A Liturgia dos Dons Pré-Santificados: Significado e prática no mundo de hoje

Pe. Andrei Tkachev
Arcipreste

Fonte: http://ruskline.ru

Dado o caráter penitencial da Grande Quaresma, não são realizadas Divinas Liturgias nos dias de semana (ocorrendo sempre nos sábados e domingos). Contudo, tal era a necessidade do povo cristão, em seus momentos de maior saúde, de manter a comunhão eucarística de forma frequente, que a santa Igreja, em sua bondade maternal, permitiu um caminho de conciliar a guarda do caráter penitencial da Grande Quaresma, mas ainda assim, permitir a comunhão frequente, ao menos às quartas e sextas Feiras da Grande Quaresma.

E esta forma foi a pré-santificação dos Dons. Então, em um domingo, um cordeiro adicional era santificado para ser oferecido nas liturgias das quartas e sextas-feiras. Os cristãos de hoje, que já acham ser um grande esforço comungar uma vez a cada mês, devem olhar para este sagrado oficio, próprio do tempo de penitência, como um sinal para a correção de rota. Os sábados e domingos da Grande Quaresma não são considerados “dias de jejum”. Mas isto não significa que a abstenção de alimentos, próprias da Grande Quaresma, não se façam vigentes nestes dias. Logo, quando se diz que sábados e domingos não são dias de jejum, é porque nesses dias o cálice do verdadeiro alimento é servido.

A Eucaristia é a pedra angular da Igreja; e é porque ocorre ou não liturgia nestes dias  que se estabelece a maneira de se dizer se estamos em um dia de festa ou de luto. Se, portanto, durante a Grande Quaresma, só se comparece ao templo aos domingos, não se vai conseguir sentir o que é a Grande Quaresma, independentemente da abstenção de comida. É necessário viver os ofícios especiais da Grande Quaresma para poder experimentar o contraste entre estes dias e os demais dias do ano; e nisso, na percepção desta distinção, poder respirar profundamente o espírito do Jejum de quarenta dias.

E o mais importante desses serviços especiais é a Liturgia dos Dons Pré-Santificados. Este oficio distingue-se da liturgia tradicional, pois o sacrifício incruento a Deus não é ofertado nele, o sacrifício é oferecido com os dons pré-consagrados (na Divina Liturgia anterior), e pode-se então comungar desses dons previamente santificados. Todo o ofício é uma preparação para a comunhão daqueles dons preparados com antecedência. E a ideia principal sobre o sentido fundamental deste oficio especial é o tema da necessidade da comunhão e a tristeza de nossa separação do mesmo.

O oficio surgiu da piedosa relutância em permanecer, mesmo que por uma única semana, sem receber os santos dons, mesmo considerando que a Grande Quaresma não permite um tempo de festa, mas é um tempo de auto humilhação e lágrimas. No entanto, durante os dias de semana não pode haver festa, mas se ainda assim se faz necessário comungar, os dons devem então ser santificados com antecedência. Vejamos então como é verdadeiramente impossível compreender o sentido de se realizar a Liturgia dos Dons Pré-Santificados – seu ritual, a origem e a necessidade – sem ter verdadeira devoção e amor para com a prática da comunhão freqüente. Digam então o que quiserem, mas se a Tradição da Igreja Primitiva realmente estabelecia a comunhão apenas por umas cinco ou seis vezes por ano, então a liturgia dos Dons Pré-Santificados nunca teria surgido, pois mesmo a própria necessidade não teria surgido.

Contudo, havia necessidade de comunhão frequente, pois “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro”. Se fosse mesmo verdade que nos primórdios da Igreja se comungava raramente, qual seria a razão para ter ser criado esta especial forma de garantir a comunhão para os dias de semana da Grande Quaresma? Se de fato fosse um evento raro a comunhão, esses dias de semana da Grande Quaresma poderiam ser facilmente preenchidos por Typicas, Salmodias, Akathistos, catequese, pregações… Mas então temos uma prova cabal, uma proposição tão clara e honesta, que qualquer um pode compreender: a liturgia (a comunhão) não pode ser abandonada. Ela é a nossa única riqueza.

Então, devemos amar a liturgia, e compreender tudo em nossa fé a partir dela. Então podemos perceber que Khomiakov estava totalmente correto quando disse: “O Cristianismo só pode ser compreendido por aqueles que compreenderem o que é a Liturgia”. Santa Maria do Egito não poderia ter ido viver no deserto por tantos anos sem antes ter comungado. Mesmo ainda não purificada das paixões, ela recebeu a comunhão e desta graça fez a promessa para o futuro, para que graças a ela , pudesse receber ajuda divina no deserto. Nós, também, nas palavras de André de Creta, devemos nos alimentar, para “ir ao deserto do arrependimento para vencer nossas paixões”. Durante a Grande Quaresma, as paixões são despertadas, atormentando e perturbando a nossa alma. Quiçá elas simplesmente não nos incomodassem mais, mas agora voltam e nos queimam por dentro. Então a necessidade de ajuda divina torna-se mais urgente e mais palpável.

