruz e recebendo uma flor das que serviram de enfeite à relíquia.
Notas:
- 1Cor 1 18-23;
- Hino, n. 38 (SC), tr. 9.
- Romano o Melode, Hino, n. 39 (SC), tr. 23.
- Cf. Passarelli, G., Ícone da crucifixão (Iconostásio 9), AM edições, São Paulo (prelo).5 Cf. Gn 2, 16; Êx 31, 8; Ap 2, 7, Passarelli, G., Macario Crisocefalo, l’ omelia sullafesta dell’Ortodossia e Ia basilica di S. Giovanni di Filadelfia (OCA, 210), Roma, 1980, 161,20.
- Cf. Gn 2, 16; Êx 31, 8; Ap 2, 7, Passarelli, G., Macario Crisocefalo, l’ omelia sullafesta dell’Ortodossia e Ia basilica di S. Giovanni di Filadelfia (OCA, 210), Roma, 1980, 161,20.
- Passarelli, G., ibid., 169,41.
- Da hinografia da festa.
- Cf. Mt 27, 45ss.; Lc 23,46. A hora que precede as Vésperas. A hora nona corresponde aproximadamente às 15 horas (3 p.m.).
- Cf. Frolow, A., La Reiique de ia Vraie Croix. Recherches sur ie déveioppement d’un culte (AGC, 7), Paris, 1961; Bornert, R., “La céiébration de ia sainte Croix dans ie rire byzantin “, em La sainte Crou, La Maison-Dieu 75, 3 (1963), 92-108; Janeras, S., Le Vendredi-saint dans ia Tradition liturgique byzantine. Structure et Histoire de ses Offices (Studia Anselmiana, 99), Roma, 1988.
- Trata-se de hino originário do século VII, cf. Bomert, 94; Janeras, 297.
- Trata-se de costume melkita que tinha origem no Ofício estacional da Paixão hierosolirnitana, adotado oficialmente em Constantinopla pelo patriarca Sofrônio 11 em 1864 e hoje em uso entre os gregos.
- O patriarca Nicéforo deixou-nos uma bem detalhada descrição da circunstância em que se restituíra a Cruz ao Santo Sepulcro. A relíquia estava guardada numa caixa lacrada. O clero examinou os lacres e, após comprovar que não se tinha violado, o bispo Modesto abriu a caixa com as chaves que se havia guardado. Prostrando-se todos, procedeu-se à cerimônia da Exaltação. Cf. Frolow, “La Vraie Croix et les expéditions d’ Héraclius en Perse”, em Revue des Études Byzantinesll (1953), 88-105; Grumel, y., “La reposition de Ia Vraie Croix à Jérusalem par Héraclius, lejour etl’ année”, em Byzantinische Forschungen 1 (1966), 139-149; Bornert, 99-101; Janeras, 298-299.
- Legislador monástico, que viveu no célebre mosteiro de Studios em Constantinopla. Foi um dos mais insignes defensores do culto aos ícones.
- Antigamente dizia-se: “Conhecei o Imperador”, hoje substituído por “govemantes” ou por “Igreja”.
- PG 52,835 C. Repete-se a adoração na segunda-feira, na quarta-feira e sexta-feira, guardando a relíquia, a seguir, no tesouro do santuário.
- O calendário bizantino, vigente ainda liturgicamente nas Igrejas desta tradição, começa a primeiro de setembro.
- Cf.Jo 3, 14.
- PG 33, 1169 A.
- La croce nella Preghiera Bizantina, Bréscia, 1990,48.
- Constantino VII, Profirogênito, Etlibra de tas Ceremanias, 11, 8 (PG 112, 1005 C-99A).
- Não sabemos a época nem conhecemos outras obras desse autor. É talvez anterior ao século X.
- Pennacchinni, P. C., Discorso storico dell’invenzione della Croce, deI monacoAlessandro, Grottaferrata, 1913,59-60; cf. Righetti, M., L’anno liturgico. Il breviario, Milão, 1969,343344.
