Exortação sobre o rancor de um monge
Pacômio, nascido em 292 dC, provinha de família pagã e converteu-se ao Cristianismo quando contava com 20 anos de idade, seguindo educação ascética. Em 320, fundou seu primeiro mosteiro em Tabenesi, na Tebaída (Alto Egito), dando início ao monacato cenobita (comunitário), que perdura até os nossos dias. Morreu em 346, deixando como obras a Regra Monástica [com 194 artigos], diversas exortações a seus monges e 11 cartas a abades e irmãos religiosos.
Nesta página, apresentamos uma de suas exortações aos monges, tratando do perigo do rancor. Como é sabido, os primeiros monges se isolavam no deserto; com Pacômio, surgem as primeiras comunidades de monges, que se caracterizam pela partilha total dos bens, oração comum, observância à mesma Regra, trabalho manual e obediência absoluta ao abade.
Exortação pronunciada por nosso mui venerável santo padre Pacômio, o santo arquimandrita, em motivo de um irmão que guardava rancor contra outro. Em tempos do abade Ebonh, que havia levado aquele irmão a Tabennesi, [Pacômio] lhe dirigiu estas palavras na presença de outros padres anciãos, para sua grande alegria, na paz de Deus!
Desçam sobre nós suas santas bênçãos e as de todos os santos! Que todos possamos ser salvos! Amém.
Filho meu, escuta e seja sábio (Prov. 23,19), recebe a verdadeira doutrina. Existem, com efeito, dois caminhos.
Seja obediente a Deus como Abraão, que deixou sua terra, marchou ao exílio e viveu sob uma tenda com Isaac na terra prometida, como em terra estrangeira; obedeceu, humilhou-se a si mesmo, recebeu uma herança; inclusive foi posto à prova com respeito a Isaac: foi valente na prova e ofereceu a Isaac em sacrifício a Deus. Por isso Deus o chamou: “Meu amigo” (Tg. 2,23).
Receba aquele exemplo de bondade de Isaac, quando escutou a seu pai, e lhe esteve submetido até o sacrifício, como cordeiro inocente.
Receba assim mesmo o exemplo da humildade de Jacó, sua obediência, sua perseverança, até converter-se em luz que vê ao Pai do universo; foi chamado Israel.
Recebe aquele exemplo da sabedoria de José e sua submissão. Luta na castidade e nesse serviço até reinar.
Filho meu, imita a vida dos santos e pratica suas virtudes. Desperta, não sejas negligente, incita a teus concidadãos, dos quais te constituíste o garante (Prov. 6,3); levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará (Ef. 5,14), e a graça se infundirá dentro de ti.
A paciência, com efeito, te revela todas as graças. Os santos foram pacientes e conseguiram as promessas. O orgulho dos santos é a paciência. Sê paciente para sejas contado nas filas dos santos, confiando que receberás uma coroa incorruptível.
Um mau pensamento? Suporta-o com paciência, até que Deus te dê a calma. O jejum? Persevera com firmeza. A oração? Sem descanso, na tua habitação entre tu e eu. Um só coração com teu irmão; a virgindade em todos os membros, virgindade em teus pensamentos, pureza de corpo e pureza de coração; a cabeça inclinada e o coração humilde, bondade no momento da cólera.
Se um pensamento te oprime, não te desalentes; suporta-o com valor dizendo: “Todos me rodearam, porém eu, em nome do Senhor, os rechacei” (Sal 117,11). De improviso te chega o auxílio de Deus; os alijas de ti; Deus te protege e a glória divina caminha contigo, porque a coragem caminha com o que é humilde e tu serás saciado como o deseja tua alma (Is 58,11). Os caminhos de Deus são a humildade de coração e a bondade. Pois está escrito: “A quem cuidarei senão ao humilde e ao pacífico?” (Is 66,2). Se caminhas pelas sendas do Senhor, ele te custodiará, te dará força, te acumulará de ciência e de sabedoria, pensará em ti em todo tempo, te liberará do diabo e, em tua morte, te dará a graça em Sua paz.
Filho meu, te rogo: vigia, seja sóbrio, para conhecer aqueles que montam armadilhas contra ti. O espírito da maldade e da incredulidade teimam em caminhar juntos; o espírito da mentira e da fraude caminham juntos; o espírito da avareza, da cobiça e o do perjúrio, aquele da desonestidade e o da inveja caminham juntos; o espírito da vaidade e o da voracidade caminham juntos; o espírito da fornicação e o da impureza caminham juntos; o espírito da inimizade e o da tristeza caminham juntos. Desgraçada a pobre alma em que habitarem (estes vícios) e a dominarem! A essa alma, a apartam de Deus, porque ela está em seu poder, vai daqui para ali até que cai no abismo do inferno.
Filho meu, obedece-me: não sejas negligente, não concedas o sonho a teus olhos, nem repouso a tuas pálpebras, para que possas escapar das armadilhas como uma gazela (Prov. 6,4-5). Filho meu: muitas vezes, desde minha juventude, quando estava no deserto, todos os espíritos me molestavam, me afligiam a tal ponto que meu coração se deprimia, ao extremo de pensar que não podia resistir às ameaças do dragão. Me atormentavam de todas as formas. Se eu prosseguia, excitava contra mim a (seus espíritos) que me faziam a guerra; sem motivo me retirava, me afligia com sua insolência; muitas vezes meu coração se perturbou, ia de um lado a outro e não encontrava quietude. Sim, em troca, fugia para perto de Deus derramando grimas com humildade, com jejuns e noites de vigílias; então o adversário e todos seus espíritos caíam impotentes frente a mim; o ardor divino vinha a mim e de repente reconhecia o auxilio de Deus, porque em sua clemência dá a conhecer aos filhos dos homens sua força e sua bondade.
Filho meu: não condenes a nenhum homem; se vês que algum é elogiado, não digas: “Este já recebeu sua recompensa”. Cuida-te deste pensamento pois é muito malvado. Deus não ama a quem louva a si mesmo e odeia a seu irmão. Pois quem diz a si mesmo: “Eu sou”, quando nada é, se engana a si mesmo (Gál. 6,3). Quem poderá ajudá-lo se é orgulhoso, se apresenta do mesmo modo em que se apresenta a Deus dizendo: “Nada é como eu” (Ex. 9,14)? Ouvirás em seguida tua própria reprovação: descerás aos infernos, serás arrojado com os mortos; debaixo de ti estará a podridão e te cobrirão os vermes (Is. 14,11.15.19). Enquanto ao homem que adquiriu a humildade, se julga só a si mesmo, dizendo: “Meus pecados sobrepassam os dos demais”, não julga a nada, não condena a nada. Quem és tu para julgar a um servo que não é teu? Ao que está caído, com efeito, seu Senhor tem o poder de fazê-lo levantar (Rom. 14,4). Vigia sobre ti mesmo, filho meu, não condenes a nenhum homem, gosta de todas as virtudes e custodia-as.