A Liturgia dos Dons Pré-Santificados foi estabelecida apenas para aquelas pessoas que, lutando em seu jejum espiritual, se apercebem de suas fraquezas com um entusiasmo especial.

O ofício é unido com o Ofício de Vésperas e sempre é melhor que seja realizado à noite. Sim, certamente não são poucas as dificuldades em celebrá-lo à noite e, fundamentalmente, temos o problema do obrigatório jejum eucarístico, que deve então se estender por todo um dia. Sim, essa dificuldade do jejum eucarístico (nenhum alimento ou bebida, desde o primeiro minuto do dia em que se vai comungar até a comunhão), de modo que todas as demais questões impeditivas são meros detalhes técnicos. A desculpa então para não se realizar esta Liturgia a noite é aquela conhecida : “Nos tempos de hoje, ninguém mais aguenta tal esforço…” O jejum eucarístico mais longo é a única preocupação séria em relação a se realizar

o oficio da liturgia dos Dons Pré-Santificados à noite. Mas, afinal de contas, o jejum não existe justamente para que nós experimentemos a fome e a sede, uma fraqueza física sutil, e uma secura no estômago? Será que realmente estamos dispostos a abandonar o esforço e a abstinência, unicamente para uma autogratificação de nossas fraquezas?

As crianças não comungam neste ofício. Elas podem faze-lo aos sábados e domingos da Grande Quaresma. O mesmo podemos dizer sobre os mais velhos, que não podem ficar tanto tempo sem fazer uso de medicamentos e alimentos. Mas eles também, tem os sábados e domingos. Todos os demais, que podem ficar sem comer e beber um dia inteiro, até a noite, todos aqueles que são fortes e saudáveis, aqueles que são ainda mais perturbados pelas paixões carnais devido à sua juventude e excesso de força, devem encarar a batalha ascética com determinação, com coragem e fé. E podemos dizer ainda mais: na realidade, verifica-se que os idosos são muitas vezes mais preparados do que os jovens para se abster de comer e para poder rezar mais em sua preparação para a comunhão. E também podemos dizer que são muitos os jovens que buscam viver mais sua luta ascética, com mais freqüência do que pensamos.

Existem as dificuldades. Mas tudo o que resta para alem disso é o prazer. E estamos na Grande Quaresma.

Vale então a pena celebrar este serviço à noite, pelo menos uma vez na vida, mesmo que apenas por uma questão de experiência e pela sensação de contraste do tempo comum. Deve-se cantar “É chegado pôr do sol, depois de ter contemplado a luz da noite” verdadeiramente às 18 horas, e não falsamente às 8:30 da manhã, para que o canto tenha sentido, seja verdadeiro.

Vale a pena experimentar o quão melhor é para nossa alma quando dizemos as palavras do salmo “E o levantar das minhas mãos como um sacrifício vespertino”, realmente à tarde, em uma igreja escura, iluminada apenas pelas lamparinas a óleo, e não quando o sol vivo do dia está brilhando… Dizer “Completemos a nossa oração vespertina ao Senhor” é incomparavelmente melhor sendo dita quando de fato estamos rompendo a tarde para adentra a noite, e não antes do meio dia. Vale a pena para o corpo entender o quão melhor é rezar com o estômago completamente vazio, para que seja possível viver o caminho mais antigo e certamente mais elevado, mesmo que seja um caminho mais difícil. Todo os cânticos, todas as incensações, todas as prostrações, todas as procissões com velas e incenso ao redor do Cordeiro eucarístico, e todas as orações de Santo Efrem são destinadas para a noite.

Este serviço é misterioso e especialmente íntimo. Ele evita a luz solar e elétrica, na medida em que todas pessoas em comunhão com Cristo são aqueles que decidiram assumir uma luta ascética ainda maior, aqueles que se contiveram ainda mais, em razão da grandeza do Reino celestial.

A Liturgia, em geral, não é para os olhos exteriores. É um sinal de doença realmente grave e uma agressão a verdade que as portas para os nossos serviços estejam sempre abertas para pessoas continuarem a comprar velas e pechinchar no balcão por qualquer coisa, enquanto se desenvolve o Oficio Sagrado. O Evangelho está sendo lido ou o Hino dos Querubins está sendo cantado, e sempre haverá alguém olhando ao redor dos velários, tentando encontrar um lugar para colocar suas velas… Queira Deus que um dia sejamos o suficiente maduros para compreender com a necessária gravidade a exclamação do Diácono quando este diz: “As portas! As portas!” e aí realmente compreendêssemos que não deveria mais haver “idas e vindas”, até o fim do Ofício!

Bom, essas agitações são lamentavelmente comuns durante a liturgia regular. Mas, quando da liturgia dos Dons Pré-Santificados tais coisas são ainda mais inaceitáveis. Pois nesta liturgia, não há lugar para pessoas distraídas vagando em direção aos veleiros… Nessa liturgia essas pessoas se destacam imediatamente. E de maneira nenhuma podem receber a comunhão.