- Diario di viaggio, SC 296, 316-317.
- PG 33, 775B.
- A festa da Exaltação celebra-se no dia 14 de setembro pelos bizantinos, latinos, coptas e siro- jacobitas; no dia 13, pelos siro-nestorianos, e no domingo que tem lugar entre os dias 11 e 17 pelos armênios.
- Jounel, P., “Le culte de Ia Croix dans Ia liturgie romaine”, em La sainte Croix, La Maison-Dieu 75, 3 (1963),75-82,87-91.
- Ofício da Paixão, antífona 15. O recibo de nossa dívida é o título que aparece nas mãos de Cristo em diversos ícones. Veja se a propósito, por exemplo, CI 2, 14: “Cancelou a nota de dívida que tinha contra nós, a das prescrições com cláusulas desfavoráveis, e suprimiu-a cravando-a na cruz”. Romano o Melode, Hinos, tr. 10: “Consente em deixar-se crucificar e destrói a nota de penhor, tu que vieste para chamar novamente Adão”; e tr. 11: “Espera tão-somente libertar-me da pesada dívida” (Hino, Akathistos). “Ele que perdoa as dívidas a todos os homens, querendo perdoar as antigas culpas, voluntariamente se entrega aos desertores de sua graça e, rasgando o quirógrafo do pecado, ouve a todos exclamar: Aleluia!” Para outras fontes, cf. Lampe, G. W. H., A pat.ristic greek Lexikon, Oxford, 1972, palavras Cheirographon e Proselio. Cf. Passarelli, Ícone da Mãe de Deus, (Iconostásio 1), AM edições (prelo).
- Can 73 (Mansi, XI, 975).
- Denzinger, H. A. e Schoenmetzer, A., Enchiridion Symbolorum, Barcinone-Friburgi Br. e Romae-Neo Eboraci 1977, n. 601. Cita-se, ali, São Basílio, Tratado sobre el Espiritu Santo, c. 18, par 45 (SC 17, 194). Acolheram-se nesse concílio os graus da “aproskynesis”, que deve render-se a Deus, aos santos, às relíquias, aos ícones e aos imperadores, estabelecida por São João Damasceno.
- Cf. Bomert, 106; Frolow, ob. cit., passim.
- Homilia sobre ia Exaltación de la Cruz, PG 97, 1033A.
«Adoração da Cruz»
PASSARELLI, Gaetano. O Ícone da Exaltação da Cruz. São Paulo: Ed. Ave Maria
Pôde-se observar como os hinos e toda essa exposição falam sempre de «adoração» da Cruz. Pela única razão de que muito rapidamente a Cruz veio a ser a imagem do Crucificado e da sua Ressurreição: dois aspectos distintos, porém, inseparáveis, de um só mistério.
«Adoramos, Senhor, tua Cruz e glorificamos tua santa Ressurreição», é o tema mais comum dos hinos. Eis mais um exemplo do que foi dito:
Na Cruz, Cristo deu morte ao autor de nossa morte. Devolveu a vida e a beleza a quem as tinha perdido; e, num desdobramento de bondade e misericórdia, restituiu-lhes o direito de cidadania no céu. Na Cruz cancelaste, Senhor, o assentamento de nossa dívida.
