Lima, 1982

«Texto de Lima, 1982»

(Batismo, Eucaristia, Ministério)

I - Prefácio

O Conselho Mundial de Igrejas é “uma comunidade fraterna de Igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador segundo as Escrituras, e se esforçam por responder em conjunto à sua vocação comum para a glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo” (constituição).

Nessas palavras temos uma definição clara do que é o Conselho Mundial. Ele não é uma autoridade universal fiscalizadora do que os cristãos deveriam crer e fazer. Mas, volvidos somente três decênios, ele é já uma comunidade notável de aproximadamente trezentas Igrejas, que representam uma rica diversidade de culturas, de tradições, de liturgia em numerosas línguas, de existência sob todas as espécies de sistemas políticos. Todas elas, contudo, comprometidas numa estreita colaboração de testemunho cristão e de serviço.

Ao mesmo tempo, todas, também, lutando em conjunto para atingir o fim da unidade visível da Igreja.

A Comissão de Fé e Constituição do Conselho Mundial assegura apoio teológico aos esforços das Igrejas que tenham em vista a unidade. Com efeito, a Comissão foi encarregue, pelos membros do Conselho, de lhes lembrar continuamente a obrigação livremente aceite por elas de trabalharem de modo mais visível para a manifestação do dom de Deus, a unidade da Igreja. Por isso, o objetivo claramente estabelecido pela Comissão é o de “proclamar a unidade da Igreja de Jesus Cristo e exortar as Igrejas a tornarem visível esta unidade numa só fé e numa só comunidade eucarística, com expressão no culto e na vida comum em Cristo, afim de que o mundo creia”.

Se as Igrejas divididas devem chegar à unidade visível que procuram, então uma questão prévia essencial é que se ponham fundamentalmente de acordo sobre o batismo, a eucaristia e o ministério. É compreensível, pois, que a Comissão de Fé e Constituição tenha consagrado muita atenção à ultrapassagem da divisão doutrinar sobre estes três temas. Durante os últimos cinqüenta anos, a maior parte dos seus encontros e conferências tiveram quer um quer outro destes temas no centro das suas discussões.

Os três textos são fruto de um processo de pesquisa de cinqüenta anos que remonta à primeira Conferência de Fé e, Constituição, em Lausana, em 1927. O material foi discutido e revisto pela Comissão de Fé e Constituição, em Accra (1974), em Bangalore (1978) e em Lima (1982). Entre os encontros da Comissão plenária, a Comissão permanente e o seu comitê de trabalho sobre o batismo, a eucaristia e o ministério, sob a presidência do irmão Max Thurian, da Comunidade de Taizé, prosseguiram o trabalho e a redação.

Estes textos ecumênicos refletem igualmente as consultas sucessivas e a colaboração contínua estabelecidos entre os membros da Comissão (aprovados pelas Igrejas) e as próprias Igrejas particulares. A 5. a Assembléia do Conselho Mundial (Nairobi 1975) permitiu o envio às Igrejas de um primeiro texto impresso para estudo (série Faith and Order N.º 73). É muito significativo que mais de cem Igrejas, de todas as regiões e de todas as tradições, tenham enviado comentários pormenorizados. Estes foram cuidadosamente analisados durante uma consulta em Crêt-Bérard, em 1977 (série Faith and Order N.º 84).

Conjuntamente, certos problemas particularmente difíceis foram igualmente analisados na altura de consultas ecumênicas especiais realizadas sobre os seguintes temas: “Batismo das crianças e dos adultos”, em Louisville, em 1978 (série Faith and Order N.º 97), “Episcopê e episcopado”, em Genebra, em 1979 (série Faith and Order N.º 102). O texto foi igualmente revisto por representantes das Igrejas ortodoxas, em Chambéry, 1979. Finalmente, a Comissão de Fé e Constituição foi novamente autorizada pelo Comitê central do Conselho Mundial, em Dresden (1981), a enviar o documento revisto (o texto de Lima de 1982) às Igrejas, pedindo-lhes uma resposta oficial, como uma etapa vital em todo este processo ecumênico.

Este trabalho não foi realizado somente por Fé e Constituição. Os três temas batismo, eucaristia e ministério têm sido objeto de pesquisa em muitos diálogos ecumênicos. Os dois principais tipos de conversações entre Igrejas, o tipo bilateral e o tipo multilateral, provaram ser complementares e mutuamente benéficos. Os três relatórios do Fórum sobre as conversações bilaterais mostram-no claramente: “Concepções da unidade” (1978), “Consenso sobre textos de acordo” (1979), “Autoridade e recepção” (1980) (série Faith and Order N.º 107). Em conseqüência, a Comissão de Fé e Constituição, na sua própria pesquisa multilateral respeitante aos três temas, tentou estabelecer, tanto quanto possível sobre descobrimentos particulares, conversações bilaterais. Com efeito, uma das tarefas da comissão é avaliar o resultado de todos estes esforços particulares em proveito do movimento ecumênico no seu conjunto.

O testemunho das Igrejas locais que passaram já pelo processo da união, superando assim as divisões confessionais, foi igualmente preponderante para o desenvolvimento deste texto. É importante reconhecer que tanto a procura da união das Igrejas locais, como a busca de um consenso universal, estão intimamente ligadas.

Talvez ainda mais influentes que os estudos oficiais sejam as mudanças que ocorrem na vida das próprias Igrejas. Vivemos num momento crucial na história da humanidade. No seu caminhar para a unidade, as Igrejas interrogam-se acerca da relação existente entre as suas compreensões e práticas do batismo, da eucaristia e do ministério, e a sua missão na e para a renovação da comunidade humana, ao procurarem promover a justiça, a paz e a reconciliação. Este texto não pode, pois, ser dissociado da missão redentora e libertadora de Cristo por intermédio das Igrejas no mundo moderno.

Como resultado dos estudos bíblicos e patrísticos, da renovação litúrgica e da necessidade de um testemunho comum, surgiu uma comunhão fraterna ecumênica que transcende freqüentemente as fronteiras confessionais e na qual as antigas diferenças passam a ser vistas a uma nova luz. Assim, não obstante a linguagem deste texto ser ainda m!4ito clássica no seu esforço de reconciliação das controvérsias históricas, ele tem uma intenção claramente contemporânea e inserida nos contextos modernos. Este espírito estimulará certamente muitas reformulações do texto nas linguagens variadas do nosso tempo. Até onde nos conduziram estes esforços? Como é manifesto no texto de Lima, atingimos já um notável grau de acordo. Certamente, não chegamos ainda completamente a um “consenso” (consentire), compreendido aqui como a experiência de vida e de expressão da fé, necessário para realizar e manter a unidade visível da Igreja. Um tal consenso está enraizado na comunhão fundada em Cristo e no testemunho dos apóstolos. Sendo dom do Espírito, alcança-se como experiência partilhada antes de poder ser expresso por palavras, num esforço concertado. Um consenso completo não pode ser proclamado senão depois de as Igrejas terem atingido o ponto em que podem viver e agir em conjunto na unidade.

No caminho que tem como meta a unidade visível, as Igrejas terão, contudo, de passar por diversas etapas. Elas têm sido abençoadas de novo pela escuta mútua e pelo retorno, em conjunto, às fontes originais, isto é, à “Tradição do Evangelho atestada na Escritura, transmitida na e pela Igreja, pelo poder do Espírito Santo” (Conferência Mundial de Fé e Constituição, 1963).

Ao abandonarem as oposições do passado, as Igrejas começaram a descobrir numerosas convergências plenas de promessas em convicções e perspectivas que elas partilham. Estas convergências asseguram-nos de que, não obstante toda a diversidade na expressão teológica, as Igrejas têm muito em comum na sua compreensão da fé. O texto que daí resulta tende a tornar-se parte do reflexo fiel e suficiente da Tradição cristã sobre elementos essenciais da comunhão cristã. No processo do crescimento comum, com confiança mútua, as Igrejas devem desenvolver essas convergências doutrinais, etapa por etapa, até serem capazes finalmente de declarar em conjunto que vivem em comunhão umas com as outras, na continuidade dos apóstolos e dos ensinos da Igreja universal.

Este texto de Lima representa as convergências teológicas significativas que Fé e Constituição discerniu e formulou. Aqueles que sabem quanto as Igrejas têm divergido na doutrina e prática do batismo, da eucaristia e do ministério, podem aperceber-se da importância da medida do acordo aqui registrada. Praticamente, todas as confissões tradicionais estão representadas na Comissão. Que teólogos de tradições tão vincadamente diferentes possam ser capazes de falar com uma tal harmonia sobre o batismo, a eucaristia e o ministério – eis um fato sem precedentes no movimento ecumênico moderno. Note-se com particular atenção, o fato de a Comissão incluir igualmente entre os seus membros de pleno direito, teólogos da Igreja católica romana e de outras Igrejas que não pertencem ao Conselho Mundial de Igrejas.

No decurso de uma avaliação crítica, a intenção primeira deste texto ecumênico deve estar bem presente no espírito. O leitor não deve esperar encontrar nele uma exposição teológica completa sobre o batismo, a eucaristia e o ministério. Não seria nem apropriada nem desejável. O texto de acordo concentra-se intencionalmente nos aspectos do tema que estão diretamente ou indiretamente relacionados com os problemas do reconhecimento mútuo conducente à unidade. O texto principal mostra os domínios de convergência teológica mais importante; os comentários que a ele se ajuntam indicam quer diferenças históricas ultrapassadas, quer pontos controversos a exigir ainda pesquisa e reconciliação.

À luz de todos estes desenvolvimentos, a Comissão de Fé e Constituição, apresenta agora este texto de Lima 1982 às Igrejas. Fazemo-lo com uma convicção profunda, pois temo-nos tornado cada vez mais conscientes da nossa unidade no Corpo de Cristo. Encontramos motivos para nos alegrarmos ao descobrirmos as riquezas da nossa herança comum no Evangelho. Cremos que o Espírito Santo nos conduziu até este tempo, Kairós do movimento ecumênico, em que as Igrejas infelizmente divididas sentiram-se capazes de chegar a acordos teológicos substanciais. Cremos que numerosos progressos significativos são possíveis se, nas nossas Igrejas, tivermos suficiente coragem e imaginação para acolher o dom da unidade que Deus nos concede.Como sinal do seu empenho ecumênico, espera-se que as Igrejas promovam o mais amplo empenho do povo de Deus, a todos os níveis da vida da Igreja, no processo espiritual de recepção deste texto. Em apêndice, dão-se algumas sugestões particulares em relação com o uso deste texto no culto, no testemunho e na reflexão das Igrejas.A Comissão de Fé e Constituição convida agora respeitosamente todas as Igrejas a prepararem uma resposta oficial a este texto, ao mais elevado nível de autoridade apropriado, seja um Conselho, seja um Sínodo, seja uma Conferência, seja uma Assembléia ou qualquer outra instituição. Para ajudar no processo de recepção, a Comissão gostaria de conhecer tão precisamente quanto possível: – até que ponto a vossa Igreja pode reconhecer neste texto a fé da Igreja através dos séculos;

As conseqüências que a vossa Igreja pode tirar deste texto para as suas relações e diálogos com outras Igrejas, particularmente com as Igrejas que reconhecem também o texto como uma expressão da fé apostólica; – as indicações que a vossa Igreja pode receber deste texto no que respeita à sua vida e ao seu testemunho ao nível do culto, da educação, da ética e da espiritualidade;
As sugestões que a vossa Igreja pode dar para a continuidade do trabalho de Fé e Constituição, no respeitante à relação entre o material deste texto sobre o batismo, a eucaristia e o ministério e o seu projeto de pesquisa a longo termo sobre “A expressão comum da fé apostólica hoje”.
A nossa intenção é, na altura de uma futura Conferência mundial de Fé e Constituição, comparar todas as respostas oficiais recebidas, publicar os resultados e analisar as implicações ecumênicas para as Igrejas.

Todas as respostas a estas questões deverão ser enviadas até 31 de Dezembro de 1984 ao secretariado de Fé e Constituição, Conselho Mundial de Igrejas, 150 route de Ferney, 1211 Genève 20, Suisse.

William H. Lazareth, Diretor do Secretariado de Fé e Constituição
Nikos Nissiotis, Moderador da Comissão de Fé e Constituição

6. «Celebrado em obediência ao nosso Senhor, o batismo é um sinal e um selo do nosso empenho comum de discípulos.

Através do seu próprio batismo, os cristãos são conduzidos à união com Cristo, com cada um dos outros cristãos e com a Igreja de todos os tempos e de todos os lugares.

O nosso batismo comum, que nos une ao Cristo na fé, é assim um vínculo fundamental de unidade. Somos um só povo e somos chamados a confessar e a servir um só Senhor, em cada lugar e no mundo inteiro.

A união com Cristo que partilhamos pelo batismo tem implicações importantes para a unidade cristã: “Há … um só batismo, um só Deus e Pai de todos…” (Ef. 4: 4-6).

Quando a unidade batismal se realiza na Igreja una, santa, católica e apostólica, um testemunho cristão autêntico pode ser prestado ao amor de Deus que cura e reconcilia.

É por isso que o nosso único batismo em Cristo constitui um apelo dirigido às Igrejas, para ultrapassarem as suas divisões e manifestarem visivelmente a sua comunhão.»

Comissão «Fé e Constituição»
do Conselho Mundial de Igrejas, 1982.