Se és estrangeiro, permanece a parte, não busques refúgio próximo de alguém e não te mescles em seus assuntos. Se és pobre, não te desanimes por nenhuma coisa, para que não te seja dirigido a reprovação: “A pobreza é má na boca do ímpio” (Se. 13,24-30). Nem deves ouvir que se te diz: “Se padecem de fome se entristecerão e amaldiçoarão ao chefe e aos anciãos” (Is 8,21). Cuida para que não te façam a guerra porque te falta qualquer coisa a respeito das necessidades do corpo, com motivo da comida. Não te desanimes, sê paciente.
Certamente Deus trabalha no segredo. Pensa em Habacuc na Judéia e Daniel na Caldéia. A distância que os separava era de quarenta e cinco estádios; e ademais Daniel, entregue como alimento às feras, estava no fundo da fôsso, e contudo (o profeta) o proveu com comida. Pensa em Elias no deserto e na viúva de Sarepta; esta estava oprimida pelo flagelo da carestia e o tormento da fome, e em tal indigência não foi pusilânime; lutou, venceu e obteve o que Deus lhe havia prometido; sua casa desfrutou de abundância em tempo de carestia. Não é certamente prodigalidade dar pão em tempo de abundância e não é pobreza estar desalentado na indigência. Está escrito, com efeito, sobre os santos: “Estavam necessitados, atribulados e afligidos” (Heb. 11,37), porém, se davam gloria em suas atribulações. Se és perseverante na luta segundo as Escrituras, não sofrerás nenhuma escravidão, como está escrito: “Que nada os engane em questão de comida e de bebida ou a respeito das festas, novilúnios ou sábados. Estas coisas são as sombras daquelas futuras” (Col. 2,16-17).
Medita em todo momento as palavras de Deus, persevera na fadiga, da graças em todas as coisas, fuja dos aplausos dos homens, ama a quem te corrige no temor de Deus. Que todos te sejam de proveito, para que tu sejas de proveito a todos. Persevera em tua obra e em palavras de bondade. Não dês um passo adiante e outro atrás, a fim de que Deus não deixe de amar-te. A coroa, com efeito, será para quem haja perseverado. Obedece sempre mais a Deus, e ele te salvará.
Quando te encontres no meio de teus irmãos não provoques a brincadeira. Sadrac, Mesac e Abed-Negó rechaçaram as diversões de Nabucodonosor; por isso este não pôde convencê-los com as melodias de seus instrumentos, nem enganá-los com as comidas de sua mesa. E assim eles sufocaram aquela chama que se elevava a uma altura de quarenta e nove cotovelos; não foram dissolutos com quem era dissoluto, e sim foram retos com quem era reto, quer dizer, com Deus. Por isso Deus os constituiu senhores de seus inimigos. Também Daniel, por sua parte, não obedeceu ao malvado pensamento dos Caldeus, por isso se converteu em um grande eleito e foi considerado vigilante e sábio, e fechou as bocas dos leões selvagens (Heb. 11,33).
Agora, filho meu, se pões a Deus como tua esperança, Ele será teu auxílio na hora da angústia. Quem se acerca a Deus deve crer que Ele existe e que recompensa aqueles que o buscam (Heb. 11,6). Estas palavras foram escritas para nós, para que creiamos em Deus, para que jovens e anciãos, lutemos com jejuns, orações e outras obras religiosas. Nem sequer a saliva que se seca em tua boca durante o jejum, esquecerá de Deus, e certamente encontrarás tudo isto na hora da angústia. Humilha-te em tudo, controla-te no falar, inclusive se compreendeste todas as coisas; não te acostumes a insultar, e sim suporta com alegria toda prova. Se conhecerás a honra que resulta das provas não rezarias para ser livrado, porque é bom para ti orar, chorar, suspirar, até ser salvo, antes de relaxar teu coração e cair prisioneiro. Ó homem, que fazes em Babilônia? Envelheceste em terra estrangeira (Bar. 3,10), porque não te submeteste à prova e não trabalhas com retidão adiante de Deus. Por isto, irmão, não relaxes teu coração.
Talvez, sejas um pouco negligente, porém teus inimigos não costumam dormir, nem são negligentes em colocarem armadilhas noite e dia. Por isso não busques coisas grandes para não serdes humilhado e alegrar assim a teus inimigos. Busca a humildade, porque quem se gaba será humilhado e quem se humilha será exaltado (Mat. 23,12; Luc. 18,14). E se não estás em condições de bastar-te a ti mesmo, uni-te a outro que trabalhe segundo o evangelho de Cristo e avançarás com ele. Escuta o bem, submete-te a quem escuta; sede forte, para serdes chamado Elias; o bem obedece a quem é forte, a fim de ser chamado Eliseu, que por haver obedecido a Elias recebeu dupla parte de seu espírito.
Se queres viver em meio dos homens, imita a Abraão, Lot, Moisés e Samuel. Se desejas viver no deserto, eis aqui todos os profetas que te precederam. Imita àqueles que vagaram pelo deserto, pelos vales e as cavernas da terra (Heb. ll,38.37), pobres, atribulados e afligidos. Está escrito também: “A sombra de quem está sedento e o Espírito dos homens que suportaram a violência te abençoarão” (Is. 25,4). Ademais, o ladrão sobre a cruz proferiu uma palavra, o Senhor perdoou seus pecados e o recebeu no paraíso. Então, que grande honra receberás se és paciente na prova, ou diante do espírito de fornicação, ou diante do espírito de orgulho, ou bem frente a qualquer outra paixão! Tu lutas contra as paixões diabólicas, não para segui-las, e Jesus te dará o que te há prometido. Cuida-te da negligência, porque ela é a mãe de todos os vícios.
Filho meu, fuja da concupiscência, porque escurece a mente e não permite conhecer o mistério de Deus. Seja estranho à linguagem do espírito: te impede levar a cruz de Cristo, e não deixa que teu coração esteja sóbrio para louvar a Deus. Cuida-te dos apetites do ventre, que te fazem alheio aos bens do paraíso. Cuida-te da impureza: ela provoca a ira de Deus e de seus anjos.
