A Teoria do Conhecimento como Apologética

Лев Исаакович Шестов, Иегуда Лейб Шварцман | Lev Isaakovich Shestov, Yehuda Leyb Schwarzmann | Tradução ao Inglês por Samuel Solominivitch Koteliansky
Tradução para o português por
Anônimo, 2020

Palavras Penúltimas e Outros Ensaios, capítulo “A Teoria do Conhecimento”

A Teoria do Conhecimento como Apologética

A teoria moderna do conhecimento, embora sempre conscientemente surga de Kant, em um aspecto desconsiderou bastante o mandamento do mestre. É muito estranho que os teóricos do conhecimento, que geralmente não conseguem concordar entre si em nada, tenham como concordado em entender o problema do conhecimento de maneira diferente que Kant. Kant comprometeu-se a investigar nossas faculdades cognitivas, a fim de estabelecer fundamentos, em virtude dos quais certas ciências existentes pudessem ser aceitas, e outras rejeitadas. Pode-se dizer que o segundo objetivo foi o principal. O ceticismo de Hume o deixou desconfortável apenas na teoria. Ele sabia de antemão que em qualquer teoria do conhecimento que ele pudesse inventar, a matemática e as ciências naturais permaneceriam ciências e a metafísica seria rejeitada. Em outras palavras, seu objetivo não era justificar a ciência, mas explicar a possibilidade de sua existência; e ele partiu do ponto de vista de que ninguém pode duvidar seriamente das verdades da matemática e das ciências naturais. Mas agora a posição é diferente. Os teóricos do conhecimento direcionam todos os seus esforços para justificar o conhecimento científico. Por quê? O conhecimento científico realmente precisa de justificativa? É claro que existem excêntricos, às vezes até excênticos geniais, como o nosso próprio Tolstói, que atacam a ciência; mas seus ataques não ofendem ninguém, nem causam alarme.

Os cientistas continuam suas pesquisas como antes; as universidades florescem; uma descoberta após a outra. E os próprios teóricos do conhecimento não passam noites em claro no esforço de encontrar novas justificativas para a ciência. No entanto, repito, embora eles possam chegar a um entendimento sobre praticamente nada mais, eles nos surpreendem por sua unanimidade nesse ponto – todos estão convencidos de que é seu dever justificar a ciência e exaltá-la. De tal modo que a teoria moderna do conhecimento não seja mais uma ciência, mas uma apologética. E suas demonstrações são como as da apologética. Uma vez que a ciência deve ser defendida, é necessário começar elogiando-a, ou seja, selecionando evidências e dados para mostrar que a ciência cumpre alguma missão ou outra, mas é indubitavelmente muito alta e importante, ou, por outro lado, pintando uma imagem do destino que ultrapassaria a humanidade, se fosse privada da ciência. Assim, o elemento apologético começou a desempenhar um papel quase tão grande na teoria do conhecimento como até agora na teologia. Talvez esteja na hora de apologética científica ser oficialmente reconhecida como uma disciplina filosófica.

Porém, qui s’excuse s’accuse. É claro que nem tudo está bem com a ciência, já que ela começou a se justificar. Além disso, a apologética é apenas apologética e, mais cedo ou mais tarde, a teoria do conhecimento estará cansada de salmos de louvor e exigirá uma tarefa mais complexa e responsável, e um trabalho real. Atualmente, os teóricos partem da premissa de que o conhecimento científico é um conhecimento perfeito e, portanto, as premissas sobre as quais ele é construído não estão sujeitas a críticas. A lei da causalidade não se justifica porque parece ser a expressão de uma relação real das coisas, nem mesmo porque temos dados à nossa disposição que podem nos convencer de que ela não admite e nunca admitirá exceções, que efeitos não causados são impossíveis. Todas essas coisas estão faltando; mas, como nos é dito, elas não são necessárias.

O principal é que a lei causal torna a ciência possível, enquanto rejeitá-la significa rejeitar a ciência e o conhecimento em geral, toda previsão e até, como alguns poucos creem, a própria razão. Claramente, se for preciso escolher entre uma admissão um pouco duvidosa de um lado e a perspectiva de caos e insanidade do outro, não haverá muito tempo de hesitação. A apologética, como vemos, escolheu o mais poderoso dos argumentos, o ad hominem. Mas todos esses argumentos participam de um defeito comum; eles não são constantes e são facas dois gumes.