Texto de Lima: «Convergência da Fé» (Batismo, Eucaristia, Ministério), 1982

II - O BATISMO

I. A instituição do Batismo

1. O batismo cristão tem o seu fundamento no ministério de Jesus de Nazaré, na sua morte e ressurreição. É incorporação em Cristo, o Senhor crucificado e ressuscitado; é entrada na Aliança nova entre Deus e o seu povo. O batismo é um dom de Deus, e é conferido no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O evangelho de S. Mateus conta que o Senhor ressuscitado, ao enviar os seus discípulos ao mundo, ordenou-lhes que batizassem (Mat. 28:18-20). A prática universal do batismo pela Igreja apostólica, desde os primeiros dias, é atestada nas cartas do Novo Testamento, nos Atos dos apóstolos e nos escritos patrísticos. As Igrejas, hoje, continuam esta prática como um rito de empenho para com o Senhor, que espalha a sua graça sobre o seu povo.

II. A significação do Batismo

2. O batismo é o sinal da vida nova em Jesus Cristo. Une o batizado com Cristo e o seu povo. As Escrituras do Novo Testamento e a liturgia da Igreja desenvolvem a significação do batismo, utilizando imagens variadas, exprimindo as riquezas de Cristo e os dons da sua salvação. Estas imagens estão algumas vezes em relação com os usos simbólicos da água no Antigo Testamento. O batismo é participação na morte e na ressurreição de Cristo (Rom 6:3-5; Col 2:12); purificação do pecado (1 Cor 6:11); novo nascimento (João 3:5); iluminação por Cristo (Ef. 5:14); mudança de vestuário em Cristo (Gal 3:27); renovação pelo Espírito (Tit 3:5); experiência de livramento através das águas do dilúvio (1 Ped 3: 20,21); salda da escravatura (1 Cor 10: 1,2); libertação em vista de uma nova humanidade na qual são ultrapassadas as barreiras entre os sexos, as raças e as situações sociais (Gal. 3: 27, 28; 1 Cor 12:13). As imagens são numerosas, mas a realidade é uma.

a – Participação na Morte e na Ressurreição de Cristo

3. O batismo significa uma participação na vida, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo. Jesus desceu ao Jordão e foi batizado, em solidariedade com os pecadores, a fim de cumprir toda a justiça (Mat 3:15). Este batismo conduziu Jesus no caminho do Servo sofredor, manifestado pela sua paixão, morte e ressurreição (Mc 10: 38-40, 45). Pelo batismo os cristãos são imersos na morte libertadora de Cristo, onde os seus pecados são sepultados, onde o “velho Adão” é crucificado com Cristo, e onde o poder do pecado é quebrado. Deste modo, os batizados não são mais escravos do pecado, mas livres. Totalmente assimilados à morte de Cristo, eles são sepultados com ele e ressuscitam, aqui e agora, para uma vida nova no poder da ressurreição de Jesus Cristo, confiantes de que um dia serão também unidos a ele numa ressurreição semelhante à sua (Rom 6:3-11; Col 2:13; 3:1; Ef 2:5,6).

b – Conversão, perdão, purificação

4. O batismo, que faz dos cristãos participantes no mistério da morte e da ressurreição de Cristo, implica a confissão do pecado e a conversão do coração. Já o batismo administrado por João era um batismo de conversão em vista do perdão dos pecados (Mc 1:4). O Novo Testamento sublinha as implicações éticas do batismo, representando-o como uma ablução que lava o corpo com uma água pura, uma purificação do coração de todo o pecado, e um ato de justificação (Heb 10:22, 1 Ped 3:21; Act 22:16; 1 Cor 6:11). Assim, os batizados são perdoados, purificados e santificados por Cristo; recebem uma nova orientação ética, sob a conduta do Espírito Santo, que faz parte da sua experiência batismal.

c – Dom do Espírito

5. O Espírito Santo opera nas vidas antes, durante e depois do batismo. É o mesmo Espírito que revelou Jesus como o Filho (Mc 1:10,11) e que deu o seu poder aos discípulos, assim como a unidade, no Pentecostes (Act 2). Deus derrama sobre cada batizado a unção do Espírito Santo prometido, marca-o com o seu selo e põe no seu coração a garantia da sua herança como Filho de Deus. O Espírito Santo alimenta a vida da fé no seu coração, até à libertação final, altura em que tomarão posse da sua herança, para louvor da glória de Deus (2 Cor 1:21,22; Ef 1:13,14).

d – Incorporação no Corpo de Cristo

6. Celebrado em obediência ao nosso Senhor, o batismo é um sinal e um selo do nosso empenho comum de discípulos. Através do seu próprio batismo, os cristãos são conduzidos à união com Cristo, com cada um dos outros cristãos e com a Igreja de todos os tempos e de todos os lugares. O nosso batismo comum, que nos une ao Cristo na fé, é assim um vínculo fundamental de unidade. Somos um só povo e somos chamados a confessar e a servir um só Senhor, em cada lugar e no mundo inteiro. A união com Cristo que partilhamos pelo batismo tem implicações importantes para a unidade cristã: “Há… um só batismo, um só Deus e Pai de todos…” (Ef. 4:4-6). Quando a unidade batismal se realiza na Igreja una, santa, católica e apostólica, um testemunho cristão autêntico pode ser prestado ao amor de Deus que cura e reconcilia. É por isso que o nosso único batismo em Cristo constitui um apelo dirigido às Igrejas, para ultrapassarem as suas divisões e manifestarem visivelmente a sua comunhão.

COMENTÁRIO:

Quando as Igrejas são incapazes de reconhecer que as suas diversas práticas do batismo são uma participação no único batismo, e quando elas permanecem divididas não obstante o seu reconhecimento mútuo do batismo, dão a imagem dramática de um testemunho dividido da Igreja. Quando as Igrejas aceitam, em certos lugares e tempos, que as diferenças de sexo, de raça, de situações sociais, dividam o Corpo de Cristo, estão a pôr em causa a autenticidade da unidade batismal da comunidade cristã (Gal. 3:27,28) e comprometem seriamente o seu testemunho. A necessidade de reencontrar a unidade batismal situa-se no coração do trabalho ecumênico; é igualmente central para viver uma autêntica comunhão no seio das comunidades cristãs.

e – Sinal do Reino

7. O batismo abre à realidade da vida nova dada neste mundo. Faz participar na comunidade do Espírito Santo. É um sinal do Reino de Deus e da vida do mundo futuro. Graças aos dons da fé, da esperança e do amor, o batismo possui uma dinâmica que atinge toda a vida, estende-se a todas as nações e antecipa o dia quando toda a língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus o Pai.

III. O Batismo e a fé

8. O batismo é simultaneamente o dom de Deus e a nossa resposta humana a este dom. Tende a um crescimento em direção ao estado de adulto, à estatura de Cristo na sua plenitude (Ef. 4:13). Todas as Igrejas reconhecem a necessidade da fé para receber a salvação implicada e manifestada no batismo. O empenho pessoal é necessário para se ser um membro responsável no corpo de Cristo.

9. O batismo não consiste somente numa experiência momentânea, mas tem que ver com o crescimento de toda uma vida na comunhão de Cristo. Os batizados são chamados a refletir a glória do Senhor, a ser transfigurados nesta mesma imagem, com uma glória cada vez maior, pelo poder do Espírito Santo (2 Cor 3:18). A vida do cristão é necessariamente um combate contínuo, mas também uma contínua experiência da graça. Nesta relação nova, os batizados vivem para Cristo, para a sua Igreja e para o mundo que ele ama, aguardando na esperança a manifestação da nova criação de Deus e do tempo em que Deus será tudo em todos (Rom 8:18-24; 1 Cor 15: 22-28, 49-57).

10. Crescendo na vida da fé, os crentes batizados manifestam que a humanidade pode ser regenerada e libertada. Eles têm a responsabilidade comum de, aqui e agora, prestarem testemunho conjunto ao Evangelho de Cristo, o libertador de todos os seres humanos. O contexto deste testemunho comum é a Igreja e o mundo. Nesta comunhão de testemunho e de serviço, os cristãos descobrem a plena significação do único batismo como dom de Deus a todo o seu povo. Do mesmo modo, reconhecem que o batismo na morte de Cristo tem implicações éticas, que não somente chamam à santificarão pessoal, como também empenham os cristãos na luta para que se realize a vontade de Deus em todos os sectores da vida (Rom 6:9 ss; Gal 3:26-28; 1 Ped 2:21 – 1 Ped 4:6).

IV. A Prática do Batismo

a – Batismo dos adultos e Batismo das crianças

11. É possível que o batismo das crianças tenha sido praticado no período apostólico, mas o batismo depois de uma profissão de fé pessoal é a forma mais claramente atestada nos documentos do Novo Testamento. No decurso da história, a prática do batismo desenvolveu-se segundo formas variadas. Certas Igrejas batizam crianças apresentadas por pais ou por responsáveis dispostos a criá-las, na e com a Igreja, segundo a fé cristã. Outras Igrejas praticam exclusivamente o batismo dos crentes capazes de fazer uma confissão de fé pessoal. Entre estas Igrejas há as que recomendam que os recém-nascidos ou as crianças sejam apresentados e abençoados no decurso de um serviço que compreende habitualmente uma ação de graças pelo dom da criança, assim como a manifestação do empenho da mãe e do pai em serem pais cristãos. As Igrejas batizam crentes que, provenientes de outras religiões ou da descrença, aceitam a fé cristã e participam numa instrução catequética.

12. O batismo dos adultos e o batismo das crianças têm lugar, um e o outro, no seio da Igreja como comunidade de fé. Quando um crente responsável é batizado, uma confissão de fé pessoal fará parte integrante do serviço batismal. Quando uma criança é batizada, a resposta pessoal ocorrerá mais tarde na sua vida. Nos dois casos, o batizado terá que crescer na compreensão da fé. No caso dos batizados que confessam pessoalmente a fé, há sempre a exigência de um crescimento contínuo da resposta pessoal na fé. No caso das crianças, espera-se para mais tarde uma confissão pessoal; a educação cristã é orientada tendo em vista o desenvolvimento dessa confissão.

Todo o batismo é fundado na fidelidade de Cristo até à morte, e proclama essa fidelidade. Está situado no coração da vida e da fé da Igreja, e revela a fidelidade de Deus, fundamento de toda a vida na fé. Em cada batismo, a comunidade inteira reafirma a sua fé em Deus e empenha-se para proporcionar ao batizado um ambiente de testemunho e de serviço. O batismo deveria, pois, ser sempre celebrado e desenvolvido no contexto da comunidade cristã.

COMENTÁRIO:

Quando se utilizam as expressões “batismo das crianças” e “batismo dos adultos”, é preciso ter presente que a distinção verdadeira é entre aqueles que batizam em qualquer idade e aqueles que batizam somente os crentes capazes de pronunciarem por eles próprios a confissão de fé. Há uma diferença menor entre o batismo das crianças e o batismo dos adultos, se se reconhece que as duas formas de batismo implicam a iniciativa de Deus em Cristo e exprimem uma resposta da fé no seio da comunidade crente.

A prática do batismo das crianças insiste na fé comunitária e na fé que a criança partilha com os seus pais. A criança nasceu num mundo dividido e partilha essa ruptura. Pelo batismo, a promessa e o apelo do Evangelho pousam sobre a criança. A fé pessoal do batizado e a sua participação fiel na vida da Igreja são essenciais para que o batismo produza todos os seus frutos.

A prática do batismo dos adultos sublinha a confissão explícita da pessoa que responde à graça de Deus, na e através da comunidade de fé, pedindo o batismo. As duas formas de batismo exigem uma atitude responsável idêntica no tocante à educação cristã. Uma redescoberta do caráter permanente da formação cristã pode facilitar a aceitação mútua de diferentes práticas de iniciação.

Em certas Igrejas que reúnem as duas tradições, a do batismo das crianças e a do batismo dos adultos, foi possível considerar como alternativas equivalentes para a entrada na Igreja, por um lado a forma em que o batismo na infância é seguido mais tarde por uma profissão de fé, e por outro lado a forma em que o batismo de adultos vem na seqüência de uma apresentação e bênção na infância. Este exemplo convida outras Igrejas a decidirem se, igualmente, não poderiam reconhecer alternativas equivalentes nas suas relações recíprocas e nas negociações de união entre Igrejas.

13. O batismo é um ato que não pode ser repetido. Deve-se evitar toda e qualquer prática que possa ser interpretada como um “re-batismo”.

COMENTÁRIO:

Algumas Igrejas que têm insistido numa forma particular do batismo, ou que têm levantado sérias questões a propósito da autenticidade dos sacramentos e dos ministérios de outras Igrejas, têm por vezes pedido a pessoas vindas de outras tradições eclesiásticas para serem batizadas antes de se tornarem plenamente membros comungantes. Em virtude de as Igrejas não só chegarem a uma compreensão mútua maior ao aceitarem-se umas às outras, mas também entrarem assim em relações mais estreitas de testemunho e de serviço, abster-se-ão de toda a prática que possa pôr em questão a integridade sacramental de outras Igrejas ou atenue o fato de que o sacramento do batismo não pode ser repetido.

b – Batismo – Crisma – Confirmação

14. Na obra de Deus para a salvação, o mistério pascal da morte e da ressurreição de Cristo está inseparavelmente ligado ao dom pentecostal do Espírito Santo. Do mesmo modo, a participação na morte e na ressurreição de Cristo está inseparavelmente ligada à recepção do Espírito. O batismo no seu sentido pleno significa e cumpre ambas as coisas.

