A Teologia dos Ícones
São João Damasceno, grande defensor da Teologia dos ícones, escreve: «Se alguém te perguntar pela tua fé, leva-o à igreja e mostra-lhe os ícones». Na verdade, os ícones exprimem a fé professada pelo povo cristão do Oriente. Eles consideram tanto os ícones que os colocam no mesmo plano da Bíblia e da Tradição. Diversa é a visão na Igreja Latina ou Ocidental, embora, nos primeiros séculos, antes da separação no século XI, a Igreja Romana defendeu os ícones e, nunca se serviu, de um Concílio para os impor. Para os orientais, os ícones têm um conteúdo histórico, litúrgico, espiritual e dogmático.
Após a Revolução comunista que sucedeu aos ícones naquela que era considerada a Santa Rússia?
1-No princípio do Século XX, redescobriram-se os ícones na Rússia, devido em parte aos restauradores da Virgem Maria de Tikhvin. Desde então os ícones foram vistos como os «primitivos» da pintura, onde se inspiraram os artistas de vanguarda. Com o restauro da Trindade de Rublev por Gourianov e, com o livro: «Os ícones Santa Trindade e o seu restauro», acompanhado por numerosas fotografias, a pintura foi colocada no seu lugar e provocou uma verdadeira peregrinação, não de fiéis, mas dos amantes das pinturas antigas, não apenas na Rússia, mas em toda a Europa, principalmente em France e na sua capital Paris.
Abriu-se um novo período na história do ícone russo que, antes, era então considerado um objeto de culto popular sem valor artístico, começou agora a atrair as elites, nascem espontaneamente as coleções e procura-se descobrir mais pinturas deste gênero e conservá-las. Após a revolução russa comunista de 1905, os chamados «velhos crentes» adquirem o direito de celebrar o culto publicamente, aparecem doações de ícones que foram escondidos para não serem destruídos nem vendidos, constroem-se igrejas e procuram-se ícones grandes.
Em outubro de 1911, o grande pintor francês Henri Matisse visitou Moscou convidado por um grande colecionador que lhe mostrou as catedrais do Kremlin, as capelas, as coleções dos «velhos crentes» que durante a revolução os tinham escondido e conservado. Numa entrevista em Paris, Matisse escreveu: «Eu conheço a arte religiosa de muitos países, mas, em nenhuma parte vi uma tal revelação do sentimento místico, por vezes, até o êxtase religioso. As suas igrejas são um conjunto do mais interessante da pintura primitiva. Eu não vi em nenhuma parte uma tal riqueza, uma tal pureza de cores, uma tal espontaneidade de representação. É o melhor patrimônio de Moscou. É preciso vir aqui instruir-se porque é nos ‘primitivos que convém procurar a inspiração’. Por duas vezes acompanhado por algumas dezenas de peregrinos da Madeira fomos à Rússia, não somente a Moscou, até porque a arte bizantina começou em Constantinopla, passou a Kiev, depois para Novgorod, Pskov, e, por fim, a Moscou».
2- A minha formação no Seminário Maior do Funchal incluiu uma boa formação na arte flamenga, tão abundante na Madeira, na arte italiana, principalmente a do Renascimento, na música gregoriana e na teologia dos padres Gregos, como João Crisóstomo, os três Capadócios etc. Quando cheguei a Roma com o padre Maurílio em 1957, ouvi uma conferência e visitei uma exposição de ícones bizantinos que modificou a minha visão para sempre. Não rezei mais perante as belíssimas Madonas de Rafael, voltei-me para a Theotokos (Mãe de Deus) segundo a tradição pintada por São Lucas. Na Itália, visitei as igrejas de Santa Maria Antiqua no Fórum Romanum, Santa Maria Maior, Santa Maria in Transtevere e as magníficas catedrais de Veneza, de Ravena e as da Sicília em Palermo na Capela Palatina, na Catedral de Montreal e o Pantocrator de Cefalù. Além disso, quando os franceses apresentaram à vidente de Lurdes, Bernardete, um conjunto de imagens da Virgem Maria para mostrar a que mais se assemelhava à que lhe aparecera na gruta de Massabiel, ela respondeu: «Nenhuma delas é semelhante»; quando lhe mostraram um ícone bizantino do sec. XVI da catedral de Cambrai, ela respondeu: »Este sim é o que mais se aproxima da Senhora da Gruta» junto ao rio Gave.
3- A frase do grande escritor russo Dostoievski: «A beleza salvará o mundo», é por mim aplicada à Virgem Maria, a Theotokos. Não sou original, sigo uma tradição milenária que sempre colocou a maravilhosa arte bizantina entre os mais elevados níveis da Beleza produzidos pelo espírito humano. Dostoievski compreendeu bem o que afirmou ao escrever: «O Espírito Santo é a percepção direta da beleza, Ele comunica o esplendor da santidade». A Beleza «é poesia sem palavras», ela é o «ícone de Deus», o «digitus Dei» o dedo de Deus que traça com a luz incriada o que a Palavra diz, e a imagem mostra-o silenciosamente. Segundo São Paulo na 1ª carta aos Coríntios, «Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo». Segundo uma crença popular, o raio de luz que penetra na ostra no mar, gera a pérola.
A figura de Jesus Cristo é a face humana de Deus Pai, o Espírito Santo repousa sobre Ele e revela a Beleza absoluta que nenhuma arte pode revelar e, que, só o ícone, o pode sugerir mediante a luz do Tabor que o iconógrafo ou pintor de ícones, recebe do Invisível. Os ícones eram pintados por monges artistas, após longa meditação e reflexão mística, com o dom das lágrimas, segundo modelos transmitidos pela tradição e aprovados pelos concílios. O ícone da Transfiguração era pintado de joelhos, porque era pintado com a luz que irradiava do Senhor no monte Tabor. Dostoievski considera também que a «ideia estética foi perturbada no homem. O coração encontra a beleza também na vergonha, no ideal de Sodoma, que é aquela da imensa maioria das pessoas. É o duelo entre Satanás e Deus, e o coração humano é o campo de batalha».
A natureza espera gemendo que a beleza seja readquirida pelo homem restaurado espiritualmente pela luz celeste.
FONTE: JM – Opinião e Crônicas
Crônicas, 11/11/2020