Filho meu, volta-te até Deus e ama-o; fuja do inimigo, e odeia-o; assim as bênçãos de Deus descerão sobre ti, e poderás herdar a benção de Judá, filho de Jacó. Está escrito, com efeito: “Judá, teus irmãos te abençoarão, tuas mãos estarão sobre a espada de teus inimigos, e os filhos de teu pai te servirão” (Gen. 49,8). Cuida-te do orgulho, porque é o princípio de todo o mal. O começo do orgulho é afastar-se de Deus e o que lhe segue é o endurecimento do coração. Se te cuidas disto, teu lugar de repouso será a Jerusalém celestial. Se o Senhor te ama e te dá glória, cuida-te de exaltar teu coração; antes bem, persevera na humildade e habitarás na glória que Deus te deu. Vigia sobre ti, porque “ditoso quem seja encontrado velando; será constituído sobre os bens de seu Senhor” (Mat. 24,46-47), e entrará cheio de alegria no Reino. Os amigos do esposo o amaram porque o encontraram cuidando da vinha.
Filho meu, seja misericordioso em todas as coisas, porque está escrito: “Esforça-te por apresentar-te diante de Deus como um homem provado, um trabalhador irrepreensível” (2Tim. 2,15). Volta-te até Deus como o que semeia e colhe, e armazenarás em teu silo os bens de Deus. Não ores ostensivamente como aqueles hipócritas, e sim renuncia a teus desejos, trabalha para Deus obrando assim por tua própria salvação. Se te fere uma paixão: amor pelo dinheiro, inveja, ódio e outras paixões, vela sobre ti, tenha um coração de leão, um coração valente, combate as paixões, destrua-as como a Sijón, Hog e todos os reis dos Amorreus. O Filho amado, o Unigênito, o rei Jesus, combate por ti para que possas herdar as cidades inimigas. Rechaça todo orgulho longe de ti e seja valente. Olha: quando Jesus, o filho de Navé, foi valoroso, Deus lhe entregou em suas mãos os seus inimigos. Se és pusilânime, te fazes estranho a lei de Deus; a pusilanimidade te abarrota de pretextos para ceder à preguiça, à incredulidade e à negligência, até que pereças. Tenha um coração de leão, grita também tu: “Quem nos separará do amor de Deus?” (Rom. 8,35), e: “Ainda que meu homem exterior se desmorone, o interior se renova dia a dia” (2Cor 4,16).
Se habitas no deserto, luta com orações, jejuns e mortificacões. Se vives em meio dos homens, seja prudente como as serpentes e singelo como as pombas (Mat. 10,16). Se alguém te maldiz, suporta-o de bom ânimo, espera em Deus que realizará o que é bom para ti. Tu não maldigas à imagem de Deus, pois Deus te disse: “A quem me glorifique, eu o glorificarei, a quem me maldizer eu o maldirei” (1Sam. 2,30). E se te louvam, não te alegres, porque está escrito: “Pobres de vocês se todos os homens os louvam” (Luc. 6,26). Também foi dito: “Ditosos vocês quando os insultem, os persigam, e rechacem seu nome como maldito” (Luc. 6,22). Do mesmo modo, nossos padres Barnabé e Paulo, depois de serem louvados, rasgaram suas vestes e se entristeceram, porque aborreciam a glória dos homens. Também Pedro e João, depois de haver sofrido ultrajes no Senádrio, saíram plenos de alegria porque haviam merecido ser ultrajados pelo santo nome do Senhor. Tinham sua esperança na glória dos céus.
Porém tu, filho meu, foge das comodidades deste mundo, para estardes na alegria do mundo futuro; não sejas negligente desejando passar dia após dia, não seja que te venham a buscar antes de que tu o advirtas e conheças a angústia; e os servidores do anjo da morte te rodeiem, te raptem cruelmente e te levem a suas moradas de trevas, plenas de terror e angústia. Não te aflijas quando fores ultrajado pelos homens, e sim aflija-te e suspira quando pecardes – este é o verdadeiro ultraje – e quando sejas persuadido por teus pecados.
Te rogo insistentemente a odiar a vaidade. A vaidade é a arma do diabo. Deste modo foi enganada Eva. (O diabo) lhe disse: “Comam do fruto da árvore, se abrirão teus olhos e serão como deuses” (Gen. 3,5). Ela escutou pensando que era verdade, buscou ter a glória da divindade e lhe foi tirada inclusive aquela glória humana. Ou mesmo tu, se segues a vaidade, ela te fará alheio à glória divina. Porém, para Eva não havia nada escrito a fim de adverti-la sobre esta guerra, antes que o diabo a tentasse; para isto vem o Verbo de Deus e tomou carne da Virgem Maria: para liberar a estirpe de Eva. Tu, em troca, em respeito a a esta guerra, te instruíste nas Santas Escrituras, pelos santos que te precederam. Por isso, irmão meu, não digas: “Não havia ouvido falar, não me haviam informado nem ontem nem antes de ontem”, pois está escrito, com efeito: “O clamor de sua voz se difundiu por toda a terra, suas palavras chegaram até os confins do mundo” (Sal. 18,15; Rom. 10,18). Agora, pois, se és louvado, refreia teu coração e dá gloria a Deus. E se, em troca, te insultam, dá glória a Deus e agradece-lhe de ser digno da sorte de seu Filho e de seus santos. Se clamaram “impostor” a teu Senhor, “loucos” aos profetas, “tontos” a outros, quanto mais nós, (que somos) terra e cinza, não devemos entristecer quando somos caluniados. Este é o caminho para que tenhas vida. Se, em troca, és tu negligência a que te precipita, então chora e geme. Com efeito: “Aqueles que se criavam entre púrpura, agora estão cobertos de sujeira” (Lam. 4,5), porque descuidaram da lei de Deus e seguiram seus caprichos. Agora, filho meu, chora diante de Deus em todo tempo, porque esta escrito: “Ditoso o que elegeste e tomaste contigo!” (Sal. 64,5). “Puseste teu coração e teus pensamentos no vale do pranto, lugar que tu preparaste” (Sal 83,6-7).