Os cristãos diferem na sua compreensão do lugar do sinal do dom do Espírito. A transmissão do Espírito tem sido associada a gestos diferentes. Para alguns é o próprio rito da água. Para outros, é a unção com o crisma e/ ou a imposição das mãos a que em muitas Igrejas chamam confirmação. Para outros ainda são os três, pois consideram que o Espírito age através de todo o rito. Todos estão de acordo para dizer que o batismo cristão é um batismo na água e no Espírito Santo.

COMENTÁRIO:

(a) Em certas tradições explicam que, assim como o batismo nos conforma ao Cristo crucificado, sepultado e ressuscitado, assim também, pelo crisma, os cristãos recebem o dom do Espírito do Pentecostes da parte do Filho que recebeu a unção.

(b) Se o batismo, como incorporação no Corpo de Cristo, tende, pela sua própria natureza, à comunhão eucarística no corpo e no sangue de Cristo, levanta-se a questão de saber por quê ajuntar um rito separado entre batismo e admissão à comunhão. As Igrejas que batizam crianças, mas recusam-lhes a comunhão na eucaristia antes de um tal rito, deveriam interrogar-se se terão ou não assaltado e aceite plenamente as conseqüências do batismo.

(c) O batismo deve ser sem cessar reafirmado. A forma mais natural de uma tal reafirmação é a celebração da eucaristia. A renovação dos votos do batismo poderá assim ocorrer em certas ocasiões, como por exemplo na celebração anual do mistério pascal ou na altura do batismo de outras pessoas.

c – Para um reconhecimento mútuo do Batismo.

15. As Igrejas são cada vez mais capazes de reconhecer o batismo umas das outras como o único batismo de Cristo, na medida em que Jesus Cristo é confessado como Senhor pelo candidato, ou, no caso de um batismo de criança, quando essa confissão é feita pela Igreja (os pais, responsáveis, padrinhos, madrinhas, e a comunidade) e afirmada mais tarde na fé pessoal e no compromisso. O reconhecimento mútuo do batismo é evidentemente um sinal importante e um meio de exprimir a unidade batismal dada em Cristo. Em toda a parte onde tal é possível, as Igrejas deveriam exprimir de maneira explícita o reconhecimento mútuo dos seus batismos.

16. Com o fim de superar as suas diferenças, os que praticam o batismo dos adultos e os que batizam as crianças deveriam reconsiderar certos aspectos dos seus modos de agir. Os primeiros deveriam procurar exprimir mais visivelmente o fato de que as crianças estão colocadas sob a proteção da graça de Deus. Os segundos deveriam guardar-se contra a prática de batismos aparentemente sem julgamento prévio, e tomar mais a sério a sua responsabilidade na educação das crianças batizadas tendo em vista um compromisso adulto por Cristo.

V. A celebração do Batismo

17. O batismo é celebrado com água, no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

18. Na celebração do batismo, o valor simbólico da água deveria ser tomado a sério e não reduzido. O ato da imersão pode exprimir de maneira concreta o fato que, no batismo, o cristão participa na morte, na sepultura e na ressurreição de Cristo.

COMENTÁRIO:

Em certas tradições teológicas, o uso da água, todas as suas associações positivas com a vida e a bênção, significam a continuidade entre a antiga e a nova criação, manifestando desse modo a significação do batismo não somente para os seres humanos mas também para todo o cosmos. Ao mesmo tempo, o uso da água representa uma purificação da criação, uma morte para tudo o que é negativo e destruidor no mundo: os que são batizados no Corpo de Cristo são feitos participantes de uma nova existência.

19. Como acontecia nos primeiros séculos, o dom do Espírito no batismo pode ser significado de maneiras diversas: por exemplo, pelo sinal da imposição das mãos e pela unção ou crisma. O sinal da cruz evoca a marca do selo do Espírito prometido, sinal escatológico e garantia da herança final no Reino de Deus (Ef. I: 13,14). A redescoberta de tais sinais concretos pode aprofundar a liturgia.

20. Numa liturgia completa do batismo, dever-se-iam encontrar pelo menos os elementos seguintes: uma invocação do Espírito Santo; uma renúncia ao mal; uma profissão de fé em Cristo e na Trindade; o uso da água; uma declaração de que as pessoas batizadas adquiriram uma nova identidade como filhos e filhas de Deus, e como membros da Igreja, chamados a dar testemunho do Evangelho. Certas Igrejas consideram que a iniciação cristã não é completa sem o selo do Espírito Santo dado ao batizado, e a participação na comunhão.

21. Convém que, no contexto do serviço batismal, se dê uma explicação do sentido do batismo, conforme à Escritura: participação na morte e na ressurreição de Cristo, conversão, perdão e purificação, dom do Espírito, incorporação no corpo de Cristo e sinal do Reino.

COMENTÁRIO:

Algumas discussões recentes têm mostrado que conviria dar mais atenção a mal-entendidos alimentados pelo contexto sócio-cultural no qual se situa o batismo.

(a) Em certas partes do mundo, o uso de dar um nome ao batizado no decurso da liturgia batismal conduziu à confusão entre batismo e costumes locais da atribuição de um nome. Esta confusão torna-se particularmente lamentável se, em culturas predominantemente não cristãs, aos batizados são dados nomes cristãos não enraizados na sua tradição cultural. Ao elaborarem as suas disciplinas do batismo, as Igrejas deveriam ter todo o cuidado no acento a pôr na verdadeira significação do batismo, para evitar que os batizados sejam inutilmente afastados da sua cultura local pela imposição de nomes estrangeiros. Um nome recebido da sua própria cultura de origem enraíza o batizado nessa cultura e, ao mesmo tempo, manifesta a universalidade do batismo, incorporação na Igreja una, santa, católica e apostólica, que se estende sobre todas as nações da terra.

(b) Em muitas Igrejas multitudinárias européias e norte-americanas, pratica-se freqüentemente o batismo das crianças aparentemente sem nenhuma discriminação. Uma tal prática contribui para que as Igrejas que praticam o batismo dos adultos se sintam pouco motivadas para reconhecer a validade daquele batismo; este fato deveria conduzir a uma reflexão mais crítica sobre a significação do batismo no seio das próprias igrejas multitudinárias.

(c) Certas Igrejas africanas praticam o batismo do Espírito Santo, sem água, pela imposição das mãos, reconhecendo contudo o batismo das outras Igrejas. Torna-se necessário um estudo no respeitante a esta prática e à sua relação com o batismo de água.

22. O batismo é normalmente celebrado por um ministro ordenado, ainda que em certas circunstâncias outros sejam autorizados a batizar.

23. Visto o batismo estar estreitamente ligado à vida comunitária e ao culto da Igreja, deveria ser celebrado durante um serviço litúrgico público. Assim os membros da comunidade poderiam evocar o seu próprio batismo, acolhendo os batizados na sua comunhão fraterna e comprometendo-se a formá-los na fé cristã. Como era prática na Igreja antiga, as grandes festas da Páscoa, do Pentecostes e da Epifania são muito adequadas para a celebração do batismo.

III - Eucaristia

I. A Instituição da Eucaristia

1. A Igreja recebe a eucaristia como um dom da parte do Senhor. S. Paulo escreveu: “Eis o que eu recebi do Senhor, e o que vos transmiti: o Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão, e, depois de ter dado graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo, que é por vós, fazei isso em memorial (anamnesis) de mim”. Fez o mesmo com o cálice, depois de ter ceado, dizendo: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto todas as vezes que dele beberdes, em memorial de mim.” (1 Cor 11:23-25; cf. Mat. 26;26-29; Marc 14:22-25; Luc 22: 14-20).

As refeições que Jesus partilhou durante o seu ministério terrestre, e das quais temos notícia, proclamam e representam a proximidade do Reino: a multiplicação dos pães é disso um sinal. Quando da sua última refeição, a comunhão do Reino foi posta em relação com a perspectiva dos sofrimentos de Jesus. Depois da sua ressurreição, o Senhor manifestou a sua presença e deu-se a conhecer aos seus discípulos na fração do pão. A eucaristia encontra-se, assim, na linha de continuidade dessas refeições de Jesus durante a sua vida terrestre e depois da sua ressurreição, sinais contínuos do Reino. Os cristãos consideram que a eucaristia é prefigurada pelo memorial do livramento, na Páscoa de Israel, libertação do país da servidão, e pela refeição da Aliança no monte Sinai (Êxodo 24). Ela é a nova refeição pascal da Igreja, a refeição da Nova Aliança que Cristo deu aos seus discípulos como o memorial (anamnesis) da sua morte e da sua ressurreição, como a antecipação do banquete do Cordeiro (Ap. 19:9); Cristo ordenou aos seus discípulos que fizessem memória dele, encontrando-o assim, nesta refeição sacramental, como povo de Deus peregrino, até à sua volta.

A última refeição celebrada por Jesus foi uma refeição litúrgica que utilizava palavras e gestos simbólicos. Conseqüentemente, a eucaristia é uma refeição sacramental que, através de sinais visíveis, nos comunica o amor de Deus em Jesus Cristo, o amor com que Jesus amou os seus “até ao fim” (João 13:1). Têm-lhe sido dados diversos nomes, por exemplo: refeição do Senhor, fração do pão, santa ceia, santa comunhão, divina liturgia, missa. A sua celebração é sempre o ato central do culto da Igreja.

II. A significação da Eucaristia

2. A eucaristia é essencialmente o sacramento do dom que Deus nos faz em Cristo pelo poder do Espírito Santo. Cada cristão recebe este dom da salvação pela comunhão no corpo e no sangue de Cristo. Na refeição eucarística, no ato de comer o pão e de beber o vinho, Cristo concede a comunhão com ele. Deus mesmo age na eucaristia dando vida ao corpo de Cristo e renovando cada membro deste corpo. Segundo a promessa de Cristo, cada batizado, membro do corpo de Cristo, recebe na eucaristia a segurança da remissão dos pecados (Mat. 26:28) e a garantia da vida eterna (João 6:51-58). Ainda que a eucaristia seja essencialmente um todo, ela será considerada aqui sob os seguintes aspectos: ação de graças ao Pai, memorial e Cristo, invocação do Espírito, comunhão dos fiéis, refeição do Reino.

a – A Eucaristia como Ação de Graças ao Pai

3. A eucaristia, que contem sempre simultaneamente palavra e sacramento, é uma proclamação e uma celebração da obra de Deus. A eucaristia é a grande ação de graças ao Pai por tudo o que ele cumpriu na criação, na redenção e na santificarão, por tudo o que ele cumpre agora na Igreja e no mundo não obstante o pecado dos seres humanos, por tudo o que ele cumprirá conduzindo o seu Reino até à plenitude. Deste modo, a eucaristia é a bênção (berakah) pela qual a Igreja exprime o seu reconhecimento para com Deus por todos os seus benefícios.

4. A eucaristia é o grande sacrifício de louvor, pelo qual a Igreja fala no nome de toda a criação. Com efeito, o mundo que Deus reconciliou com ele mesmo está presente em cada eucaristia: no pão e no vinho, na pessoa dos fiéis e nas orações que eles oferecem por eles próprios e por todo os humanos. Cristo une os fiéis à sua pessoa e as orações deles à sua própria intercessão, de modo que os fiéis são transfigurados e as suas orações aceites. Este sacrifício de louvor só é possível por Cristo, com ele e nele. O pão e o vinho, frutos da terra e do trabalho dos homens, são apresentados ao Pai na fé e na ação de graças. Deste modo, a eucaristia revela ao mundo aquilo em que ele se deve tornar: uma oferta e um louvor ao Criador, uma comunhão universal no Corpo de Cristo, um reino de justiça, de amor e de paz no Espírito Santo.

b – A Eucaristia como “anamnese” ou Memorial de Cristo

5. A eucaristia é o memorial de Cristo crucificado e ressuscitado, isto é, o sinal vivo e eficaz do seu sacrifício, cumprido uma vez por todas sobre a cruz, e continuamente agindo a favor de toda a humanidade. A concepção bíblica do memorial aplicada à eucaristia exprime esta eficácia atual da obra de Deus quando ela é celebrada pelo seu povo sob a forma de liturgia.

6. O próprio Cristo, com tudo o que ele cumpriu por nós e pela criação inteira (na sua incarnação, condição de servo, ministério, ensino, sofrimento, sacrifício, ressurreição, ascensão e envio do Espírito Santo) está presente neste memorial: ele concede-nos a comunhão com ele. A eucaristia é deste modo o antegosto da sua volta e do reino eterno.

7. O memorial, onde Cristo age através da celebração jubilosa da sua Igreja, é pois simultaneamente representação e antecipação. O memorial não é somente uma lembrança do passado ou da sua significação; é a proclamação eficaz feita pela Igreja da grande obra de Deus e das suas promessas.

8. O memorial, como representação e antecipação, cumpre-se sob a forma de ação de graças e de intercessão. Proclamando diante de Deus, na ação de graças, a grande obra de redenção, a Igreja intercede junto dele para que ele conceda a todos os seres os benefícios desta libertação. Nesta ação de graças e intercessão, a Igreja está unida com o Filho, seu Sumo Sacerdote e seu intercessor (Rom 8:34; Heb 7:25). A eucaristia é o sacramento do sacrifício único de Cristo, continuamente vivo para interceder em nosso favor. Ela é o memorial de tudo o que Deus faz pela salvação do mundo. “O que Deus quis cumprir na incarnação, vida, morte, ressurreição e ascensão de Cristo, não volta a fazê-lo; esses acontecimentos são únicos, não podem ser nem repetidos nem prolongados. No memorial da eucaristia, porém, a Igreja oferece a sua intercessão, na comunhão de Cristo, nosso Sumo Sacerdote.