Hoje eles defendem o conhecimento científico; amanhã eles vão atacar. De fato, acontece que a própria crença na lei causal gera uma grande inquietação e turbulência na alma, que finalmente produz todos os horrores do caos e da loucura. A certeza de que a ordem existente é imutável é para certas mentes sinônimo da certeza de que a vida é sem sentido e absurda. Provavelmente os discípulos de Cristo tiveram esse sentimento quando as últimas palavras de seu Mestre crucificado chegaram da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonou?” E os teóricos modernos podem explicar triunfantemente que quando a lei se tornou o instrumento do caos e da loucura, ela foi ipso facto abolido. ‘Cristo ressuscitou’, dizem os discípulos de Cristo.

Eu disse que os teóricos podem triunfar; mas devo confessar que não encontrei em nenhum deles uma glorificação pública de uma prova tão óbvia da verdade de seus ensinamentos. Sobre a ressurreição de Cristo, eles não dizem uma palavra – pelo contrário, fazem todos os esforços para evitá-la e passá-la em silêncio. E essa circunstância nos obriga a fazer uma pausa e pensar. Um dilema surge: se você admitir que a lei da causalidade não sofre exceção, sua alma será eternamente assombrada pelas últimas palavras do Cristo crucificado; se não o fizer, não terá ciência. Alguns afirmam que é impossível viver sem ciência, sem conhecimento, que tal vida é horror e loucura; outros não podem ser reconciliados com o pensamento de que o homem mais perfeito morreu a morte de um assassino. O que devemos fazer? Sem que coisa é impossível para o homem viver? Sem conhecimento científico, ou sem a convicção de que a verdade e a perfeição espiritual são, em última instância, os vencedores deste mundo? E como a teoria do conhecimento se posicionará em relação a questões como essas?

Será que ela ainda continuará seus exercícios de apologética ou finalmente entenderá que esse não é o seu problema real e que, se preservar o direito de ser chamado de filosofia, não terá que justificar e exaltar a ciência existente, mas examinar e dirigir alguma ciência própria. Significa, acima de tudo, levantar a questão: o conhecimento científico é realmente perfeito, ou talvez imperfeito, e deve, portanto, render seu atual lugar honroso a outra ciência? Evidentemente, essa é a questão mais importante para a teoria do conhecimento, mas essa questão nunca se levanta. Ela quer exaltar a ciência existente. E isto foi, é agora, e provavelmente continuará sendo apologética.

Verdade e Utilidade

Mill, procurando provar que todas as nossas ciências, mesmo as matemáticas, têm uma origem empírica, apresenta a seguinte consideração. Se em todas as ocasiões em que tivemos que tomar duas vezes duas coisas, alguma deidade adicionar uma coisa extra em nossas mãos, deveríamos estar convencidos de que dois mais dois não são quatro, mas cinco. E talvez Mill esteja certo: talvez não devêssemos divinar qual é a estrutura da realidade. Estamos muito mais preocupados em descobrir o que é praticamente necessário e diretamente útil para nós do que procurar a verdade. Se uma deidade a cada quatro coisas escorregasse uma quinta em nossas mãos, devemos aceitar a coisa adicional e considerá-la natural, inteligível, necessária e impossível de ser diferente. A própria uniformidade na sequência de fenômenos observada pelos filósofos empíricos também foi adicionada a nossas mãos. Por quem? Quando? Quem ousa perguntar? Uma vez estabelecida a lei, ninguém mais se interessa por nada. Agora podemos predizer o futuro, agora podemos usar a coisa adicionada em nossas mãos e o resto – vem do maligno.