Cantado entre os mortos, prendeste o tirano que reinava sobre eles; e com tua ressurreição, libertaste-nos dos laços da morte. [1]
Sobre o que deveriam ser tributadas as honras à Cruz, pronunciaram-se dois Concílios:
No Concílio Quinissesto de 692, os Padres prescreveram que se rendesse à santa Cruz «a adoração em espírito, nos lábios e nos sentidos». [2] E no segundo Concílio de Niceia (787), concretiza-se a natureza exata da referida adoração: à santa Cruz, como aos ícones, deve-se tributar «adoração honorífica», «não culto propriamente dito» reservado somente a Deus. Porque «a honra dirigida à imagem passa ao protótipo, e o que adora a imagem, adora a pessoa nela representada». [3]
Os textos litúrgicos, homiléticos e epigráficos documentam como semelhante prescrição conciliar estava profundamente enraizada nos usos e costumes. [4]
André de Creta (660-740), por exemplo, disse claramente:
«Nós adoramos a Cruz, uma vez que nela bendizemos ao Crucificado». [5]
O mesmo atestam outros textos de origem mais humilde e, por isso, sem dúvida maiores expressões da verdadeira piedade dos fiéis. Seria bom exemplo a inscrição do século VII, que faz falar assim à própria Cruz:
«Sou a Cruz, salvaguarda do universo; minha morada é a eternidade, onde gozo de igual veneração à do Corpo imortal. [6]
Notas:
- Ofício da Paixão, antífona 15. O recibo de nossa dívida é o título que aparece nas mãos de Cristo em diversos ícones. Veja se a propósito, por exemplo, CI 2, 14: “Cancelou a nota de dívida que tinha contra nós, a das prescrições com cláusulas desfavoráveis, e suprimiu-a cravando-a na cruz”. Romano o Melode, Hinos, tr. 10: “Consente em deixar-se crucificar e destrói a nota de penhor, tu que vieste para chamar novamente Adão”; e tr. 11: “Espera tão-somente libertar-me da pesada dívida” (Hino, Akathistos). “Ele que perdoa as dívidas a todos os homens, querendo perdoar as antigas culpas, voluntariamente se entrega aos desertores de sua graça e, rasgando o quirógrafo do pecado, ouve a todos exclamar: Aleluia!” Para outras fontes, cf. Lampe, G. W. H., A pat.ristic greek Lexikon, Oxford, 1972, palavras Cheirographon e Proselio. Cf. Passarelli, Ícone da Mãe de Deus, (Iconostásio 1), AM edições (prelo).
- Can 73 (Mansi, XI, 975).
- Denzinger, H. A. e Schoenmetzer, A., Enchiridion Symbolorum, Barcinone-Friburgi Br. e Romae-Neo Eboraci 1977, n. 601. Cita-se, ali, São Basílio, Tratado sobre el Espiritu Santo, c. 18, par 45 (SC 17, 194). Acolheram-se nesse concílio os graus da “aproskynesis”, que deve render-se a Deus, aos santos, às relíquias, aos ícones e aos imperadores, estabelecida por São João Damasceno.
- Cf. Bomert, 106; Frolow, ob. cit., passim.
- Homilia sobre ia Exaltación de la Cruz, PG 97, 1033A.
- Frolow, ob. cit., 48; Bome11, 106. No trabalho de Frolow podem ler-se muitos outros testemunhos.
«Assim é preciso que o Filho do Homem seja elevado, para que todo o que nele crê seja salvo»
São João Crisóstomo (cerca de 345-407),
Homilia 1 «Sobre a Cruz e sobre o Ladrão».
Hoje, nosso Senhor Jesus Cristo está pregado na Cruz e nós estamos em festa, para que saibais que a Cruz é uma festa e uma celebração espiritual. Outrora, a Cruz designava um castigo; agora tornou-se objeto de honra. Outrora símbolo de condenação, ei-la hoje princípio de salvação. Porque ela é para nós causa de bens sem conta: livrou-nos do erro, iluminou-nos as trevas, reconciliou- nos com Deus; tínhamo-nos tornado, para com Ele, inimigos e estrangeiros longínquos. Para nós, ela é hoje a destruição da inimizade, o penhor da paz, o tesouro de mil bens.