COMENTÁRIO:

É à luz desta significação da eucaristia como intercessão que se podem compreender as referências à eucaristia como “sacrifício propiciatório” na teologia católica. Só há uma expiação, a do sacrifício único da Cruz, atuante na eucaristia e apresentado ao Pai na intercessão de Cristo e da Igreja por toda a humanidade. À luz da concepção bíblica do memorial, todas as Igrejas poderiam rever as velhas controvérsias a propósito da noção de “sacrifício”, e aprofundar a sua compreensão das razões pelas quais outras tradições utilizaram ou rejeitaram este termo.

9. O memorial de Cristo é o fundamento e a fonte de toda a oração cristã. A nossa oração apóia-se na intercessão contínua do Senhor ressuscitado, está unida a esta intercessão. Na eucaristia, Cristo dá-nos a força para vivermos com ele, sofrermos com ele e orarmos por intermédio dele, como pecadores justificados que cumprem livre e alegremente a sua vontade.

10. Em Cristo oferecemo-nos a nós mesmos em sacrifício vivo e santo em toda a nossa vida quotidiana (Rom 12:1; 1 Ped 2:5); este culto espiritual agradável a Deus alimenta-se na eucaristia, onde somos santificados e reconciliados no amor para sermos servidores da reconciliação no mundo.

11. Unidos a nosso Senhor e em comunhão com todos os santos e mártires, somos renovados na aliança selada pelo sangue de Cristo.

12. Visto a “anamnese” de Cristo ser o verdadeiro conteúdo da Palavra proclamada, bem como a essência da refeição eucarística, uma reforça a outra. A celebração da eucaristia implica normalmente a proclamação da Palavra.

13. As palavras e gestos de Cristo na instituição da eucaristia estão no coração da celebração: a refeição é o sacramento do corpo e do sangue de Cristo, o sacramento da sua presença real. Cristo cumpre de modos múltiplos a sua promessa de estar com os seus para sempre até ao fim do mundo. Mas o modo da presença de Cristo na eucaristia é único. Jesus disse sobre o pão e o vinho da eucaristia: “Isto é o meu corpo… Isto é o meu sangue…” O que Cristo disse é a verdade e cumpre-se todas as vezes que a eucaristia é celebrada. A Igreja confessa a presença real, viva e ativa de Cristo na eucaristia. Ainda que a presença real de Cristo na eucaristia não dependa da fé dos indivíduos, todos estão de acordo para dizer que o discernimento do corpo e do sangue de Cristo exige a fé.

COMENTÁRIO:

Muitas Igrejas crêem que, pelas palavras de Jesus e pelo poder do Espírito Santo, o pão e o vinho da eucaristia se tornam, de uma maneira real e no mistério, o corpo e o sangue de Cristo ressuscitado, isto é, do Cristo vivo presente em toda a sua plenitude. Sob os sinais do pão e do vinho, a realidade profunda é o ser total de Cristo, que vem a nós para nos alimentar e transformar todo o nosso ser. Outras Igrejas, afirmando embora a presença real de Cristo na eucaristia, não vinculam essa presença de um modo tão definido aos sinais do pão e do vinho. As Igrejas deverão decidir se essa diferença pode coexistir com a convergência formulada no próprio texto.

c – A Eucaristia como invocação do ESPÍRITO

14. O Espírito Santo faz com que Cristo crucificado e ressuscitado esteja realmente presente para nós na refeição eucarística, cumprindo assim a promessa contida nas palavras da instituição. É evidente que a eucaristia está centrada na presença de Cristo e, por conseguinte, que a promessa contida nas palavras da instituição é fundamental para a celebração. O Pai é, contudo, a origem primeira e o cumprimento final do acontecimento eucarístico. O Filho de Deus feito homem, por quem, com quem e em quem esse acontecimento se cumpre, é o seu centro vivo. O Espírito Santo é a incomensurável força de amor que torna tal possível, tornando-o eficaz. Este vínculo da celebração eucarística com o mistério do Deus-Trindade, situa o papel do Espírito Santo como o que atualiza e vivifica as palavras históricas de Cristo. Na certeza de ser atendida em virtude da promessa de Jesus contida nas palavras da instituição, a Igreja pede ao Pai o Espírito Santo para que ele cumpra o acontecimento eucarístico: a presença real de Cristo crucificado e ressuscitado que dá a sua vida por toda a humanidade.

COMENTÁRIO:

Não se trata de uma espiritualização da presença eucarística de Cristo, mas da afirmação de uma união indissolúvel entre o Filho e o Espírito. Esta união manifesta que a eucaristia não é um acto mágico e automático, mas sim uma oração que se dirige ao Pai, sublinhando a total dependência da Igreja em relação a ele. As palavras da instituição, promessa de Cristo, e a epíclese, invocação do Espírito, estão pois em estreita relação na liturgia. A epíclese aparece situada de modo diferente em relação às palavras da instituição nas diversas tradições litúrgicas. Nas liturgias primitivas, toda a “oração eucarística” era concebida como portadora da realidade prometida por Cristo. A invocação do Espírito era feita simultaneamente sobre a comunidade e sobre os elementos do pão e do vinho. Reencontrando esta concepção, poderíamos superar as nossas dificuldades relativas a um momento particular da consagração.

15. É em virtude da palavra viva de Cristo, e pelo poder do Espírito Santo, que o pão e o vinho se tornam os sinais sacramentais do corpo e do sangue de Cristo. Eles continuam a sê-lo em vista da comunhão.

COMENTÁRIO:

Na história da Igreja houve diversas tentativas para compreender o mistério da presença real única de Cristo na eucaristia. Alguns limitam-se à afirmação pura e simples dessa presença, sem querer explicá-la. Outros consideram como necessária a afirmação de uma mudança realizada pelo Espírito Santo e pelas palavras de Cristo, que faz com que não haja mais um pão e um vinho ordinários mas o corpo e o sangue de Cristo. Outros, ainda, elaboraram uma explicação da presença real que não pretende esgotar a significação do mistério, mas quer protegê-la contra as interpretações nocivas.

16. Toda a celebração da eucaristia tem um caráter “epiclético”, isto é, está dependente da ação do Espírito Santo. Este aspecto da eucaristia encontra uma expressão variada nas palavras da liturgia.

17. A Igreja, como comunidade da nova aliança, invoca o Espírito com confiança, a fim de ser santificada e renovada, conduzido em toda a justiça, verdade e unidade, e fortalecida para cumprir a sua missão no mundo.

18. O Espírito Santo, através da eucaristia, dá um antegosto do Reino de Deus: a Igreja recebe a vida da nova criação e a segurança da volta do Senhor.

d – A Eucaristia como comunhão dos fiéis

19. A comunhão eucarística com o Cristo presente, que alimenta a vida da Igreja, é ao mesmo tempo comunhão no Corpo de Cristo que é a Igreja. A partilha do mesmo pão e do cálice comum, num dado lugar, manifesta e cumpre a unidade dos participantes com Cristo e com todos os comungantes, em todos os tempos e em todos os lugares. É na eucaristia que a comunidade do povo de Deus é plenamente manifestada. As celebrações eucarísticas estão sempre em relação com a Igreja inteira, e toda a Igreja está implicado em cada celebração eucarística. Na medida em que uma Igreja pretende ser uma manifestação da Igreja universal, deveria preocupar-se com ordenar a sua própria vida segunda vias que tomassem a sério os interesses e preocupações das Igrejas irmãs.

COMENTÁRIO:

Desde os princípios, o batismo foi concebido como o sacramento pelo qual os crentes são incorporados no Corpo de Cristo e cheios do Espírito Santo. Se, pois, uma Igreja, os seus ministros e os seus fiéis, contestam a outras Igrejas, aos seus batizados e aos seus ministros, o direito de participar na eucaristia ou de a ela presidir, a catolicidade da eucaristia é menos manifesta. Em muitas Igrejas hoje discute-se a questão da admissão das crianças batizadas como comungantes na eucaristia.

20. A eucaristia abarca todos os aspectos da vida. É um ato representativo de ação de graças e de oferta no nome do mundo inteiro. A celebração eucarística pressupõe a reconciliação e a partilha com todos, olhados como irmãos e irmãs na única família de Deus; ela é um constante desafio na busca de relações normais no selo da vida social, econômica e política (Mat 5:23ss; 1 Cor 10:l6ss; 1 Cor 11:20-22; Gal 3:28).Quando partilhamos o corpo e o sangue de Cristo, há um desafio radical que é lançado a todas as formas de injustiça, de racismo, de separação e de ausência de liberdade. Através da eucaristia, a graça de Deus que renova tudo penetra e restaura a pessoa humana e a sua dignidade. A eucaristia envolve o crente no acontecimento central da história do mundo. Como participantes na eucaristia, pois, mostramo-nos inconseqüentes se não participamos ativamente nesta restauração contínua da situação do mundo e da condição humana. A eucaristia mostra-nos que o nosso comportamento é inconsistente em face da presença reconciliadora de Deus na história humana: estamos colocados sob um julgamento contínuo pela persistência de todas as espécies de relações injustas na nossa sociedade, pelas numerosas divisões devidas ao orgulho humano, ao interesse material e às políticas do poder, e enfim pela obstinação assumida nas oposições confessionais injustificáveis no seio do Corpo de Cristo.

21. A solidariedade no Corpo de Cristo, afirmada pela comunhão eucarística, e a responsabilidade dos cristãos entre si e para com o mundo, encontram uma expressão particular nas liturgias: o perdão mútuo dos pecados, o sinal da paz, a intercessão por todos, comer e beber juntos, levar os elementos eucarísticos aos doentes e aos prisioneiros ou celebrar a eucaristia com eles. Todos estes sinais de amor fraterno na eucaristia estão diretamente ligados ao próprio testemunho do Cristo servo: os cristãos participam, eles mesmos, na sua condição de servo. Deus, em Cristo, entrou na condição humana; a liturgia eucarística está, assim, próxima das situações concretas e particulares dos homens e das mulheres. Na Igreja primitiva, ao ministério dos diáconos e das diaconisas incumbia a responsabilidade específica de manifestar este aspecto da eucaristia. O exercício de um tal ministério entre a Mesa e a miséria humana exprime concretamente a presença libertadora de Cristo no mundo.

e – A Eucaristia como refeição do Reino

22. A eucaristia abre a visão do Reino de Deus, prometido com a renovação final da criação, ela é um antegosto dessa nova ordem de coisas. Sinais dessa renovação estão presentes no mundo por toda a parte onde a graça de Deus se manifesta, e onde os seres humanos trabalham pela justiça, pelo amor e pela paz. A eucaristia é a festa na qual a Igreja dá graças a Deus por esses sinais, celebra e antecipa na alegria a vinda do Reino em Cristo (1 Cor 11:26; Mat 26:29).

23. O mundo prometido à renovação está presente em toda a celebração eucarística.

O mundo está presente na ação de graças ao Pai, quando a Igreja fala no nome da criação inteira; o mundo está presente durante o memorial de Cristo, quando a Igreja está unida ao seu Sumo Sacerdote e intercessor, na sua oração por toda a humanidade; o mundo está presente no momento da invocação do dom do Espírito, quando a Igreja aspira à santificarão e à nova criação.

24. Reconciliados na eucaristia, os membros do corpo de Cristo são chamados a ser servidores da reconciliação no meio dos homens e das mulheres, e testemunhas da alegria de que a fonte é a ressurreição. Tal como Jesus ia ao encontro dos publicamos e dos pecadores e comia com eles, durante o seu ministério terrestre, assim também os cristãos são chamados, na eucaristia, a serem solidários dos marginais, a tornarem-se sinais do amor de Cristo, que viveu e se sacrificou por todos, que se dá agora a si mesmo na eucaristia.

25. A celebração da eucaristia é um momento em que a Igreja participa na missão de Deus no mundo. Esta participação toma forma quotidianamente na proclamação do Evangelho, no serviço do próximo e na presença constante no mundo.

26. Dom total de Deus, a eucaristia oferece a realidade nova que transforma a vida dos cristãos, a fim de fazer deles imagem de Cristo e suas testemunhas eficazes. A eucaristia é deste modo um precioso alimento para os missionários, o pão e o vinho dos peregrinos, em vista do seu êxodo apostólico no mundo. A comunidade eucarística é alimentada de maneira a poder confessar por palavras e ações que Jesus Cristo é o Senhor que ofereceu a sua vida pela salvação do mundo. Convertendo-se num povo único em torno de uma refeição única, a assembléia eucarística deve inevitavelmente preocupar-se com a reunião daqueles que estão para além dos seus limites visíveis, pois é Cristo quem convidou para o seu banquete todos aqueles pelos quais ele morreu. O fato de os cristãos não poderem reunir-se numa plena comunhão à mesma mesa, para comerem o mesmo pão e beberem o mesmo cálice, constitui um enfraquecimento do seu testemunho missionário individual e comum.