Adquire a inocência, seja como essas ovelhas inocentes, que se lhes tosquiam a lã e não dizem nenhuma palavra. Não vás de um lugar a outro dizendo: “Aqui ou lá encontrarei a Deus”. Deus disse: “Eu sou pleno no céu, Eu sou pleno na terra” (Jer. 23,24). E de novo: “Se passardes através da água, Eu estarei contigo” (Is. 43,2). E: “Os rios não te submergirão” (Is. 43,2). Deves saber, filho meu, que Deus vive dentro de ti, para que permaneças em sua lei e em seus mandamentos. O ladrão estava na cruz e entrou no paraíso. Judas, ao contrário, era um dos apóstolos e traiu ao seu Senhor. Rajab nascia na prostituição e foi contada entre os santos; Eva, em troca, no paraíso foi enganada. Jó sobre a sujeira foi comparado a seu Senhor; Adão no paraíso se desviou do preceito. Os anjos estavam no céu e foram precipitados ao abismo; Elias e Henoc foram conduzidos ao reino dos céus. Em todo lugar, portanto, busquem a Deus, busquem em todo tempo sua força (1Cron. 16,11; Sal. 104,4). Buscai-o como Abraão que obedeceu a Deus, ofereceu em sacrifício seu filho e por isto foi chamado “meu amigo”. Buscai-o como José, que lutou contra a impureza até reinar sobre seus inimigos. Buscai-o como Moisés, que seguiu a seu Senhor; ele o constituiu legislador e lhe fez conhecer sua imagem. Buscou Daniel e (Deus) lhe deu a conhecer grandes mistérios e o salvou das bocas dos leões. O buscaram os três santos e o encontraram no forno ardente. Jó se refugiou nele, e ele lhe curou suas feridas. O buscou Susana, e (Deus) a salvou das mãos dos ímpios. O buscou Judite, e o encontrou no toldo de Holofernes. Todos estes o buscaram, e ele os salvou, e também salvou aos outros.
E quanto a ti, filho meu, até quando serás negligente? Qual é o limite de tua negligência? Este ano é como o ano passado e hoje é como ontem. Enquanto sejas negligente, não fará nenhum progresso para ti. Seja sóbrio, eleva teu coração. Deverás comparecer diante do tribunal de Deus e render contas do que tenhas feito no segredo e do que fizeste publicamente. Se vais a um lugar onde se combate a guerra, a guerra de Deus, e se o Espírito de Deus te exorta: “Não adormeças neste lugar, porque existem insídias”, e o diabo por sua parte te sussurra: “Qualquer coisa que te suceda, é a primeira vez, ou se vistes isto ou aquilo, não te aflijas”; não escutes seus astutos discursos. Não seja que o Espírito de Deus se retire de ti e te desanime, que perdas a força como Sansão, que os estrangeiros te atem com cadeias e te levem à roda de moer, quer dizer, ao ranger de dentes, e te convertas para eles em um objeto irrisório, é dizer que se enganem de ti e que já não conheças mais o caminho até tua cidade, porque te tiraram os olhos por haver aberto teu coração a Dalila, é dizer ao diabo que te capturou com o engano, porque não escutaste os conselhos do Espírito. Visto também o que lhe sucedeu a um homem valente como David; felizmente em seguida se arrependeu a respeito da mulher de Urias. Está escrito assim mesmo: “Viram minha ferida, temam” (Jó 6,21).
É aqui que aprendeste que Deus não lhes poupou (provas) aos santos. Vigia, então, sabes as promessas que fizestes, fuja da arrogância, arranca de ti mesmo ao diabo para que ele não te arranque os olhos da tua inteligência e te deixe cego, de modo que não conheças mais o caminho da cidade, o lugar onde vives. Reconhece de novo a cidade de Cristo, dá-lhe glória porque morreu por ti.
Por que quando um irmão te fere com uma palavra, te enojas, te comportas como uma hera? Acaso não recordas que Cristo morreu por ti? E quando teu inimigo, isto é o diabo, te sussurra alguma coisa, inclinas teu ouvido até ele para que te derrame sua maldade, lhe abres teu coração e absorves o veneno que te deu. Desditado! Este é o momento de transformar-te em uma fera ou ser como o fogo, para queimar toda sua maldade! Devias ter náuseas e vomitar a fédida iniquidade; que o veneno não penetre dentro de ti e pereças! Ó homem, não suportaste uma pequena palavra dita por teu irmão. Porém, quando o inimigo busca devorar tua alma, então, que fizeste? Com ele tiveste paciência?
Não, querido meu, não se deverá lamentar tua situação, posto que em vez de um ornamento de ouro sobre a cabeça, se te raspará a cabeça a causa de tuas obras (Is. 3,24). Vigia mais bem sobre ti, suporta alegremente a quem te despreza, seja misericordioso com teu irmão, não temas os sofrimentos do corpo.
Filho meu, presta atenção às palavras do sábio Paulo quando disse: “Me esperam cadeias e tribulações em Jerusalém, porém não justifico minha alma com nenhuma palavra sobre o modo de acabar minha carreira” (At. 20,23-24); e: “Estou disposto a morrer em Jerusalém por ele, em nome do meu Senhor Jesus Cristo” (At 21,13). Nem o sofrimento, com efeito, nem a prova, impedirão aos santos alcançar ao Senhor. Tem confiança! Sê valente! Acaba com a covardia diabólica! Corre melhor depois da coragem dos santos. Filho meu, por que foges de Adonai, o Senhor Sabaoth, e recais na escravidão dos Caldeus? Por que dás de comer a teu coração em companhia dos demônios?
Filho meu, cuida-te da fornicação, não corrompas os membros de Cristo. Não obedeças aos demônios. Não faças dos membros de Cristo, membros de uma prostituta (1Cor. 6,15). Pensa na angústia do castigo, põe diante de ti o juízo de Deus, foge de toda concupiscência, despoja-te do homem velho e de suas obras e reveste-te do homem novo (cf. Col. 3,9). Pensa na angústia (que experimentarás) no momento de sair deste corpo.
Filho meu, refugia-te aos pés de Deus! É ele quem te criou e por ti padeceu estes sofrimentos. Disse, com efeito: “Ofereci minhas costas aos que me feriam e minhas faces aos que me golpeavam, não retirei minha cara à ignomínia dos que me cuspiam” (Is. 50,6). “Ó homem, de que te serve fazer o caminho até o Egito para beber a água de Geón, que está contaminada?” (Jer. 2,18). Em que te beneficiam estes pensamentos turbulentos, até o extremo de sofrer tais penas? Converta-te, melhor, e chora sobre teus pecados. Está escrito, com efeito: “Se fazem uma oferta por seus pecados, suas almas terão uma descendência que viverá por muito tempo” (Is. 53,10).