Graças a ela, já não erramos nos desertos, porque conhecemos o caminho verdadeiro. Não FIcamos fora do palácio real, porque encontramos a porta. Não tememos as armas inflamadas do diabo, porque descobrimos a fonte. Graças a ela, já não estamos na viuvez, pois encontramos o Esposo. Não temos medo do lobo, pois encontramos o bom pastor. Graças à Cruz, não tememos o usurpador, pois nos sentamos ao lado do Rei. Eis porque estamos em festa ao celebrarmos a memória do Cruz. O próprio São Paulo nos convida para a festa em honra da Cruz: “Celebremos esta festa”, diz ele, «não com fermento velho, nem com o fermento da malícia e da perversidade, mas com os ázimos da pureza e da verdade» (1 Co 5,8). E ele explica-nos a razão dizendo: «Porque Cristo, nossa Páscoa, foi imolado por nós». (1 Co 5,7).
«A Cruz, Árvore de Vida»
São Teodoro Estudita (759-826).
Como é bela a imagem da cruz! A sua beleza não oferece mistura de mal e de bem, como outrora a árvore do jardim do Éden. Toda ela é admirável, “uma delícia para os olhos e desejável” (Gn 3, S). É uma árvore que dá a vida e não a morte; a luz, não a cegueira. Leva a entrar no Éden, não a sair dele. Esta árvore, à qual subiu Cristo, como um rei para o seu carro de triunfo, derrotou o diabo, que tinha o poder da morte, e libertou o gênero humano da escravidão do tirano. Foi sobre esta árvore que o Senhor, qual guerreiro de eleição, ferido nas mãos, nos pés e no seu divino peito, curou as cicatrizes do pecado, quer dizer, a nossa natureza ferida por Satanás.
Depois de termos sido mortos pelo madeiro, encontramos a vida pelo madeiro; depois de termos sido enganados pelo madeiro, é pelo madeiro que repelimos a serpente enganadora. Que permutas surpreendentes! A vida em vez da morte, a imortalidade em vez da corrupção, a glória em vez da ignomínia. Por este motivo, o apóstolo Paulo exclamou: «Toda a minha glória está na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo» (Gl S, 1at) … Mais do que qualquer sabedoria, esta sabedoria que floresceu na cruz tornou ignóbeis as pretensões da sabedoria do mundo (1 Cor 1, 17s) …
É pela cruz que a morte foi morta e Adão restituído à vida. É pela cruz que todos os apóstolos foram glorificados, todos os mártires coroados, todos os santos santificados. É pela cruz que fomos reconduzidos como as ovelhas de Cristo, e fomos reunidos no redil do alto.
A Cruz do Senhor, Força da Igreja
No dia 13 de setembro de 325, consagraram-se duas basílicas em Jerusalém: uma no Gólgota, onde Cristo tinha sido crucificado e outra no Santo Sepulcro. No dia seguinte, 14 de setembro, era apresentada ao povo a relíquia da Santa Cruz. Ao ser tocado por ela, um morto tinha recuperado a vida, sinal de que era a cruz do Senhor, a cruz que nos deu a Vida.
Celebrando o acontecimento, toda a Igreja, do Oriente e do Ocidente, em 14 de setembro comemora a Exaltação da Santa Cruz. O hinos litúrgicos cantam o madeiro santo que, plantado na terra, brotou regado pelo Sangue do Senhor. Quem come dos frutos desta Árvore tem a graça de vencer a morte e cantar o hino à vida. O sangue que escorreu do lado direito do Crucificado simboliza a Eucaristia; a água, o Batismo.
Cada vez que a comunidade celebra a Eucaristia, ela e o celebrante têm diante dos olhos a imagem da Cruz, recordando que a Igreja nasceu do lado direito de Cristo crucificado. A liturgia, com a cruz diante dos olhos da comunidade, une a Antiga e a Nova Aliança: no deserto, os judeus contemplaram a serpente de bronze e foram curados do mal mortal provocado pela picada das serpentes (cf. Nm 21, 4b-9); hoje, os que contemplam a cruz, nela contemplam aquele que os libertou da morte (cf. Jo 3, 14-15).