III. A celebração da Eucaristia

27. A liturgia eucarística é essencialmente um todo, implicando historicamente os seguintes elementos que podem apresentar-se numa ordem diferente e cuja importância não é igual:

  • Canto de louvor;
  • Ato de arrependimento;
  • Declaração de perdão;
  • Proclamação de diversos modos da Palavra de Deus;
  • Confissão de fé (credo);
  • Intercessão por toda a Igreja e pelo mundo;
  • Preparação do pão e do vinho;
  • Ação de graças ao Pai pelas maravilhas da criação, da redenção e da santificação (de que a origem é a berakah da tradição judaica);
  • Palavras de Cristo para a instituição do sacramento, segundo a tradição neotestamentária;
  • “Anamnese” ou memorial dos grandes atos da redenção: paixão, morte, ressurreição, ascensão de Cristo e pentecostes que deu existência à Igreja;
  • Invocação do Espírito Santo sobre a comunidade e sobre os elementos do pão e do vinho (epíclese, seja antes das palavras da instituição, seja depois do memorial, ou antes e depois, ou uma outra referência ao Espírito Santo que exprima adequadamente o caráter “epiclético” da eucaristia);
  • Consagração dos fiéis a Deus;
  • Lembrança da comunhão dos santos;
  • Oração pela vinda do Senhor e pela manifestação definitiva do seu Reino;
  • Amém de toda a comunidade;
  • Oração dominical;
  • Sinal de reconciliação e de paz;
  • Fração do pão;
  • Comer e beber em comunhão com Cristo e com cada membro da Igreja;
  • Louvor final;
  • Bênção e envio em missão.

28. O melhor caminho para a unidade na celebração eucarística e na comunhão, reside na própria renovação da eucaristia nas diversas Igrejas, no plano do ensino e d liturgia. As Igrejas deveriam examinar de novo as suas liturgias à luz do crescente acordo eucarístico. O movimento de reforma litúrgica aproximou as Igrejas na sua maneira de celebrar a eucaristia.

Reconhece-se, contudo, que uma certa diversidade litúrgica, compatível com a nossa fé eucarística comum, é uma realidade sã e enriquecedora. A afirmação de uma fé comum a propósito da eucaristia, não implica a uniformidade na liturgia e na prática.

COMENTÁRIO:

Desde a época do Novo Testamento que a Igreja atribui uma grande importância ao uso contínuo dos elementos do pão e do vinho que Jesus empregou na Santa Ceia. Em certas partes do mundo, onde o pão e o vinho não podem ser facilmente obtidos, pretende-se por vezes hoje que o alimento e a bebida locais servem melhor para enraizar a eucaristia na vida de todos os dias. Impõe-se um estudo ulterior onde se aborde a questão de saber que aspectos da Santa Ceia são imutáveis por força da instituição de Jesus, e que aspectos podem depender da competência e da decisão da Igreja.

29. Na celebração da eucaristia, Cristo congrega, ensina e alimenta a Igreja. É Cristo quem convida à refeição e a ela preside. Ele é o Pastor que conduz o Povo de Deus, o Profeta que anuncia a Palavra de Deus, o Sacerdote que celebra o Mistério de Deus. Na maior parte das Igrejas, esta presidência de Cristo tem por sinal a de um ministro ordenado. O que preside à celebração eucarística no nome de Cristo, manifesta que a assembléia não é proprietária do gesto que cumpre, que ela não é dona da eucaristia: ela recebe-a como um dom do Cristo vivo na sua Igreja. O ministro da eucaristia é o enviado que representa a iniciativa de Deus e exprime a ligação da comunidade local com as outras comunidades na Igreja universal.

30. A fé cristã aprofunda-se na celebração da eucaristia. Por isso a eucaristia deveria ser celebrada freqüentemente. Muitas diferenças de teologia, de liturgia e de prática estão ligadas à freqüência da celebração eucarística.

31. Visto a eucaristia celebrar a ressurreição de Cristo, seria normal ela ter lugar pelo menos todos os domingos. Visto ser ela a nova refeição sacramental do povo de Deus, dever-se-ia encorajar cada cristão a receber a comunhão freqüentemente.

32. Certas Igrejas insistem na duração da presença de Cristo nos elementos consagrados da eucaristia, depois da celebração; outras sublinham antes o ato da celebração em si mesmo e o consumo dos elementos na comunhão. A maneira de tratar os elementos reclama uma atenção particular. No que respeita à reserva dos elementos, cada Igreja deveria respeitar as práticas e a piedade das outras. Dada a diversidade entre as Igrejas, e tida em conta também a situação presente no desenvolvimento das convergências, e útil sugerir:

  • que, por um lado, se lembre, nomeadamente na catequese e na pregação, que a intenção primeira da reserva dos elementos é a sua distribuição aos doentes e aos ausentes;
  • e que, por outro lado, se reconheça que a melhor maneira de testemunhar o respeito devido aos elementos que serviram à celebração eucarística é o seu consumo, sem excluir o seu uso para a comunhão dos doentes.

33. A crescente compreensão mútua expressa no presente documento pode permitir a certas Igrejas atingirem uma maior medida de comunhão eucarística entre elas, e deste modo tornarem mais próximo o dia em que o povo de Cristo dividido será reunido visivelmente à volta da Mesa do Senhor.

IV - Ministério

I. A Vocação de Todo o Povo de Deus

1. Num mundo dilacerado, Deus chama toda a humanidade a tornar-se seu povo. Para isso escolheu Israel, em seguida falou de uma maneira única e decisiva em Jesus Cristo. Filho de Deus, Jesus fez suas a natureza, a condição e a causa de todo o gênero humano dando-se a si mesmo em sacrifício por todos. A sua vida de serviço, a sua morte e a sua ressurreição são os fundamentos de uma nova comunidade que é edificada continuamente pela boa nova do Evangelho e pelo dom dos sacramentos. O Espírito Santo une em um só corpo aqueles que seguem Jesus Cristo, e envia-nos como testemunhas ao mundo. Pertencer à Igreja significa viver em comunhão com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo.

2. A vida da Igreja tem como fundamento a vitória de Cristo contra os poderes do mal e da morte, cumprida uma vez por todas. Cristo oferece o perdão, convida ao arrependimento e livra da destruição. Torna-nos capazes de nos voltarmos para Deus no louvor e para o próximo no serviço. É a fonte da vida nova na liberdade, no perdão mútuo e no amor. Dirige os corações e os espíritos para o cumprimento do Reino onde a sua vitória se tornará manifesta e onde todas as coisas serão feitas novas. O propósito de Deus é que, em Jesus Cristo, todos possam partilhar desta comunhão.

3. A Igreja vive pelo poder libertador e regenerador do Espírito Santo. Jesus recebeu a unção do Espírito Santo na altura do seu batismo e, depois da sua ressurreição, este mesmo Espírito foi dado àqueles que criam no Senhor ressuscitado, para fazer deles o Corpo de Cristo. O Espírito chama à fé, santifica pelos seus numerosos dons e concede a força para testemunharmos o Evangelho e servirmos na esperança e no amor. Guarda a Igreja na verdade e a conduz não obstante a fraqueza dos seus membros.

4. A Igreja é chamada a proclamar e a prefigurar o Reino de Deus, anunciando o Evangelho ao mundo e vivendo como Corpo de Cristo. Em Jesus, o Reino de Deus surgiu entre nós. Ele ofereceu a salvação aos pecadores. Anunciou a boa nova aos pobres, aos cativos a libertação, aos cegos a vista, aos oprimidos o livramento(Luc 4:18). Cristo abriu um novo acesso para o Pai.

Ao viverem esta comunhão com Deus, todos os membros da Igreja são chamados a confessarem a sua fé e a exporem a sua esperança. Eles partilham com todos as alegrias e os sofrimentos, procurando testemunhar a cada um, um amor cheio de compaixão. Os membros do Corpo de Cristo lutarão ao lado dos que são oprimidos, tendo em vista a liberdade e a dignidade prometidas com a vinda do Reino. Esta missão deve ser cumprida nos diversos contextos políticos, sociais e culturais. A fim de cumprirem a sua missão fielmente, procurarão as formas adaptadas ao testemunho e ao serviço em cada situação concreta. Deste modo, proporcionarão ao mundo uma antecipação da alegria e da glória do Reino de Deus.

5. O Espírito Santo concede à comunidade dons diversos e complementares. Eles são dados para o bem comum de todo o povo, e manifestam-se em ações de serviço no seio da comunidade e a favor do mundo. Podem ser dons de comunicação do Evangelho em palavras e em atos, dons de cura, de oração, de ensino e de escuta, dons de serviço, de direção e de obediência, de inspiração e de visão. Todos os membros são chamados a descobrir, com a ajuda da comunidade, os dons que receberam e a utilizá-los para a edificação da Igreja e o serviço do mundo ao qual a Igreja é enviada.

6. Ainda que as Igrejas estejam de acordo na sua compreensão geral da vocação do povo de Deus, diferem nas suas concepções da estrutura da vida da Igreja. Em particular há diferenças a propósito do lugar e das formas do ministério ordenado. Ao empenharem-se no esforço para superarem as suas diferenças, é necessário que as Igrejas tomem como ponto de partida a vocação de todo o povo de Deus. As Igrejas devem procurar uma resposta comum à questão seguinte: de que modo, segundo a vontade de Deus e sob a conduta do Espírito, deve a vida da Igreja ser concebida e estruturada a fim de o Evangelho poder ser difundido e a comunidade edificada no amor?

II. A Igreja e o Ministério Ordenado

7. As diferenças na terminologia fazem parte do debate. Para evitar a confusão nas discussões sobre o ministério ordenado na Igreja, é necessário precisar claramente em que sentido, diversos termos são utilizados no decurso dos parágrafos seguintes.

A palavra carisma refere-se aos dons concedidos pelo Espírito Santo a cada membro do Corpo de Cristo, em vista da edificação da comunidade e do cumprimento da sua vocação.

A palavra ministério, em sentido lato, refere-se ao serviço que todo o Povo de Deus é chamado a cumprir, quer por intermédio de pessoas, quer pela comunidade local, quer como Igreja universal; ministério ou ministérios podem também referir-se a formas institucionais particulares assumidas por esse serviço.

Termo ministério ordenado refere-se às pessoas que, tendo recebi o um carisma, são investidos pela Igreja – mediante ordenação, invocação do Espírito e imposição das mãos – no desempenho de um determinado serviço. Muitas Igrejas empregam a palavra sacerdote para designar certos ministros ordenados. Visto tal uso não ser universal, este documento abordará a questão fundamental no parágrafo 17.

a - O Ministério Ordenado

8. A fim de cumprir a sua missão, a Igreja necessita de pessoas que sejam responsáveis publicamente, e de maneira contínua, pela tarefa de enfatizar a sua dependência fundamental em relação a Jesus Cristo, e que constituam desse modo, dentro da multiplicidade dos dons, um foco da sua unidade. O ministério de tais pessoas que, desde tempos muito antigos, têm sido ordenadas, é constitutivo da vida e do testemunho da Igreja.

9. A Igreja nunca existiu sem pessoas que detenham uma autoridade e uma responsabilidade específicas. Jesus escolheu e enviou os discípulos para serem testemunhas do Reino (Mat. 10:1-15.16-18). Os Doze receberam a promessa de que se assentariam sobre tronos para julgarem as tribos de Israel (Luc. 22:30). Um papel particular é atribuído aos Doze nas comunidades da primeira geração. Eles são testemunhas da ressurreição do Senhor (Act.1:21-26), guias da Comunidade na oração, no ensino, na fração do pão, na proclamação e no serviço (Act. 2:42-47, 6:2-6; etc.). A própria existência dos Doze e dos outros apóstolos mostra que, desde o princípio, havia papéis diferenciados na comunidade.

COMENTÁRIO:

No Novo Testamento, o termo “apóstolo” é empregue em variados sentidos. É utilizado para designar não só os Doze mas também um círculo mais largo de discípulos. É aplicado a Paulo e a outros enquanto enviados pelo Cristo ressuscitado para proclamarem o Evangelho. Os papéis desempenhados pelos apóstolos cobrem simultaneamente a fundação e a missão.

10. Jesus chamou os Doze para serem representantes do Israel renovado. Nessa altura eles representavam todo o povo de Deus, e ao mesmo tempo exerciam um papel especial no meio da comunidade. Depois da ressurreição, encontram-se entre os guias da comunidade. Pode-se, pois, dizer que os apóstolos prefiguram simultaneamente a Igreja inteira e as pessoas encarregadas de uma autoridade e de uma responsabilidade específicas na Igreja. O papel dos apóstolos como testemunhas da ressurreição de Cristo é único e não pode ser reiterado. Há, pois, uma diferença entre os apóstolos e os ministros ordenados cujos ministérios são fundados sobre os dos apóstolos.

11. Cristo, que escolheu e enviou os apóstolos, continua, mediante o Espírito Santo, a escolher e chamar pessoas para o ministério ordenado. Como arautos e embaixadores, os ministros ordenados representam Jesus Cristo para a comunidade e proclamam a sua mensagem de reconciliação. Como guias e professores, chamam a comunidade a submeter-se à autoridade de Jesus Cristo, o mestre e o profeta, em quem a lei e os profetas se cumpriram. Como pastores, sob a autoridade de Jesus Cristo o grande pastor, congregam e conduzem o povo de Deus disperso, na expectativa do Reino que vem.

COMENTÁRIO:

A realidade fundamental de um ministério ordenado existia desde o princípio (ver parágrafo 8). As formas atuais da ordenação e do ministério ordenado, contudo, evoluíram no decurso de um desenvolvimento histórico complicado (ver parágrafo 19). As Igrejas devem, pois, evitar atribuir as suas formas particulares do ministério ordenado diretamente à vontade e à instituição do próprio Jesus Cristo.