Filósofos e Professores

Todo mundo sabe que Schopenhauer foi por muitos anos não apenas não reconhecido, mas nem lido. Seus livros foram usados ​​para peso de porta. Foi apenas no final de sua vida que ele teve leitores e admiradores – e, é claro, críticos. Pois todo admirador é, no fundo, um crítico muito impiedoso e importunado. Ele deve entender tudo, fazer tudo concordar e, é claro, o mestre deve fornecer as explicações necessárias. Schopenhauer, que não teve a experiência de ser mestre até a velhice, se comportou de maneira muito benevolente com as perguntas dos discípulos e pacientemente deu as explicações necessárias. Mas quanto mais se entra na floresta, mais grossas são as árvores. As perplexidades mais leais de seus alunos tornaram-se cada vez mais importantes, até que finalmente o velho perdeu a paciência. “Não me comprometi a explicar todos os segredos do universo a todos que quisessem conhecê-los”, exclamou certa vez, quando um certo aluno insistiu em enfatizar as contradições que ele. tinha notado em Schopenhauer. E realmente – um mestre é obrigado a explicar tudo? Nas palavras de Schopenhauer, nos é dada uma resposta não ambígua. Um filósofo não apenas não pode ser um professor, ele não quer ser um. Existem professores nas escolas, nas universidades: eles ensinam aritmética, gramática, lógica, metafísica. O filósofo tem uma tarefa bem diferente, que não se parece nem um pouco com o ensino.

Truth as a "Social Substance"

Existem muitas maneiras, reais e imaginárias, de verificar objetivamente opiniões filosóficas. Mas todos elas se reduzem, como sabemos, ao julgamento pela lei da contradição. É verdade que todos estão cientes de que nenhuma doutrina filosófica é capaz de suportar tal julgamento, de modo que, enquanto se espera um futuro melhor, as pessoas consideram possível demonstrar certa piedade no exame. Elas geralmente ficam satisfeitos se chegam à conclusão de que o filósofo fez uma tentativa genuína de evitar contradições. Por exemplo, elas perdoam Spinoza sua inconsistência por causa de seu amor intelectualis Dei; Kant, por seu amor à moralidade e seu louvor ao desinteresse; Platão, pela originalidade e pureza de seus impulsos idealistas; e Aristóteles, pela vastidão e universalidade de seu conhecimento. Portanto, estritamente falando, devemos confessar que não temos um método objetivo real de verificar uma verdade filosófica e, quando criticamos os sistemas de outras pessoas, julgamos arbitrariamente, apesar de tudo.

Se um filósofo nos convém por algum motivo, não o incomodamos com a lei da contradição; caso contrário, nós o convocamos perante o tribunal para ser julgado com o máximo rigor da lei, confiante de antemão que ele será considerado culpado em todos os aspectos. Mas, às vezes, surge o desejo de verificar as próprias convicções filosóficas. Brincar com a farsa da verificação objetiva com elas, procurar contradições em si mesmo – não creio que até mesmo os alemães sejam capazes disso. E, no entanto, deseja-se saber se ele realmente possui a verdade ou se possui apenas um erro universal em suas mãos.

O que é para ser feito? Eu acho que existe um caminho. Ele deve pensar consigo mesmo que é absolutamente impossível que sua verdade seja vinculativa para alguém. Se, apesar disso, ele ainda se recusa a renunciá-la, se a verdade pode sofrer tal provação e, no entanto, permanecer a mesma para ele como ela era antes, então pode-se supor que ela vale alguma coisa. Muitas vezes apreciamos a convicção, não por ter um valor intrínseco, mas porque exige um preço alto no mercado. Robinson Crusoe provavelmente tinha um modo de pensar totalmente diferente do de um escritor ou professor moderno, cujos livros são expostos à apreciação de seus numerosos confrades, que podem criar para ele a fama de sábio e erudito, ou arruinar completamente sua reputação. Mesmo com os gregos, a quem estamos acostumados a considerar pensadores-modelo, as opiniões tinham – para usar a linguagem da economia – não tanto uma demanda, mas um valor de troca.

Os gregos não tinham conhecimento da imprensa nem de resenhas literárias. Eles geralmente levavam sua sabedoria para o mercado e aplicavam todos os seus esforços para convencer as pessoas a reconhecerem seu valor. E é difícil sustentar que a sabedoria, constantemente oferecida às pessoas, não deve se adaptar aos gostos das pessoas. É mais verdade dizer que a sabedoria se acostumou a se valorizar no grau exato em que poderia contar com a apreciação das pessoas. Em outras palavras, parece que o valor da sabedoria, como o de todas as outras mercadorias, não apenas conosco, mas também com os gregos antes de nós, é um assunto social. A filosofia mais moderna desistiu de esconder o fato. A teleologia dos racionalistas, que seguem Fichte, bem como dos pragmatistas que se consideram os sucessores de Mill, é abertamente baseada no ponto de vista social e fala de criações coletivas. A verdade que não é boa para todos, e sempre, no mercado doméstico e no exterior – não é verdade. Talvez seu valor seja definido pela quantidade de trabalho despendida. Marx pode triunfar: sob diferentes bandeiras, sua teoria encontrou admissão em todas as esferas do pensamento contemporâneo. Dificilmente encontraríamos um filósofo que aplicasse o método de verificação da verdade que propus; e dificilmente uma única idéia moderna que resistisse ao teste.