Ó homem, tens visto que a transgressão é uma coisa má, e quanto sofrimento e angústia engendra o pecado. Pronto, foge, ó homem, do pecado, pensa em seguida na morte. Está escrito: “O homem sensato trata duramente o pecado” (Prov. 29,8), e: “O rosto dos ascetas resplandecerá como o sol” (Mat. 13,43; Dan. 12,3). Ajusta-te também de Moisés: “Preferiu sofrer com o povo de Deus, antes que gozar das delícias momentâneas do pecado” (Heb. 11,25). Se amas o sofrimento dos santos, eles serão teus amigos e intercessores diante de Deus e ele te concederá todas tuas justas petições, pois levaste tua cruz e seguiste ao teu Senhor.
Não busques um posto de honra entre os homens, para que Deus te proteja contra as tempestades que tu não conheces e te estabeleça em sua cidade, a Jerusalém celestial. “Examina tudo e permaneça com o que é bom” (1Tes. 5,21). Não sejas altaneiro frente à imagem de Deus. Vigia sobre tua juventude, para velar sobre tua velhice. Que não devas experimentar vergonha ou reprovações no vale de Josafá, ali onde todas as criaturas de Deus te verão e te repreenderão, dizendo: “Sempre havíamos pensado que eras uma ovelha e aqui, em troca, constatamos que és um lobo! Vês agora ao abismo do inferno, arroja-te no seio da terra” (Is. 14,15). Que grande vergonha! No mundo eras louvado como um eleito, porém quando chegaste ao vale de Josafá, ao lugar do juízo, te viram desnudo, e todos contemplaram teus pecados e tua imundície expostos diante de Deus e dos homens. Pobre de ti naquela hora! Para onde voltarás teu rosto? Abrirás acaso tua boca? Que dirás? Teus pecados estão impressos sobre tua alma negra como um silício. Que farás então? Chorarás? Tuas lágrimas não serão recebidas. Suplicarás? Tuas súplicas não serão recebidas, porque não tem piedade aqueles aos quais te entregaram. Pobre de ti naquela hora, quando ouvir a voz severa e terrível: “Os pecadores, vão ao inferno” (Sal. 9,18), e também: “Apartem-se de mim malditos, ao fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos” (Mat. 25,41). E também: “Aos que cometeram transgressões eu os detestei” (Sal. 100,3). “Apagarei da cidade do Senhor a todos aqueles que fazem o mal” (Sal. 100,8).
Filho meu, usa deste mundo com circunspecção, avança considerando-te nada, segue ao Senhor em todas as coisas para estar seguro no vale de Josafá. Que o mundo te olhe como a um daqueles que foram depreciados; a fim de que no dia do juízo, em troca, tu sejas encontrado revestido de glória! E não confies a nada teu coração no que tocar ao descanso de tua alma, e sim confia todos teus desejos ao rei e ele te sustentará (Sal. 54,23). Veja a Elias, confiou no Senhor na torrente de Querit e foi alimentado por um corvo.
Cuida-te atentamente da fornicação. Esta feriu e fez cair a muitos. Não te faças amigo de um jovem. Não corras atrás das mulheres. Fuja da complacência do corpo, porque as amizades inflamam como chamas. Não corras atrás de nenhuma carne, porque se a pedra cai sobre o ferro, a chama se inflama e consome todas as substâncias. Refugia-te sempre no Senhor, senta-te à sua sombra, porque “quem vive sob a proteção do Altíssimo, habitará à sombra de Deus do céu” (Sal. 90,1), e “não vacilará nunca” (Sal. 124,1). Adere ao Senhor e que suba ao teu coração o pensamento da Jerusalém celestial; estarás sob a bênção do céu e a glória de Deus te custodiará.
Vigia com toda solicitude teu corpo e teu coração. “Busca a paz e a pureza” (Heb. 12,14), que estão unidas entre si, e verás a Deus. Não tenhas disputas com nada, porque quem está em alguma disputa com seu irmão, é inimigo de Deus e quem está em paz com seu irmão está em paz com Deus. Não aprendeste agora que nada é maior que a paz que conduz ao amor mútuo? Inclusive, se estás livre de todo pecado, porem és inimigo de teu irmão, te fazes estranho a Deus; está escrito, com efeito: “Busquem a paz e a pureza” (Heb. 12,14), porque estão unidas entre si. Está escrito assim mesmo: “Ainda que tivesse toda a fé como para mover montanhas, se não tenho a caridade do coração, de nada me serviria” (1Cor. 13,2-3). A caridade edifica (cf. 1Cor 8,1). “Que coisa poderia ser purificada da impureza?” (Eclo. 34,4). Se sentes em teu coração ódio ou inimizade, onde está tua pureza? O Senhor disse por Jeremias: “Diriges a teu próximo palavras de paz, porém há inimizade em teu coração; falas amavelmente a teu próximo, porém há inimizade em teu coração ou alimentas pensamentos de inimizade. Contra isto não deverei encolerizar-me? – diz o Senhor. De um pagão como este minha alma não deverá vingar-se?” (Jer. 9,5-9). É como se dissesse: “O que é inimigo de seu irmão, esse é um pagão, porque os pagãos caminham nas trevas, sem conhecer a luz”. Assim, quem odeia a seu irmão caminha nas trevas e não conhece a Deus. O ódio e a inimizade, com efeito, cegaram seus olhos e não vê a imagem de Deus.
O Senhor nos mandou amar a nossos inimigos, abençoar aos que nos maldizem e fazer o bem aos que nos perseguem. Em que perigo nos encontramos então, se nos odiamos uns aos outros, (se odiamos) a nossos membros-irmãos unidos a nós, os filhos de Deus, renovados da verdadeira vida, ovelhas do rebanho espiritual reunidas pelo verdadeiro pastor, o Unigênito de Deus, que se ofereceu em sacrifício por todos nós! Por esta obra grandiosa o Verbo vivente padeceu esses sofrimentos. E tu, ó homem, a odeias por inveja e vaidade, por avareza ou por arrogância? Assim, o inimigo te desencaminhou para fazer-te estranho a Deus. Que defesa apresentarás diante de Cristo? Ele te dirá: “Odiando a teu irmão, odeias a mim”. Irás, pois, ao castigo eterno, porque alimentaste a inimizade até teu irmão; em troca, teu irmão entrará na vida eterna, porque se humilhou diante de ti por causa de Jesus.