12. Todos os membros da comunidade crente, ordenados e leigos, estão estreitamente ligados. Por um lado, a comunidade precisa de ministros ordenados. A sua presença lembra à comunidade a iniciativa divina e a dependência da Igreja em relação a Jesus Cristo, que é a fonte da sua missão e o fundamento da sua unidade. Eles estão ao serviço da edificação da comunidade em Cristo e do fortalecimento do seu testemunho. Neles, a Igreja procura dar um exemplo de santidade e de compaixão. Por outro lado, o ministério ordenado não pode ser considerado como isolado em relação à comunidade. Os ministros ordenados não podem cumprir a sua vocação senão na e para a comunidade. Eles não podem prescindir do reconhecimento, do amparo e do encorajamento da comunidade.

13. A função específica do ministério ordenado é a de congregar e construir o Corpo de Cristo, pela proclamação e ensino da Palavra de Deus, pela celebração dos sacramentos, e pela direção da vida da comunidade na sua liturgia, missão e diaconia.

COMENTÁRIO:

Estas funções não são exercidos pelo ministro ordenado de uma maneira exclusiva. Visto o ministério ordenado e a comunidade estarem estreitamente ligados, todos os membros participam no exercício destas funções. Com efeito, todo o carisma serve para congregar e construir o Corpo de Cristo. Todo o membro do Corpo pode participar na proclamação e no ensino da Palavra de Deus, pode contribuir para a vida sacramental do Corpo. O ministério ordenado cumpre estas funções de uma maneira representativa, constituindo o foco de unidade da vida e do testemunho da comunidade.

14. É particularmente na celebração eucarística que ministério ordenado é o foco visível da comunhão profunda que une Cristo e os membros do seu Corpo, e que abarca toda a realidade. Na celebração da eucaristia, Cristo congrega, ensina e alimenta a Igreja. É Cristo quem convida à refeição e a ela preside. Na maior parte das Igrejas, esta residência de Cristo tem por sinal o de um ministro ordenado, que a representa.

COMENTÁRIO:

O Novo Testamento diz poucas coisas sobre a ordem da eucaristia. Não há indicação explícita sobre a sua presidência. É evidente que, muito cedo, um ministro ordenado assumiu a função de presidir à celebração. Se é verdade que o ministério ordenado constitui um foco de unidade da vida e do testemunho da Igreja, então é natural que se dê a um ministro ordenado esta tarefa de presidência eucarística. Ela está intimamente ligada à responsabilidade de conduzir a comunidade, isto é, velar pela sua vida (episcopê) e intensificar a sua vigilância em relação à verdade da mensagem apostólica e à vinda do Reino.

b – Ministério Ordenado e Autoridade

15. A autoridade do ministro ordenado está enraizada em Jesus Cristo, que a recebeu do Pai (Mat. 28:18), e que a confere no Espírito Santo através do ato da ordenação. Este acto tem lugar numa comunidade que assim reconhece publicamente uma pessoa. Em virtude de Jesus ter vindo como aquele que serve (Marc. 10:45; Luc 22:27), ser separado para o ministério ordenado significa ser consagrado para o serviço. Em virtude de a ordenação ser essencialmente a separação de alguém com invocação do dom do Espírito Santo, a autoridade do ministério ordenado não pode ser compreendida como propriedade da pessoa ordenada, mas como um dom para a contínua edificação do Corpo no qual e para o qual o ministro foi ordenado. A autoridade tem o caráter de uma responsabilidade diante de Deus e é exercido com a participação de toda a comunidade.

16. É por isso que os ministros ordenados não devem ser nem autocratas nem funcionários impessoais. Ainda que estejam chamados a exercer uma função de direção, na sabedoria e no amor, sobre a base da Palavra de Deus, estão ligados aos fiéis na interdependência e na reciprocidade. É só procurando verdadeiramente a reação e o acordo da comunidade que a sua autoridade pode ser protegida dos desvios do isolamento e da dominação.

Eles manifestam e exercem a autoridade de Cristo segundo o modo pelo qual o próprio Cristo revelou a autoridade de Deus ao mundo: comprometendo a sua vida pela comunidade. A autoridade de Cristo é única. “Ele ensinava-nos como quem tem autoridade (exousia), e não como os seus escribas” (Mat 7:29). A sua é uma autoridade dominada pelo amor pelas “ovelhas que não têm pastor” (Mat 9:36). É uma autoridade confirmada pela sua vida de serviço e, de modo supremo, pela sua morte e ressurreição. A autoridade na Igreja só será autêntica se procurar conformar-se com esse modelo.

COMENTÁRIO:

Dois perigos devem evitar-se aqui. Por um lado, a autoridade não pode exercer-se senão tendo em vista a comunidade. Os apóstolos mostravam-se atentos à experiência e ao julgamento dos crentes. Por outro lado, a autoridade dos ministros ordenados não deve ser reduzida a ponto de os tornar dependentes da opinião comum da comunidade. A sua autoridade repousa na responsabilidade que têm de, no seio da comunidade, recordarem a vontade de Deus.

c – Ministério Ordenado e Sacerdócio

17. Jesus Cristo é o único sacerdote da Nova Aliança. Deu a sua vida em sacrifício por todos. A partir daí, toda a Igreja pode ser descrita como um sacerdócio. Todos os membros são chamados a oferecer o seu ser “em sacrifício vivo” e a interceder pela Igreja e a salvação do mundo. Os ministros ordenados participam – como, aliás, todos os cristãos – simultaneamente no sacerdócio de Cristo e no sacerdócio da Igreja. Mas podem ser chamados propriamente sacerdotes por cumprirem um serviço sacerdotal particular ao fortalecerem e constituírem o sacerdócio real e profético dos fiéis mediante a Palavra e os sacramentos, bem como pelas suas orações de intercessão e direção pastoral da comunidade.

COMENTÁRIO:

O Novo Testamento nunca utiliza os termos “sacerdócio” ou “sacerdote” (hiereus) para designar o ministério ordenado ou o ministro ordenado. No Novo Testamento estes termos são reservados, por um lado, para designar o único sacerdócio de Jesus Cristo e, por outro lado, para designar o sacerdócio real e profético de todos os batizados. O sacerdócio de Cristo e o sacerdócio dos batizados são, à sua maneira, uma função de sacrifício e de intercessão. Como Cristo se ofereceu a si mesmo, os cristãos oferecem o seu ser “em sacrifício vivo”. Como Cristo intercede junto do Pai, os cristãos intercedem pela Igreja e pela salvação do mundo. Contudo, as diferenças entre estas duas espécies de sacerdócio não podem ser subestimadas.

Enquanto Cristo se ofereceu a si mesmo em sacrifício único, uma vez por todas, pela salvação do mundo, os crentes têm a receber como um dom de Deus o que Cristo fez por eles.

Na Igreja antiga começou-se a utilizar os termos “sacerdócio” e “sacerdote” para designar o ministro ordenado e o ministro que presidia à eucaristia.

Tais termos sublinham o fato de que o ministério ordenado está em relação com a realidade sacerdotal de Jesus Cristo e da comunidade. Quando são utilizados em relação com o ministério ordenado têm um sentido diferente do que exprimem ao serem aplicados ao sacerdócio sacrificial do Antigo Testamento, ao único sacerdócio redentor de Cristo e ao sacerdócio comum do povo de Deus. S. Paulo caracterizava o seu ministério deste modo: “Sou um liturgo de Jesus Cristo para as nações, cumprindo uma função de sacerdote ao serviço do Evangelho de Deus, de modo que as nações sejam uma oferta aceitável, consagrada pelo Espírito Santo” (Rom 15:16).

d – O Ministério dos homens e das mulheres na Igreja

18. Onde quer que Cristo esteja presente, há um derrubar das barreiras humanas. A Igreja é chamada a apresentar ao mundo a imagem de uma nova humanidade. Em Cristo não há homem nem mulher. Homens e mulheres devem descobrir em conjunto as suas contribuições ao serviço de Cristo na Igreja. A Igreja deve descobrir os ministérios que podem ser exercidos por mulheres, bem como os que podem ser exercidos por homens. Deve-se manifestar mais amplamente na vida da Igreja uma compreensão mais profunda da amplitude do ministério que reflita a interdependência dos homens e das mulheres.

Não obstante estarem de acordo sobre a necessidade dessa reflexão, as Igrejas tiram conclusões diferentes no respeitante à admissão das mulheres ao ministério ordenado. Um número crescente de Igrejas chegou à conclusão de que não há impedimento bíblico ou teológico à ordenação das mulheres, e muitas delas praticam-na já. Contudo, muitas outras Igrejas afirmam que a tradição da Igreja sobre este assunto não deve ser alterada.

COMENTÁRIO:

As Igrejas que praticam a ordenação das mulheres fazem-no motivadas pela sua compreensão do Evangelho e do ministério. Tal prática assenta para elas na convicção teológica profunda de que ao ministério ordenado da Igreja falta alguma coisa quando é limitado a um só sexo. A experiência dessas Igrejas durante os anos em que incluíram mulheres nos seus ministérios ordenados, fortaleceu uma tal convicção teológica. Elas descobriram que os dons das mulheres são tão amplos e variados como os dos homens, e que o seu ministério é abençoado tão plenamente pelo Espírito Santo como o ministério dos homens. Nenhuma delas encontrou motivo para voltar atrás na decisão tomada.

As Igrejas que não praticam a ordenação das mulheres, consideram que a força de dezenove séculos de tradição contra esta ordenação não deve ser posta de lado. Crêem que não se pode renunciar a esta tradição como se ela fosse uma falta de respeito pelo papel da mulher na Igreja. Crêem que há problemas teológicos respeitantes à natureza humana e à cristologia que estão vinculados à essência das suas convicções e da sua compreensão do papel das mulheres na Igreja.

A discussão destas questões práticas e teológicas nas diversas Igrejas e tradições cristãs, deveria ser completada com um estudo comum e com reflexão no interior da comunhão ecumênica de todas as Igrejas.

III. As formas do Ministério Ordenado

a – Bispos, Presbíteros e Diáconos

19. O Novo Testamento não descreve uma forma única de ministério que deveria servir de paradigma ou de norma durável para todo o ministério futuro na Igreja. No Novo Testamento aparece antes uma variedade de formas que existiam em diferentes lugares e tempos. Enquanto o Espírito Santo continuava a conduzir a Igreja na sua vida, culto e missão, certos elementos desta variedade primitiva foram desenvolvidos, e em seguida fixados numa forma de ministério mais universal. Durante os séculos II e III, estabeleceu-se uma tripla forma do ministério ordenado através da Igreja, com bispo, presbítero e diácono. Nos séculos seguintes, os ministérios do bispo, do, presbítero e do diácono passaram por mudanças consideráveis no seu exercício prático. Em certos momentos de crise na história da Igreja, as funções duráveis do ministério foram estabelecidas, em determinados lugares e comunidades, segundo outras estruturas que não a tripla forma predominante. Por vezes recorreu-se ao Novo Testamento para justificar estas outras formas. Em outros casos, sustentou-se que à reestruturação do ministério pertencia à competência da Igreja, no seu esforço de adaptação à mudança das circunstâncias.

20. É importante prestar atenção às mudanças que o triplo ministério experimentou na história da Igreja. As indicações mais antigas sobre o triplo ministério fazem dele a forma do ministério ordenado na comunidade eucarística local. O bispo era o chefe da comunidade. Era ordenado e instalado para proclamar a Palavra e presidir à celebração da eucaristia. Era rodeado por um colégio de presbíteros e por diáconos que o assistiam nas suas tarefas. Neste contexto, o ministério do bispo era um foco de unidade na comunidade inteira.

21. Bem cedo, contudo, as funções modificaram-se. Os bispos começaram a exercer cada vez mais a episcopê sobre várias comunidades locais simultaneamente. Na primeira geração, os apóstolos tinham exercido a episcopê na Igreja no sentido mais lato. Posteriormente, constata-se que Timóteo e Tito desempenharam uma função de supervisão numa dada região.

Mais tarde ainda, esta tarefa apostólica é exercido de uma maneira nova pelos bispos. Constituem, então, o foco de unidade da vida e do testemunho nas regiões onde existem diversas comunidades eucarísticas. Como conseqüência, novos papéis são atribuídos aos presbíteros e aos diáconos. Os presbíteros convertem-se nos condutores de uma comunidade eucarística local e, na qualidade de assistentes dos bispos, os diáconos assumem responsabilidades numa região mais vasta.

COMENTÁRIO:

A Igreja, desde os seus começos, conheceu simultaneamente o ministério itinerante de missionários como Paulo e o ministério local de direção nos lugares onde o Evangelho era recebido. No plano local, as formas de organização parecem ter variado segundo as circunstâncias. Os Actos dos Apóstolos mencionam em relação a Jerusalém os Doze e os Sete, mais tarde Tiago e os anciãos; em relação a Antioquia, os profetas e os didáskaloi (Act. 6:1-6 [sic!?]; 15:13-21. 22-34 [sic!?]; 13:1). As cartas aos Coríntios falam de apóstolos, de profetas e de didáskaloi (1 Cor 12:28); igualmente a carta aos Romanos, que fala também de diáconos ou assistentes (Rom 16:1). Em Filipos, os termos seculares episkopoi e diakonoi aplicavam-se aos ministros cristãos (Filip. 1:1). Vários destes ministérios são atribuídos a mulheres e a homens.