Doutrinas e Deduções

Se você quiser arruinar uma nova ideia – tente dar a maior publicidade possível. Os homens começarão a refletir sobre ela, a experimentá-lo em suas necessidades diárias, a interpreta-la, a deduzi-la, quer dizer espremer em seu próprio aparato lógico consolidado; ou, mais provavelmente, eles o encobrirão com os restos de suas próprias ideias habituais e inteligíveis, e ela se tornará tão morta quanto tudo o que é gerado pela lógica. Talvez isso explique a tendência dos filósofos de vestir seus pensamentos de tal maneira que sua forma possa impedir a abordagem do público em geral. A maioria dos sistemas filosóficos é exposta de maneira caótica e obscura, para que nem toda pessoa educada possa entendê-los. É uma pena matar o próprio filho, e todos fazem o possível para salvá-lo da morte prematura.

Os inimigos mais perigosos de uma ideia são “deduções” dela, como se ela seguisse por si mesma. A ideia não os pressupõe; eles geralmente são forçadas contra. De fato, as pessoas costumam dizer: ‘a ideia está certa, mas leva a conclusões que não são de todo aceitáveis’. Mais uma vez, quantas vezes um filósofo assiste ao triste espetáculo de seu aluno abandonar todas as suas ideias próprias e se alimentar apenas sobre as conclusões do mestre. Todo pensador que teve a infelicidade de atrair atenção enquanto ainda estava vivo sabe por amarga experiência o que são “deduções”. E, no entanto, você raramente encontrará um filósofo para oferecer resistência aberta e corajosa a seus continuadores; e ainda mais raramente um filósofo diz abertamente que seu trabalho não precisa de continuação, que não terá continuidade, que existe apenas em si e por si mesmo, que é autossuficiente. Se alguém dissesse isso, como ele seria respondido? As pessoas não podiam discuter com ele – tente discutir com um homem que não quer discutir nem demonstrar.

A única resposta é um apelo ao veredicto popular, à lei da lincha. As pessoas são tão fracas e ingênuas que, a todo custo, verão um professor (no sentido usual da palavra) em todo filósofo. Em outras palavras, elas realmente querem jogar sobre ele a responsabilidade por suas ações, seu presente, seu futuro e todo o seu destino. Sócrates não foi executado por ensinar, mas porque os atenienses pensavam que ele era perigoso para Atenas. E em todas as épocas, os homens abordaram a verdade com esse critério, como se soubessem de antemão que a verdade deve ser útil e capaz de protegê-los. Um dos maiores ensinamentos, o cristianismo, também foi perseguido porque parecia perigoso para os guardiões designados por eles, ou, se você preferir, porque era verdadeiramente muito perigoso para os ideais romanos. É claro que nem a morte de Sócrates nem a morte de milhares dos primeiros cristãos salvaram a cultura e a política da decadência: mas ninguém aprendeu nada com a lição. As pessoas pensam que todos esses foram erros acidentais, contra os quais ninguém estava seguro nos tempos antigos, mas que nunca mais se repetirão; e, portanto, eles continuam a fazer ‘deduções’ como usavam em toda verdade e a julgar a verdade pelas deduções que fizeram.

E eles têm sua recompensa. Embora tenha havido na Terra muitos sábios que sabiam muito mais do que todos os tesouros pelos quais os homens estão dispostos a sacrificar suas vidas, ainda assim a sabedoria é para nós um livro a sete selos, um quadro oculto sobre o qual não podemos coloque nossas mãos. Muitos – a grande maioria – estão seriamente convencidos de que a filosofia é uma ocupação tediosa e dolorosa à qual estão condenados alguns miseráveis ​​desgraçados ​​que gozam do odioso privilégio de serem chamados filósofos. Acredito que mesmo os professores de filosofia, os mais inteligentes, raramente compartilham essa opinião e supõem que nela esteja o segredo final de sua ciência, revelada apenas ao iniciado. Felizmente, a posição é outra. Pode ser que a humanidade esteja destinada a nunca mudar a esse respeito, e daqui a mil anos os homens se importarão muito mais com “deduções”, teóricas e práticas, da verdade do que com a própria verdade; mas filósofos reais, homens que sabem o que querem e o que pretendem, dificilmente ficarão embaraçados com isso. Eles proferirão suas verdades como antes, sem ao menos considerar que conclusões serão tiradas deles pelos amantes da lógica.