TEOLOGIA DA CRUZ – TEOLOGIA DA CONSOLAÇÃO
A cruz, símbolo de maldição, de humilhação, de fraqueza, recorda-nos a “loucura” de Deus por nós. Deus pode tudo, menos uma coisa: obrigar-nos a amá-lo. Por isso mesmo, a Trindade serviu-se da cruz ao menos para convencer-nos de que Ela nos ama: o poder de Deus é o poder do amor. A “loucura do amor” trinitário deixou o Filho no abandono total: o Espírito separou-se de Jesus e ele imediatamente gritou: “Meu Deus, por que me abandonaste?” Naquele instante que se prolonga por toda a história terrena da salvação, aquele que é a Vida torna-se vida para nós no coração da morte. No Horto e no Gólgota, o Filho sentiu a amargura total do abandono do amor para nos amar, ele que “tem o poder de oferecer a vida e tem o poder de retomá-la” (cf. Jo 10,18). Quem bebe do Sangue eucarístico, recebe também o poder de dar a vida.
Quando estamos mergulhados na treva do pecado, na escuridão da descrença, o contemplar a cruz nos enche de consolação, nos leva a superar o mal aceitando sermos amados pelo Bem.
TEOLOGIA DA GLÓRIA – TEOLOGIA DA MODA
“Agradou a Deus salvar os crentes com a loucura da pregação … porque …. aquilo que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens… Deus escolheu o que no mundo é fraco para confundir os fortes” (cf. 1Cor 1,21-28).
A Glória de Deus tem a Cruz como Trono: seu poder se manifesta plenamente na fraqueza assumida por causa de nós. O homem que se identifica com o Crucificado recebe a força do ressuscitado: “Quando sou fraco, então é que sou forte”(2Cor 12,10). Se esse é o caminho do Senhor, é necessariamente o caminho da Igreja, dos cristãos.
Durante os séculos de sua história, a Igreja corre o perigo da tentação da sabedoria humana, da adaptação ao mundo: tirar Cristo da cruz e vesti-lo com seda. O mistério da fraqueza de Deus é o mistério escondido na essência profunda da Igreja, na existência crucifixa dos santos e santas. Assim como não existiu santo ostentando vestimentas e enfeites principescos, do mesmo modo não há força eficaz numa evangelização feita na imponência de cerimônias, na ameaça de punições aos que erram, na segregação eclesial daqueles que o mundo também marginaliza. Descobrimos diversas pílulas que evitam a fecundação de tantos que peregrinam para encontrar o Senhor e depois retornam esterilizados.
O poder da Igreja só existe na participação do poder de Cristo: poder da fé e da humildade e se expressa como serviço: quem quiser ser o maior, torne-se o menor (cf. Lc 22,25-27).
GRAÇA A ALTO PREÇO – GRAÇA DESCARTÁVEL
Desde o dia de Pentecostes, quando o Espírito despojou-se de sua glória e veio habitar o coração da Igreja e da criação, a evangelização corre o risco terrível de vender a Graça a baixou preço, de enfeitar a Cruz para aumentar o rebanho. Levar ao torpe mercado da salvação uma Graça tornada barata, descartável, comercial e até grátis, facilitadora e descompromissada.
A Graça é sempre muito cara, Paulo afirmando que fomos comprados por alto preço: ela é tesouro escondido no campo, pérola preciosa, rede a ser lançada, senhorio de Cristo, Evangelho buscado, dom sempre suplicado, porta sempre batida, seguimento ao preço da própria vida.
VEREMOS AQUELES QUE CRUCIFICAMOS
Em cada Eucaristia fazemos o memorial do Calvário: junto ao altar contemplamos a cruz. Seremos cristãos se nela, identificados com o Senhor, contemplarmos os famintos, os sedentos, os nus, os peregrinos, os prisioneiros, os doentes, os sem-casa, os sem-terra, os desempregados. Somos convidados ao exercício do invencível poder do amor.
*Pe. José Artulino Besen é professor de Espiritualidade bizantina do ITESC – Instituto Teológico de Santa Catarina da Arquidiocese Católico-romana de Florianópolis.