Enquanto alguns eram designados pela imposição das mãos, não existe indicação deste procedimento em outros casos. Tenha sido qual tenha o seu nome, estes ministérios tinham por finalidade proclamar a Palavra de Deus, transmitir e salvaguardar o conteúdo original do Evangelho, alimentar e fortalecer a fé, a disciplina e o serviço das comunidades cristãs, proteger e estimular a unidade dentro de cada uma dessas comunidades e entre elas. Estas tarefas do ministério têm sido constantes através da evolução e das crises da história cristã.

22. Ainda que não haja, segundo o Novo Testamento, uma só forma do ministério, ainda que o Espírito tenha freqüentemente conduzido a Igreja a adaptar os seus ministérios às necessidades de um determinado contexto histórico, e ainda que outras formas do ministério ordenado tenham sido abençoadas pelos dons do Espírito Santo, o triplo ministério do bispo, do presbítero e do diácono pode servir hoje de expressão à unidade que procuramos e também de meio para lá chegar. Historicamente, é verdade que o triplo ministério se converteu na forma geralmente aceite na Igreja dos primeiros séculos, e que hoje ele é ainda conservado por muitas Igrejas. Para o cumprimento da sua missão e do seu serviço, as Igrejas têm necessidade de pessoas que, de diversos modos, exprimam e cumpram as tarefas do ministério ordenado na sua forma e função diaconal, presbiteral e episcopal.

23. A Igreja, como Corpo de Cristo e povo escatológico de Deus, é constituída pelo Espírito Santo através de uma diversidade de dons e de ministérios. Entre estes dons, o ministério da episkopê é necessário para exprimir e salvaguardar a unidade do Corpo. Cada Igreja precisa deste ministério de unidade, em uma certa forma, a fim de ser a Igreja de Deus, o único Corpo de Cristo, um sinal de unidade de todos no Reino.

24. A tripla forma do ministério necessita, evidentemente, de uma reforma. Em certas Igrejas, a dimensão colegial da presidência no interior da comunidade eucarística tem passado por um enfraquecimento. Em outras, a função dos diáconos tem sido reduzida a um papel de assistentes na celebração da liturgia: deixaram de cumprir qualquer função respeitante ao testemunho diaconal da Igreja. Em geral, a relação entre o presbiterato e o ministério episcopal tem sido discutida no decurso dos séculos, e o grau de participação do presbítero no ministério episcopal é ainda para muitos uma questão não resolvida e de grande importância ecumênica. Em certos casos, algumas Igrejas que não conservaram explicitamente a tripla forma do ministério, mantiveram de fato algumas das suas intenções originais.

25. A tripla forma tradicional do ministério suscita deste modo questões para todas as Igrejas. As que mantêm esta tripla forma deverão interrogar-se acerca do modo como poderão as suas potencialidades ser plenamente desenvolvidas para um testemunho mais eficaz da Igreja no mundo. As que não têm a tripla forma do ministério deveriam também participar nesta tarefa.

Em seguida, deverão interrogar-se se não haverá um apelo poderoso que lhes é dirigido para aceitarem a tripla forma do ministério assim desenvolvida.

b – Princípios orientadores para o exercício do ministério ordenado na Igreja.

26. Três considerações são importantes a este respeito. O ministério ordenado deveria ser exercido segundo um modo pessoal, colegial e comunitário. O ministério ordenado deve ser exercido segundo um modo pessoal. Uma pessoa ordenada para proclamar o Evangelho e chamar a comunidade a servir o Senhor na unidade da vida e do testemunho, manifesta com a maior efetividade a. presença de Cristo no meio do seu povo. O ministério ordenado deve ser exercido segundo um modo colegial, isto é, um colégio de ministros ordenados deve partilhar a tarefa de representar as preocupações da comunidade. Finalmente, a estreita relação entre o ministério ordenado e a comunidade encontrará a sua expressão numa dimensão comunitária, isto é, o exercício do ministério ordenado deve estar enraizado na vida da comunidade e requerer a sua participação efetiva na busca da vontade de Deus e da orientação do Espírito.

COMENTÁRIO:

É preciso manter conjuntamente os três aspectos. Em várias Igrejas, acontece um deles ser exageradamente desenvolvido em detrimento dos outros. Em certas Igrejas, a dimensão pessoal do ministério ordenado tende a atrofiar a dimensão colegial e a comunitária. Em outras Igrejas, as dimensões colegial e comunitária tomam um lugar tão importante que o ministério ordenado perde a sua dimensão pessoal. Cada Igreja deve interrogar-se no quê o exercício do ministério ordenado no seu seio tem sido obscurecido ao longo da história.

O reconhecimento destas três dimensões está subjacente a uma recomendação feita pela primeira conferência mundial de Fé e Constituição, em Lausana, em 1927 (relatório da Comissão V, atas, Paris, 1928, p. 531): “Na constituição da Igreja primitiva, encontram-se o cargo episcopal, os Conselhos de anciãos, e a Comunidade dos fiéis. Cada um destes três sistemas de organização eclesiástica (episcopalismo, presbiterianismo, congregacionalismo) foi aceite no passado durante séculos, e é ainda praticado hoje por importantes frações da cristandade. Cada um deles é considerado pelos seus defensores como essencial à boa ordem da Igreja. Conseqüentemente, pensamos que, sob certas condições a precisar, eles deverão ocupar simultaneamente o seu lugar respectivo na organização da Igreja reunida”.

27. O ministério ordenado deve ser organizado constitucionalmente ou canonicamente, e exercido de tal maneira na Igreja que cada uma dessas três dimensões possa encontrar uma expressão adequada. Ao nível da comunidade eucarística local, deverá haver um ministério ordenado cuja ação se desenrole colegialmente. Dever-se-ia acentuar enfaticamente a participação ativa de todos os membros na vida e nas decisões da comunidade. Ao nível de uma região, torna-se necessário também um ministério ordenado que exerça o serviço da unidade. A dimensão colegial bem como a comunitária encontrarão a sua expressão nas assembléias sinodais representativas e regulares.

c – Funções dos Bispos, dos Presbíteros e dos Diáconos

28. Quais são as funções dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos? Uma resposta uniforme a esta pergunta não é necessária para o reconhecimento mútuo do ministério ordenado. As considerações seguintes são, pois, apresentadas como exemplos.

29. Os bispos pregam a Palavra, presidem à celebração dos sacramentos, administram a disciplina de modo a serem os ministros pastorais e representativos da supervisão, da continuidade e da unidade da Igreja. Exercem a vigilância pastoral da região para onde foram chamados. São os servidores da apostolicidade e da unidade do ensino, do culto e da vida sacramental da Igreja. Têm a responsabilidade de direção na missão da Igreja.

Estabelecem a relação entre a comunidade cristã da sua área e a Igreja no sentido mais amplo, bem como entre a Igreja universal e a sua comunidade. Em comunhão com os presbíteros, os diáconos e toda a comunidade, são responsáveis pela transmissão regular da autoridade ministerial na Igreja.

30. Os presbíteros servem como ministros pastorais da Palavra e dos sacramentos numa comunidade eucarística local. São pregadores e mestres da fé, exercem a cura das almas e têm a responsabilidade da disciplina da comunidade, a fim de que o mundo creia e todos os membros da Igreja sejam renovados, fortalecidos e equipados para o ministério. Os presbíteros têm uma responsabilidade particular na preparação dos membros da Igreja para a vida cristã e o ministério.

31. Os diáconos representam no seio da Igreja a sua vocação de serva no mundo. Sustentando em nome de Cristo um combate no meio das inumeráveis necessidades da sociedade e das pessoas, os diáconos dão o exemplo da interdependência do culto e do serviço na vida da Igreja. Exercem uma responsabilidade no culto da comunidade. Por exemplo, fazem a leitura das Escrituras, pregam e conduzem os fiéis na oração… Participam no ensino da comunidade. Levam a cabo um ministério de caridade. Desempenham certas tarefas administrativas e podem ser eleitos para responsabilidades de governo.

COMENTÁRIO:

Hoje, em muitas Igrejas, há uma considerável incerteza a respeito da necessidade, do sentido, do estatuto e das funções dos diáconos. Em que sentido poderá o diaconato ser considerado como uma parte do ministério ordenado? O que é que o distingue de outros ministérios na Igreja (catequistas, músicos, etc.)? Por que devem os diáconos ser ordenados, enquanto esses outros ministérios não recebem ordenação? Ao serem ordenados são-no no sentido pleno da palavra, ou a sua ordenação não é senão a primeira etapa para uma ordenação como presbíteros? Hoje, há uma forte tendência em muitas Igrejas para a restauração do diaconato como ministério ordenado com dignidade própria e concebido para ser exercido permanentemente. Agora que se registra uma aproximação entre as Igrejas, poder-se-iam reunir neste ofício diaconal os ministérios que existem atualmente sob formas e nomes diversos.

As diferenças existentes na regulamentação do ministério diaconal não deveriam ser olhadas como impedimento para um reconhecimento mútuo dos ministérios ordenados.

d – Variedades dos Carismas

32. A comunidade que vive no poder do Espírito é caracterizada por uma variedade de carismas. O Espírito é o dispensador dos diversos dons que enriquecem a vida da comunidade. A fim de os tornar mais efetivos, a comunidade reconhece alguns destes dons publicamente. Certos destes ministérios desempenham serviços permanentes da vida da comunidade, enquanto outros serão temporários. Homens e mulheres, nas comunidades das ordens religiosas, cumprem um serviço que é de particular importância na vida da Igreja. O ministério ordenado, ele próprio um carisma, não deve tornar-se num impedimento à variedade dos carismas. Pelo contrário, deverá ajudar a comunidade a descobrir os dons derramados sobre ela pelo Espírito Santo, e terá que apetrechar os membros do Corpo para servir numa variedade de formas.

33. Na história da Igreja, tempos houve em que a verdade do Evangelho só pôde ser preservada graças a personalidades proféticas e carismáticas. Freqüentemente, novos impulsos só de modo inabitual conseguiram abrir caminho na vida da Igreja. Por vezes, certas reformas exigiram um ministério especial. Os ministros ordenados, bem como toda a comunidade, deverão estar atentos ao desafio lançado por tais ministérios especiais.

IV. A sucessão na Tradição Apostólica

a – A Tradição Apostólica na Igreja

34. No Credo, a Igreja confessa ser apostólica. A Igreja vive na continuidade dos apóstolos e da sua proclamação. É o mesmo o Senhor que enviou os apóstolos em missão e que continua a estar presente na Igreja. O Espírito guarda a Igreja na tradição apostólica até ao dia em que a história se cumprir no Reino de Deus. A tradição apostólica na Igreja implica a continuidade na permanência das características da Igreja dos apóstolos: testemunho da fé apostólica, proclamação e interpretação renovada do Evangelho, celebração do batismo e da eucaristia, transmissão das responsabilidades ministeriais, comunhão na oração, no amor, na alegria e no sofrimento, serviço junto dos doentes e necessitados, unidade das Igrejas locais e partilha dos bens que o Senhor deu a cada um.

COMENTÁRIO:

Os apóstolos, testemunhas da vida e da ressurreição de Cristo e enviados por ele, estão na origem da transmissão do Evangelho, da transmissão das palavras e os gestos salvadores de Jesus Cristo que constituem a vida da Igreja. Esta tradição apostólica prossegue através da história, e une a Igreja às sua origens em Cristo e no colégio dos apóstolos. No interior desta tradição apostólica, há uma sucessão apostólica do ministério, que está ao serviço da continuidade da Igreja, na sua vida em Cristo, e da sua fidelidade às palavras e aos gestos de Jesus, transmitidos pelos apóstolos. Os ministros instituídos pelos apóstolos, e posteriormente os “episkopoi” das Igrejas, foram os primeiros guardiões dessa transmissão da tradição apostólica; eles foram as testemunhas da sucessão apostólica do ministério que prosseguiu através dos bispos da Igreja antiga, em comunhão colegial com os presbíteros e os diáconos no seio da comunidade cristã. Convém, pois, distinguir tradição apostólica de toda a Igreja e sucessão do ministério apostólico.

b – A Sucessão do Ministério Apostólico

35. A primeira manifestação da sucessão apostólica encontra-se na tradição apostólica de toda a Igreja. A sucessão é uma expressão da permanência e, por isso, da continuidade da própria missão de Cristo na qual a Igreja participa. Na Igreja, o ministério ordenado tem uma tarefa particular de preservação e de atualização da fé apostólica. A transmissão regular do ministério ordenado é, deste modo, uma expressão poderosa da continuidade da Igreja através da história; ela sublinha igualmente a vocação do ministro ordenado como guardião da fé. Quando algumas Igrejas negligenciam a importância da transmissão regular do ministério ordenado, deverão interrogar-se se não terão que mudar a sua concepção da continuidade na tradição apostólica. Por outro lado, quando o ministério ordenado não serve devidamente a proclamação da fé apostólica, as Igrejas deverão perguntar-se se as suas estruturas ministeriais não terão necessidade de uma reforma.

36. Em virtude das circunstâncias históricas particulares da Igreja em processo de crescimento nos primeiros séculos, a sucessão dos bispos tornou-se um dos modos – juntamente com a transmissão do Evangelho e a vida da comunidade – segundo o qual se expressou a tradição apostólica da Igreja. Esta sucessão foi compreendida como serviço, símbolo e custódia da continuidade da fé e da comunhão apostólica.