Busquemos então os remédios para este mal antes de morrer. Queridíssimos, dirijamo-nos ao evangelho da verdadeira lei de Deus, o Cristo, e o ouviremos dizer: “Não condenem para não ser condenados, perdoem e serão perdoados (Luc. 6,37). Se não perdoas, tampouco serás perdoado. Se estás em guerra com teu irmão, prepara-te para o castigo por tuas culpas, tuas transgressões, tuas fornicações realizadas ocultamente, tuas mentiras, tuas palavras obscenas, teus maus pensamentos, tua avareza, tuas más ações que renderás conta ao tribunal de Cristo, quando todas as criaturas de Deus te contemplarão e todos os anjos do exército angélico estarão presentes com suas espadas desembainhadas, obrigando-te a justificar-te e a confessar teus pecados; e teus vestidos estarão todos manchados e tua boca permanecerá cerrada; estarás aterrado sem ter nada que dizer! Desventurado, de quantas coisas deverás render contas? Impurezas inumeráveis, que são como um câncer para tua alma, desejos dos olhos, maus pensamentos que entristecem ao Espírito e afligem a alma, palavras inconvenientes, língua fanfarrona que mancha todo o corpo, brincadeiras, más diversões, maledicências, ciúmes, ódios, burlas, ofensas contra a imagem de Deus, condenações, desejos do ventre que te excluíram dos bens do paraíso, paixões, blasfêmias que são vergonhosas de mencionar, maus pensamentos contra a imagem de Deus, cólera, disputas, obscenidades, arrogância dos olhos, desejos perversos, falta de respeito, vaidades. Sobretudo isto serás interrogado, porque lutaste com teu irmão e não resolveste o pleito, como deverias, no amor de Deus. Nunca ouviste dizer que “a caridade cobre uma multidão de pecados” (1Prov. 4,8)? “E seu Pai que está nos céus fará com você ou mesmo se não se perdoam mutuamente em seus corações” (Mat. 18,35). Seu Pai que está nos céus não lhes perdoará seus pecados.
Eis aqui, queridos meus, que vós sabeis que estamos revestidos de Cristo, bom e amigo dos homens. Não nos despojemos de Cristo por causa de nossas más obras. Temos prometido a pureza a Deus, temos prometido a vida monástica, cumpramos as obras que são: jejum, oração incessante, a pureza de corpo e a pureza de coração. Se temos prometido a Deus a pureza, não nos ocorra que sejamos surpreendidos na fornicação, a qual assume formas variadas. Se há dito, com efeito: “Se prostituíram de múltiplas formas” (Ez 16,25). Meus irmãos, que não nos surpreendam em obras deste gênero, que não nos encontrem inferiores a todos os homens!
Temos prometido a nós mesmos ser discípulos de Cristo; mortifiquemo-nos, porque a mortificação maltrata a impureza. Esta é a hora da luta. Não nos retiremos, pelo temor de suceder escravos do pecado. Temos sido constituídos luz do mundo; que nada se escandalize por causa nossa. Revistamo-nos de silêncio, pois muitos, com efeito, lhe devem sua salvação.
Velem sobre vós mesmos, irmãos! Não sejamos exigentes entre nós, por temor a que o sejam conosco na hora do castigo. A nós, virgens, monges, anacoretas, certamente se nos dirá: “Dá-me o meu com os interesses”. Nos increparão e nos dirão: “Onde está o vestido de bodas? Onde está a luz das lâmpadas? Se és meu filho, onde está minha glória? Se és meu servo, onde está o temor a mim? (Mal. 1,6). Se me odiaste neste mundo, agora aparta-te de mim porque não te conheço (Mat. 7,23). Se odiaste a teu irmão, te fizeste estranho a meu reino. Se estiveste em lutas com teu irmão e não o perdoaste, te ataram as mãos atrás das costas, te ataram os pés e te arrojaram às trevas exteriores, onde haverá prantos e ranger de dentes (Mat. 22,13). Se golpeaste a teu irmão, serás entregue aos anjos sem piedade e serás fustigado com o flagelo das chamas eternamente. Não tivestes respeito por minha imagem, me insultando, me despreciastes e desonrastes, por isso eu não terei respeito por ti na aflição de tua angústia. Não fizestes as pazes com teu irmão neste mundo, eu não estarei contigo no dia do grande juízo. Insultastes o pobre; é a mim a quem insultastes. Golpeastes ao desgraçado; assim te fizeste cúmplice de quem me golpeou em minha humilhação sobre a cruz. Acaso te deixei faltar alguma coisa desde minha saída do mundo? Não te fiz o dom de meu corpo e de meu sangue como alimento da vida? Não padeci a morte por tua causa, a fim de salvar-te? Não te manifestei o mistério celestial, para fazer de ti meu irmão e meu amigo? Não te dei o poder de pisar serpentes e escorpiões e todo poder sobre o inimigo (Luc. 10,19)? Não te dei múltiplos remédios de vida com os quais podes salvar-te: meus portentos, meus signos, meus milagres, com os quais me revesti no mundo como com uma armadura de guerra? Te dei para que te cinjas e derrotes a Golias, quer dizer o diabo. Que coisa te falta agora, por que me converteste num estranho? Só tua negligência te precipita no abismo infernal!”
Filho meu, estas coisas e outras piores nos dirão se somos negligentes e não obedecemos (o mandamento) de perdoar-nos mutuamente. Vigiemos sobre nós mesmos e quais são as potestades de Deus, que virão em nosso auxílio no dia da morte; aquelas que nos guiarão em meio da dura e terrível guerra, aquelas que farão ressurgir nossas almas de entre os mortos.
Se nos deram, diante de tudo, a fé e a ciência para expulsar de nós mesmos a incredulidade, se nos deram, depois, a sabedoria e a prudência para discernir os pensamentos do diabo, fugir e detestá-los. Se nos predicou o jejum, a oração, a temperança, que outorgam a calma ao corpo e a quietude às paixões. Se nos deram a pureza e a vigilância, graças às quais Deus habitará em nós. Se nos deram a paciência e a mansidão. Se custodiamos todas, herdaremos a glória de Deus.
Se nos deram a caridade e a paz, poderosas na luta, o inimigo, com efeito, não se acerca do lugar onde se encontram estas. Respeito à alegria, se nos ordenou combater com ela a tristeza. Se nos deram a generosidade e a disposição para o serviço. Se nos deram a santa oração e a perseverança que cumulam de luz a alma. Se nos deram a modéstia e a simplicidade, que desarmam a maldade. Foi escrito para nós que devemos abster-nos de julgar, para vencer a mentira, perverso vício que está no homem, porque se não julgarmos não seremos julgados no dia do juízo. Se nos deram a paciência para afrontar o sofrimento e as injustiças, para que não nos oprima o desalento.