Verdade, Provada e Não-provada

De onde adquirimos o hábito de exigir provas de cada ideia que é expressa? Se deixarmos de lado a consideração, como não tendo um significado real no presente caso, de que os homens frequentemente enganam propositadamente seus vizinhos por lucro ou outros interesses, então, estritamente falando, a necessidade de prova é totalmente removida. É verdade que ainda podemos nos enganar e cair em erro involuntário. Às vezes, tomamos uma visão por uma realidade e desejamos nos proteger contra esse erro ofensivo. Mas assim que a possibilidade de erro de boa-fé for removida, poderemos nos relacionar simplesmente sem argumentos, julgamentos ou referências. Se quiser, acredite; senão não. E há um domínio, o mesmo domínio que sempre atraiu para si os representantes mais notáveis ​​da raça humana, onde as provas e a aceitação geral são até bastante impossíveis. Até aqui fomos ensinados que aquilo que não pode ser provado, não deve ser mencionado. Pior ainda, organizamos nossa linguagem de maneira que, estritamente falando, tudo o que dizemos seja expresso na forma de um julgamento, isto é, de uma forma que pressupõe não apenas a possibilidade, mas a necessidade de provas.

Talvez seja por isso que a metafísica tenha sido objeto de ataques incessantes. A metafísica evidentemente não era apenas incapaz de encontrar uma forma de expressão para suas verdades que a libertaria da obrigação de provar; ela nem queria. Ela se considerava a ciência por excelência e, portanto, supunha que tinha mais amplamente e mais rigorosamente a capacidade de provar os julgamentos que tomou sob sua asa. Ela pensou que, se negligenciasse o dever de demonstração, perderia todos os seus direitos. E esse, imagino, foi seu erro fatal. A correspondência de direitos e deveres é talvez uma verdade cardinal (ou uma ficção cardinal) da doutrina da lei, mas foi introduzida na esfera da filosofia por um mal-entendido. Aqui, antes, o princípio contrário é entronizado: os direitos são em proporção inversa aos deveres. E somente onde cessaram todos os deveres é adquirido o maior e mais soberano direito – o direito de comunhão com as verdades supremas. Aqui não devemos esquecer, nem por um momento, que as verdades definitivas nada têm em comum com as verdades intermediárias, cuja construção lógica estudamos tão diligentemente nos últimos dois mil anos. A diferença fundamental é que as verdades definitivas são absolutamente ininteligíveis. Ininteligível, repito, mas não inacessível. É verdade que as verdades do meio também são, estritamente falando, ininteligíveis. Quem afirmará que ele compreende luz, calor, dor, orgulho, alegria, degradação?

No entanto, nossa mente, em aliança com o hábito onipotente, tem, com a ajuda de alguma interpretação tensa, devido à combinação de fenômenos no segmento da vida universal que é acessível a nós, um certo tipo de harmonia e unidade, e isso de tempos imemoriais ganharam reputação sob o nome de uma explicação inteligível do mundo criado. Mas o mundo conhecido, que é familiar, é suficientemente ininteligível para que a boa fé exija de nós que aceitemos a ininteligibilidade como o predicado fundamental do ser. É impossível sustentar, como alguns fazem, que a única razão pela qual não entendemos o mundo é que algo está escondido de nós ou que nossa mente é fraca, de modo que, se o Ser Supremo quis revelar o segredo da criação para nós ou se o cérebro humano se desenvolver tanto nos próximos dez milhões de anos ele nos excederá tanto quanto o nosso ancestral oficial, o macaco, o mundo será inteligível. Não, não, não! Pela sua própria essência, as operações que realizamos sobre a realidade são úteis e necessárias apenas desde que não ultrapassem um determinado limite. É possível entender o arranjo de uma locomotiva. Também é legítimo procurar uma explicação de um eclipse do sol ou de um terremoto. Mas chega um momento – só que não podemos defini-lo exatamente – quando as explicações perdem todo o sentido e não servem mais para nada. É como se fôssemos conduzidos por uma corda a lei da razão suficiente – para um certo lugar e deixados lá: ‘Agora vá aonde você quiser’. E desde que nos acostumamos à corda em nossas vidas, começamos a acreditar que faz parte da própria essência do mundo. Um dos pensadores mais notáveis, Spinoza, pensou que o próprio Deus estava vinculado pela necessidade.