A Liturgia dos Dons Pré-Santificados eleva as naturais exigências do serviço ao clero. Sim, pois enquanto um sacerdote tem de explicar uma série de coisas, outros devem buscar apreender a interpretar os textos de Gênesis e Provérbios lidos nesses serviços. E se faz necessário acalmar a todos aqueles que veem o mal do renovacionismo em todas as práticas as quais eles não estão acostumados. É necessário explicar que se dá justamente o contrário! Pois o renovacionismo é justamente a diminuição da disciplina eclesiástica, com o único fim de conformar o culto sagrado ao espírito dos tempos. Logo, o retorno à tradição é um movimento na direção oposta: é um confronto a auto-indulgência, pela aplicação da auto-disciplina. É um movimento de obediência e busca pela mais correta compreensão ao espírito dos textos litúrgicos. Assim, por exemplo, há na Liturgia dos Dons Pré-Santificados as orações freqüentes para catecúmenos, mas também há as orações “para aqueles que se preparam para a santa iluminação”. E este é um resquício dos tempos antigos, quando as pessoas se preparavam para o Batismo por um longo tempo de catecumenato. Hoje, para não omitirmos essas orações, mas também não as ler apenas por uma questão de costume, temos de encontrar uma aplicação viva para elas. Afinal, todos nós temos parentes, amigos ou conhecidos que já ouviram falar sobre Cristo, mas que não aceitaram o batismo. Muitos estão quase prontos, mas ainda estão oscilando. Então, poderíamos instituir listas de comemoração com os nomes daqueles que estão à beira do batismo, mas que ainda aguardam por um empurrão Divino? Esta é, especialmente, a situação de muitos dos familiares dos nossos paroquianos regulares, que não são ortodoxos. E mesmo se não existem tais pessoas, ainda podemos rezar para a iluminação pela luz da fé cristã em favor de muitos povos, que ainda permanecem nas trevas do paganismo. Certo, isso pode não se aplicar a todos os lugares. Ou no mínimo, isso não vai fazer sentido em todos os lugares. Mas isso também é bom. Pois todo mundo é diferente e nós não precisamos de revoluções, reformas radicais, ou uniformidades instantâneas. Mas precisamos ter amor pela Igreja e pelo desejo ardente de fazer as coisas corretamente, e não simplesmente fazer “o que estamos acostumados a fazer”. Se vai ser sempre “o que estamos acostumados a fazer”, então aqui temos simplesmente uma questão de amor próprio e medo de perturbar as nossas comodidades, em vez de defender a verdade.

A Grande Quaresma passa por nós rapidamente. E por muitas vezes deixamos para trás um resíduo de insatisfação. As pessoas dizem: o grande jejum passou e mais uma vez eu não consegui mudar a mim mesmo. A santa Páscoa está chegando, mas me sinto como se tivesse desperdiçado os quarenta dias de jejum, sinto-me fraco por ter feito um jejum parcial. Pois eu sei que “o Reino dos céus deve ser conquistado pela força”, e também sei “que a porta e o caminho são estreitos“, mas ainda assim continuo a tropeçar nos mesmos velhos hábitos, pensando que “ainda não é o momento certo”, ou que não tenho forças para me dedicar totalmente a minha fé… Eu poderia tentar dizer algo relaxante sobre tais questões, mas não acho que devo. Pois sim, é mesmo verdade que mesmo a santa e bela Páscoa não nos encherá com a vida eterna, se não tivermos êxito em usar o jejum para purificar o nosso interior. O Senhor não vai derramar “vinho novo em odres velhos”. É nós somos os culpados, e não o Senhor, porque temos ficado a sentar confortavelmente, a olhar a paisagem, despreocupados, pelas mais variadas razões. E isso que fazemos não é nada bom. Isso não é bonito. Isso não é honesto. Os planetas se movem em torno do sol. Nosso Sol é Cristo. “Mas para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, e cura trará nas suas asas”, diz o profeta Malaquias (4:2). Assim, na Liturgia dos Dons Pré-Santificados tocamos o Cordeiro com temor, e tocamos os sinos para que o povo caia de joelhos, fazemos prostrações, cantamos hinos de arrependimento e de louvor. E os poderes celestiais servem o Rei da Glória, junto conosco de forma invisível. E como resultado, tal presença nos dá uma disposição para a oração, iluminados pela esperança de estarmos diante de Cristo, que tal força deve ser o suficiente para nos manter firmes por um longo tempo.

A Grande Quaresma vai passar, mas a atitude reverencial permanecerá conosco. Depois virão os dias de festa da santa Páscoa e outros se seguirão, mas o desejo de rezar com lágrimas, de fazer prostrações, e de jejuar, não vai mais deixar as nossas almas.

Portanto, precisamos respirar profundamente o ar triste, mas totalmente benigno da Grande Quaresma, de modo que a castidade e austeridade presentes neste ar se entranhe o mais profundamente possível em cada célula do nosso organismo espiritual. Amém!