Nossos pais transcorreram suas vidas na fome, na sede e em inumeráveis mortificações, até conquistar a pureza, sobretudo, fugido do hábito do vinho, que nos cumula de todos os males. As perturbações, os tumultos e as desordens em nossos membros são causados pelo abuso do vinho. Esta é uma paixão cheia de pecados; é a esterilidade e a podridão dos frutos. A insaciável voluptuosidade escurece o entendimento, torna impúdica a consciência e rompe o freio da língua. Existe alegria plena quando não se entristece ao Espírito Santo e não está atordoada a vontade. “O sacerdote e o profeta” – está escrito – “foram atordoados pelo vinho” (Is. 28,7). O vinho é licencioso, insolente a ebriedade. Quem se abandona a ele não estará limpo de pecado (Prov. 20,1). Coisa boa é o vinho, se bebido com moderação. “Se voltas teus olhos às taças e aos cálices, caminharás desnudo como um néscio” (Prov. 23,31). O que se haja preparado para fazer-se discípulo de Jesus, que se abstenha do vinho e da ebriedade.
Nossos pais, conhecendo quantos males provêm do vinho, se bastaram. Bebiam pouquíssimo, em caso de enfermidade. E se lhe foi concedido um pouco a Timóteo, esse grande trabalhador, isso sucedeu porque seu corpo estava cheio de enfermidades. Porém, a quem ferve de vícios na flor da juventude, em quem se acumulam as impurezas das paixões, que lhe direi? Tenho medo de dizer-lhe que não beba (vinho) por temor de que algum, depreciando a própria salvação, murmure contra mim. Em nossos dias, com efeito, para muitos, esta linguagem é dura. Ademais, queridos meus, é bom vigiar e é útil mortificar-se, porque quem se mortifica colocará num lugar seguro sua nave, no bom e santo porto da salvação, e saciará dos bens do céu.
Porém, o que é todavia maior que tudo isto: nos foi dada a humildade; ela vela sobre todas as outras virtudes, tal é a grande e santa força da qual se revestiu Deus quando veio ao mundo. A humildade é o baluarte das virtudes, o tesouro das obras, a armadura da salvação, o remédio para toda ferida. Depois de haver fabricado as telas finas, os ornamentos preciosos e todos os adornos para o tabernáculo, o revestiu com uma tela de silício. A humildade é coisa mínima diante dos homens, porém, preciosa e estimada diante de Deus. Se a adquirimos pisaremos todo o poder do inimigo (Luc. 10,19). Está escrito, com efeito: “A quem olharei, senão ao humilde e ao manso?” (Is. 66,2).
Não concedamos repouso a nosso coração neste tempo de carestia, porque se multiplicada a jactância e a vaidade, se multiplica a avidez, reina a fornicação por causa da fartura da carne, prevalece o orgulho. Os jovens não obedecem mais aos anciãos, os anciãos não se preocupam mais pelos jovens, cada um caminha segundo os desejos de seu coração. Este é o tempo de gritar como o profeta: “Ai de mim, ó alma minha! O homem que teme a Deus desapareceu da terra e o que é reto entre os homens não vive mais segundo o Cristo; cada um oprime a seu próximo” (Miq. 7,1-2).
Queridíssimos meus, lutem porque o tempo está próximo e os dias se reduziram. Já não há um pai que ensine a seus filhos, não há um filho que obedeça a seu pai, desapareceram as virgens retas; os santos padres morreram. Desapareceram mães e viúvas. Chegamos a ser como órfãos; se pisa sobre os humildes e se golpeia a cabeça dos pobres. Por isto, mais um pouco e se verá a ira de Deus, e estaremos na aflição sem que haja nada para consolar-nos. Tudo isto nos sucedeu porque não quisemos mortificar-nos.
Queridos meus, lutemos para receber a coroa que foi preparada. O trono está listo, a porta do reino está aberta; ao vencedor darei o maná escondido. Se lutamos e vencemos as paixões, reinaremos para sempre; porém, se somos vencidos, teremos remorsos e choraremos com lágrimas amargas. Combatamo-nos a nós mesmos enquanto está a nosso alcance a penitência. Revistamo-nos com a mortificação e assim nos renovaremos na pureza. Amemos aos homens e seremos amigos de Jesus, amigo dos homens.
Prometemos a Deus a vida monástica, a caridade, a virgindade; porém, não só do corpo, e sim aquela virgindade que é (escudo) contra todo pecado. No evangelho, com efeito, algumas virgens foram rechaçadas por causa de sua preguiça; aquelas, em troca, que vigiavam valorosamente entraram na sala de bodas. Que cada um de nós possa entrar nesse lugar para sempre!
O amor ao dinheiro, por sua causa somos combatidos. Se queres misturar riquezas, que são a isca para o anzol do pescador, sobretudo mediante a avareza ou com o comércio, ou bem com a violência ou com o engano, ou com um trabalho excessivo, ao extremo de não ter tempo para servir a Deus, ou por qualquer outro meio; se desejou misturar ouro e prata, recorda aquilo que se diz no evangelho: “Insensato! Esta noite te será quitada a vida e aquele que foi encolerizado para quem será?” (Luc. 12,20). E também: “Amontoa tesouros, sem saber para quem os amontoa” (Sal. 38,7).
Luta, querido meu, combate contra as paixões e diga: “Farei como Abraão, levantarei minhas mãos até o Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra (para testemunhar) que não tomarei nada do que é teu, nem um filho, nem a correia de uma sandália” (Gen. 14,22-23); são bens essenciais para um humilde estrangeiro. E (diga também): “O Senhor ama ao prosélito, para provê-lo de pão e vestimenta” (Deut. 10,18). Igualmente a propósito da preguiça, por causa da qual se nos combate: “Acumula riquezas em vistas à esmola e para os necessitados” (Eclo. 18,25). Recorda que está escrito: “Serão malditos teus celeiros e tudo o que eles contenham” (Deut. 28,17). A propósito do ouro e da prata, São Tiago disse: “Tua ferrugem se levantará em testemunho contra ti; a ferrugem devorará tua carne como o fogo” (Tg. 5,3); e: “É superior o homem justo que não tem ídolos” (Bar. 6,72) e vê a sua ignomínia. Purifica-te da maldição, antes que o Senhor te chame. Puseste esperança em Deus, porque está escrito: “Que seus corações sejam puros e perfeitos diante de Deus” (1Rs. 8,61).