COMENTÁRIO:

Na Igreja antiga, o vínculo entre o episcopado e a comunidade apostólica foi compreendido de dois modos. Clemente de Roma ligava a missão do bispo ao envio de Cristo pelo Pai e ao envio dos apóstolos por Cristo (Cor. 42:44 [sic?!: 1Clem 42 – 44]). Isto fazia do bispo um sucessor dos apóstolos, assegurando a permanência da missão apostólica na Igreja. Clemente considera antes de tudo o meio pelo qual a continuidade histórica da presença de Cristo é assegurada na Igreja: a sucessão apostólica. Para Inácio de Antioquia (Magn. 6:1; 3:1,2; Tral 3:1), é Cristo rodeado pelos Doze que está presente de maneira permanente na Igreja na pessoa do bispo rodeado pelos presbíteros. Inácio vê na comunidade cristã reunida em torno do bispo, este no meio dos presbíteros e dos diáconos, a manifestação atual no Espírito da comunidade apostólica. Assim, o sinal da sucessão apostólica não põe somente em evidência a continuidade histórica, mas manifesta também uma realidade espiritual atual.

37. As Igrejas que têm a sucessão pelo episcopado reconhecem cada vez mais que uma continuidade na fé apostólica, no culto e na missão foi conservada nas Igrejas que não conservaram a forma do episcopado histórico. Este reconhecimento vê-se facilitado também pelo fato de que a realidade e a função do ministério episcopal foram mantidas em muitas dessas Igrejas, com ou sem o título de bispo. A ordenação, por exemplo, é sempre efetuada por pessoas em quem a Igreja reconhece a autoridade de transmitir o mandato ministerial.

38. Estas considerações não diminuem a importância do ministério episcopal. Pelo contrário, ajudam as Igrejas que não conservaram o episcopado a considerar a sucessão episcopal como um sinal, ainda que não uma garantia, de continuidade e de unidade da Igreja. Há atualmente Igrejas, entre as comprometidas em negociações que visam a união, que expressam a sua vontade de aceitar a sucessão episcopal como um sinal de apostolicidade de toda a Igreja. Não estão dispostas, contudo, a aceitar a insinuação de que o ministério exercido na sua própria tradição teria sido inválido até ao momento da entrada na linha da sucessão episcopal. A sua aceitação da sucessão episcopal contribuirá, do modo mais positivo, para a unidade de toda a Igreja, se fizer parte de um processo mais amplo no qual as próprias Igrejas episcopais reencontrem igualmente a sua unidade perdida.

V. A ORDENAÇÃO

a – A significação da Ordenação

39. A Igreja ordena alguns dos seus membros ao ministério, no nome de Cristo, pela invocação do Espírito e imposição das mãos (1 Tim. 4:14; 2 Tim. 1:6); agindo assim, ela procura continuar a missão dos apóstolos e permanecer fiel ao seu ensino. O ato da ordenação realizado por quem tem o cargo deste ministério, atesta que a Igreja está ligada a Jesus Cristo e ao testemunho apostólico; recorda que o Senhor ressuscitado é o verdadeiro celebrante da ordenação e o outorgador do dom do ministério. Ao ordenar, a Igreja vela, sob a conduta do Espírito Santo, pela fiel proclamação do Evangelho e pelo serviço humilde no nome de Cristo. A imposição das mãos é o sinal do dom do Espírito, que torna visível o fato de o ministério ter sido instituído na revelação cumprida em Cristo, e lembra à Igreja a necessidade de olhar para ele como a fonte da sua missão. Esta ordenação pode, contudo, implicar diferentes intenções em relação com as tarefas específicas dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos, segundo o exarado nas liturgias de ordenação.

COMENTÁRIO:

É claro que as Igrejas têm diferentes práticas da ordenação, e que seria errado privilegiar uma delas como a exclusivamente válida. Por outro lado, se as Igrejas estão dispostas a reconhecerem-se mutuamente no sinal da sucessão apostólica, tal como foi descrito acima, dever-se-ia conseqüentemente reconhecer e observar a velha tradição segundo a qual é o bispo quem ordena, com a participação da comunidade.

40. Propriamente falando, a ordenação exprime uma ação cumprida por Deus e pela comunidade, na qual as pessoas ordenadas são fortalecidos pelo Espírito para o cumprimento da sua tarefa, e apoiadas pelo reconhecimento e pelas orações da comunidade.

COMENTÁRIO:

Os termos originais do Novo Testamento para designar a ordenação são simples e descritivos. Observa-se o fato de uma designação. A imposição das mãos é indicada. Há uma oração para implorar o dom do Espírito. As diversas tradições têm edificado diferentes interpretações sobre a base destes dados.

Existe, evidentemente, uma diferença entre as situações culturais subentendidas pela palavra grega cheirotonein e pelas palavras latinas ordo e ordinare. O emprego neotestamentário do primeiro termo está carregado da significação secular inicial de “designação” (Act 14:23: 2 Cor 8:19), que deriva, por sua vez, do sentido original de “estender a mão”, seja para designar uma pessoa, seja para exprimir um voto. Alguns especialistas no assunto vêem em cheirotonein uma referência ao ato de imposição das mãos, por causa da indicação literal desta ação em casos aparentemente paralelos como Act 6:6; 8:17; 13:13 [sic?!]; 19:6; 1 Tim 4:14; 2 Tim 1:6. Por outro lado, ordo e ordinare são termos derivados da lei romana e transmitem a idéia do estatuto especial de um grupo, distinto da plebe; é assim que, por exemplo, a expressão ordo clarissimus designava o senado romano. O ponto de partida de toda a construção conceptual que utiliza estes termos influenciará profundamente o que, no pensamento e na ação que daí derivam, é considerado como adquirido.

b – O ato da Ordenação

41. Uma longa e antiga tradição cristã situa a ordenação no contexto do culto e especialmente da eucaristia. Um tal lugar para a celebração da ordenação põe em evidência a sua significação como ato de toda a comunidade, e não como gesto de uma certa ordem existente no interior da comunidade ou como ação do indivíduo que é ordenado. O ato da ordenação pela imposição das mãos realizado por aqueles que possuem um tal ministério, é simultaneamente: invocação do Espírito Santo (epíclese), sinal sacramental, reconhecimento dos dons e compromisso.

42. (a) A ordenação é uma invocação dirigida a Deus, a fim de que o novo ministro receba o poder do Espírito Santo, na nova relação estabelecido entre esse ministro e a comunidade cristã local, esse ministro e a Igreja universal, segundo a intenção expressa. A alteridade da iniciativa divina, de que o ministério ordenado é sinal, é aqui reconhecida no próprio ato da ordenação. “O Espírito sopra onde quer” (João 3:3): a invocação do Espírito implica que a resposta à oração da Igreja depende de modo absoluto de Deus. Quer isso dizer que o Espírito pode pôr novas forças em movimento e abrir novas possibilidades “infinitamente além de tudo o que pedimos e pensamos” (Ef. 3:20).

43. (b) A ordenação é um sinal da resposta a essa oração pelo Senhor, que concede esse dom do ministério. Ainda que a resposta à epíclese da Igreja dependa da liberdade de Deus, a Igreja ordena convencido de que Deus, fiel às suas promessas em Cristo, entra sacramentalmente nas formas contingentes e históricas das relações humanas, e de que ele as utiliza para os seus fins. A ordenação é um sinal realizado com a fé de que a relação espiritual significada está presente em, com, e através das palavras expressas, dos gestos realizados e das formas utilizadas.

44. (c) A ordenação é o reconhecimento por parte da Igreja dos dons do Espírito naquele que é ordenado, e o compromisso simultâneo da Igreja e do que recebe a ordenação na sua nova relação. Ao receber o novo ministro, mediante o ato da ordenação, a comunidade reconhece os dons desse ministro e compromete-se a assumir a responsabilidade de uma atitude de abertura em relação a esses dons. Igualmente, aqueles que receberam a ordenação oferecem os seus dons à Igreja e comprometem-se a enfrentar as tarefas e as possibilidades emergentes da nova autoridade e responsabilidade assumidas. E, ao mesmo tempo, entram numa relação colegial com os outros ministros ordenados.

c – As condições para a Ordenação

45. Certos fiéis são chamados ao ministério ordenado segundo caminhos diferentes. Há a consciência pessoal de uma chamada do Senhor a consagrar-se ao ministério ordenado. Esta chamada pode ser discernida na oração pessoal e na reflexão, mas também através de sugestões, de exemplos, de encorajamentos, de influências provenientes da família, dos amigos, da paróquia, dos professores, e de outras autoridades da Igreja. Esta chamada deve ser autenticada pelo reconhecimento eclesial dos dons e das graças de uma pessoa, concedidos pela natureza e pelo Espírito, necessários ao ministério a cumprir. Deus pode servir-se para o ministério ordenado tanto de pessoas que vivem no celibato como de pessoas casadas.

46. As pessoas ordenadas podem ser ministros de tempo total no sentido de receberem o seu salário da Igreja. A Igreja pode também ordenar pessoas que continuem a desempenhar outros empregos ou ocupações.

47. Os candidatos ao ministério ordenado têm necessidade de uma preparação apropriada através do estudo da Escritura e da teologia, da prática da oração e da vida espiritual, familiarizando-se também com as realidades sociais e humanas do mundo contemporâneo. Em certos casos, esta preparação poderá assumir uma outra forma que não a dos estudos acadêmicos prolongados. O período da formação será altura para provar a vocação do candidato, estimulá-la e confirmá-la, ou modificá-la na sua concepção.

48. O compromisso inicial com o ministério ordenado deveria normalmente ser cumprido sem reserva ou limite de tempo. Contudo, uma dispensa em relação ao serviço não é incompatível com a ordenação. A reassunção de um ministério ordenado requer o acordo da Igreja, mas não uma reordenação. Tendo em conta o carisma do ministério dado por Deus, a ordenação a cada um dos ministérios ordenados particularmente nunca se repete.

49. A disciplina relativa às condições para a ordenação numa dada Igreja não deve ser necessariamente aplicável de modo universal, nem utilizada como motivo para não reconhecer os ministérios das outras Igrejas.

50. As Igrejas devem reexaminar as suas práticas – não se dê o caso, por exemplo, de recusarem a admissão de candidatos ao ministério ordenado por motivos de um handicap ou da sua pertença a uma raça ou a um grupo social particular. Um tal reexame é particularmente importante nos nossos dias, por causa das numerosas experiências de formas novas do ministério pelas quais as Igrejas se aproximam do mundo moderno.

VI. Para o reconhecimento mútuo dos Ministérios Ordenados

51. Com o fim de caminhar para o reconhecimento mútuo dos ministérios, é preciso realizar esforços concertados. Todas as Igrejas devem examinar as formas do ministério ordenado e o grau da sua fidelidade às intenções originais. As Igrejas devem estar preparadas para renovar a sua compreensão e a sua prática do ministério ordenado.

52. Entre os pontos que devem ser estudados enquanto as Igrejas avançam para o reconhecimento mútuo dos ministérios, o da sucessão apostólica é de uma importância particular. Algumas Igrejas, co-participantes nas conversações ecumênicas, poderão reconhecer mutuamente os seus ministérios ordenados se estiverem seguras de que a intenção de cada uma delas é transmitir o ministério da Palavra e dos sacramentos em continuidade com os tempos apostólicos. O ato da transmissão deveria ser realizado de acordo com a tradição apostólica, que inclui a invocação do Espírito e a imposição das mãos.

53. A fim de chegarem ao reconhecimento mútuo dos ministérios, as diversas Igrejas têm de percorrer diferentes etapas. Por exemplo:

  • (a) As Igrejas que conservaram a sucessão episcopal deverão reconhecer o conteúdo apostólico do ministério ordenado existente nas Igrejas que não conservaram essa sucessão, bem como a existência nestas Igrejas de um ministério da episkopê sob variadas formas.
  • (b) As Igrejas sem a sucessão episcopal, que vivem na continuidade fiel com a fé e a missão apostólica, têm um ministério da Palavra e dos sacramentos evidenciado na sua fé, prática e vida. Tais Igrejas devem dar-se conta de que a continuidade com a Igreja dos apóstolos encontra expressão profunda na sucessão da imposição das mãos pelos bispos, e de que, mesmo não estando elas privadas da continuidade na tradição apostólica, este sinal fortalecerá e aprofundará essa continuidade. Elas terão que redescobrir o sinal da sucessão episcopal.

54. Algumas Igrejas ordenam homens e mulheres, outras não ordenam senão homens. Estas diferenças criam obstáculos no que respeita ao reconhecimento mútuo dos ministérios. Mas estes obstáculos não devem ser considerados como impedimentos decisivos a outros esforços que tenham em vista o mútuo reconhecimento. A abertura recíproca comporta a possibilidade de o Espírito falar a uma Igreja através dos esclarecimentos de uma outra. As considerações ecumênicas deveriam, pois, animar e não refrear o esforço para encarar de frente este problema.

55. O reconhecimento mútuo das Igrejas e dos seus ministérios implica uma decisão da parte das autoridades e um ato litúrgico a partir do qual a unidade será manifestada publicamente. Têm-se proposto diversas formas deste ato público: mútua imposição das mãos, celebração eucarística, culto solene sem rito particular de reconhecimento, leitura de um texto de união no decurso de uma celebração. Nenhuma forma litúrgica é absolutamente requerido, mas seja em que caso for é necessário proclamar publicamente o cumprimento do reconhecimento mútuo. A celebração comum da eucaristia seria, sem dúvida, o lugar apropriado para tal ato.

Comissão «Fé e Constituição» do Conselho Mundial de Igrejas, 1982.

FONTE: Presbyterian Church of Portugal