Querido meu, te saúdo no Senhor. Na verdade puseste em Deus teu auxilio; ele te ama; caminhaste com todo o coração segundo os mandamentos de Deus. Que Deus te bendiga, que tuas fontes se tornem rios e teus rios um mar! Verdadeiramente, és carro e auriga da temperança. A lâmpada de Deus arde diante de ti, que refletes a luz secreta do Espírito e dispões tuas palavras com juízo. Que Deus te conceda a graça da força atlética dos santos, que não se encontrem ídolos em tua cidade. Que possas por teu pé sobre o colo do príncipe das trevas, ver ao generalíssimo do exército do Senhor a tua direita, submergir ao faraó e seus exércitos e fazer atravessar a teu povo o mar salgado; é dizer, esta vida. Assim seja!
Te rogo ainda não dar repouso a teu coração! Esta é a alegria dos demônios: fazer que o homem conceda repouso a seu coração e arrastá-lo à rede antes que o advirta. Não sejas negligente em aprender o temor do Senhor; cresce como as jovens plantas e agradarás a Deus, como um jovem búfalo que levanta no alto seus cornos. Seja um homem forte nas obras e palavras; não receies como os hipócritas, para que tua sorte não seja como a deles. Não perdas nem sequer um dia de tua existência, conhece que coisa dás a Deus cada dia. Vive só, como um general prudente. Discerne teu pensamento, seja que vivas na solidão, seja no meio de outros. Cada dia, em suma, julga-te a ti mesmo. É melhor, com efeito, viver no meio de um milhar de homens com toda humildade, que só, em uma guarida de hienas, com orgulho. De Ló, que vivia no meio de Sodoma, se atesta que era um excelente homem de fé. Escutamos, em troca, a respeito a Caim, com o qual não havia sobre a terra senão três seres humanos, que foi um malvado.
Agora se te propõe a luta. Examina o que te ocorre cada dia, para saber se estás no número dos nossos ou no daqueles que nos combatem. Somente a ti os demônios costumam apresentar-se por tua direita, aos demais homens se lhes aparecem pela esquerda. Também eu, em verdade, fui assaltado pela direita; me levaram ao diabo atado como um asno selvagem, porém, o Senhor me socorreu; eu não confiei neles e não lhes entreguei meu coração. Muitas vezes fui tentado por insídias diabólicas a minha direita, e (o diabo) se pós a caminhar diante de mim. Se atreveu inclusive a tentar ao Senhor, porém, este o fez desaparecer junto com seus enganos.
Filho meu, revista-te de humildade, toma como conselheiros teus a Cristo e a seu Pai bom; seja amigo de um homem de Deus, que tenha a lei de Deus em seu coração, seja como um pobre que leva sua cruz e ama as lágrimas. Permanece de lástima também tu, com um sudário na cabeça. Que tua cela seja para ti uma tumba, até que Deus te ressuscite e te dê a coroa da vitória.
Se alguma vez chegas a litigar com um irmão que te fez sofrer com uma palavra sua, ou se teu coração fere a um irmão dizendo-lhe: “Não mereces isto”, ou bem se o inimigo te insinua contra alguém: “Não merece essas louvações”, se recebes a sugestão ou o pensamento do diabo; se cresce a hostilidade de teu pensamento; se estas em disputa com teu irmão, sabendo que não há bálsamo em Galaad, nem médico na velhice (Jer. 8,22), refugia-te em seguida na solidão com a consciência em Deus, chora a sós com Cristo e ele, o Espírito de Jesus, falará a teu entendimento e te convencerá da plenitude do andamento. Por que deves lutar só, igual a uma fera selvagem, como se este veneno estivesse dentro de ti?
Pensa que tu também caiu amiúde. Não escutaste dizer o Cristo: “Perdoa a teu irmão setenta vezes sete” (Mat. 18,22)? Não derramaste lágrimas muitas vezes suplicando: “Perdoa-me meus inumeráveis pecados” (Sal. 24,18)? Se tu exiges o pouco que teu irmão te deve, em seguida o Espírito de Deus põe diante de ti o juízo e o temor de seus castigos. Recorda que os santos foram considerados dignos de ser ultrajados. Recorda que Cristo foi esbofeteado, insultado e crucificado por tua causa; e ele acumulará imediatamente teu coração com a misericórdia e o temor; então te prostrarás em terra chorando, e dizendo: “Perdoa-me, Senhor, porque fiz sofrer a tua imagem”. Imediatamente te levantarás com o consolo do arrependimento e te arrojarás aos pés de teu irmão com o coração aberto, com o rosto radiante, o sorriso sobre os lábios, irradiando paz e, sorrindo, pedirás a teu irmão: “Perdoa-me, irmão meu, por haver feito sofrer”. Que abundem tuas lágrimas; depois das lágrimas vem uma grande alegria. Que a paz exulte entre vocês dois e o Espírito de Deus, por sua parte, se gozará e exclamará: “Ditosos os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus” (Mat. 5,9). Quando o inimigo ouve o som desta voz, fica confundido, Deus é glorificado e sobre ti desce uma grande benção.
Irmão meu, este é o tempo de fazer-nos a guerra a nós mesmos; tu sabes que por todas partes se levantam as trevas. As Igrejas estão repletas de litigantes e excitados, as comunidades monásticas se tornam ambiciosas, reina o orgulho. Não há ninguém que se ponha a servir ao próximo: em troca, todos oprimem a seu próximo (Miq. 7,2). Estamos imersos na dor. Não há mais profeta nem sábio. Não há nenhum que possa convencer a outro, porque abunda a dureza de coração. Quem compreende permanece em silêncio pois os tempos são maus. Cada um é senhor de si mesmo, se deprecia o que não se deveria depreciar.
Agora, irmão meu, vive em paz com teu irmão. E reza também por mim, porque não posso fazer nada, e sim que estou atribulado por meus desejos. Vigia sobre ti em todas as coisas, esforça-te, cumpre tua obra de pregador. Permanece firme na prova, leva a termo o combate da vida monástica com humildade, paciência e temor ante as palavras que escutarás. Custodia a virgindade, evita os excessos e essas abomináveis palavras pouco oportunas; não te alijes dos escritos dos santos, e sim que seja firme na fé de Cristo Jesus nosso Senhor. A ele seja a glória, a seu bom Pai e ao Espírito Santo! Assim seja! Abençoa-nos!
Fonte: Agnus Dei
Trad.: Carlos Martins Nabeto