Deixe alguém sondar a si mesmo com cuidado, e ele descobrirá que não é apenas incapaz de pensar, mas quase incapaz de “viver” sem a hipótese de Spinoza. O trabalho de Hume, que tão brilhantemente disputou o axioma da necessidade causal, estava apenas pela metade. Ele mostrou claramente que é impossível provar a existência da conexão necessária. Mas também é impossível provar o contrário. No resultado, tudo permaneceu como antes: Kant, e toda a humanidade depois dele, retornou à posição de Spinoza. A liberdade foi levada para um mundo intelectual, uma terra desconhecida “from whose bourne No traveller returns” (Hamlet) e tudo está em seu lugar anterior. A filosofia quer ser uma ciência a todo custo. É absolutamente impossível para ela ter sucesso nisso; mas o preço que ela pagou pelo direito de ser chamado de ciência não lhe é devolvida. Ela renunciou ao direito de buscar o que precisava onde quer que fosse e é privada desse direito para sempre. Mas ela realmente precisava disso? Se você olhar para a filosofia alemã contemporânea, dirá sem hesitar que ela não era necessária. Nem por engano, nem mesmo em busca de um novo título, ela renunciou à sua grande vocação: tornou-se um fardo intolerável para ela. Por mais difícil que seja confessar, é indubitável que os grandes segredos do universo não podem ser manifestados com a clareza e distinção com que o mundo visível e tangível nos é aberto. Não apenas aos outros – nem você se convencerá da sua verdade com a obviedade com a qual pode convencer todos os homens sem exceção das verdades científicas.

Revelações, se ocorrem, são sempre revelações por um instante. Maomé – explica Dostoiévski – só poderia ficar no paraíso por um tempo muito curto, de meio segundo a cinco segundos, mesmo quando ele conseguia cair nele. E o próprio Dostoiévski entrou no paraíso apenas por um instante. E aqui na terra, os dois viveram por anos, por dezenas de anos, e parecia não haver fim para o inferno da existência terrena. O inferno era óbvio, demonstrável; poderia ser fixo, exibido, ad oculos. Mas como o paraíso poderia ser provado? Como consertar, expressar, aqueles meio segundo de bem-aventurança paradisíaca, manifestados externamente em ataques epiléticos feios e horríveis, em convulsões, paroxismos, boca espumosa e, às vezes, uma queda repentina e agourenta, com o derramamento de sangue? Novamente, acredite, se você quiser: se você não quiser, não creia. Certamente um homem que vive em um momento no paraíso, e outro no inferno vê a vida totalmente diferente dos outros. E ele quer pensar que está certo, que sua experiência é de grande valor, que a vida não é como é descrita pelos homens de experiências diferentes e emoções mais limitadas. Quão desesperadamente Dostoiévski desejava persuadir todos os homens de sua certeza, quão teimosamente ele costumava demonstrar e quão zangado ficou com a consciência que vivia nas profundezas de sua alma, por estar impotente em provar alguma coisa.

‘Olhe para ele, meus filhos,
Ele é severo, pálido e magro.
Ele é pobre e nu,
E todos os homens consideram que ele é mau.

Não foi estéril e inútil a obra dos profetas que buscavam as verdades últimas? A vida os mantinha em alguma conta? A vida seguiu seu próprio caminho, e as vozes dos profetas foram, são e sempre serão, vozes no deserto. Pois aquilo que eles vêem e sabem não pode ser provado e não é capaz de provar. Os profetas sempre foram homens isolados, disseveridos, separados e desamparados, presos em seu orgulho. Profetas são reis sem exército. Por todo o amor a seus súditos, eles não podem fazer nada por eles, pois os súditos respeitam apenas aqueles reis que possuem um poder militar formidável. E – que por muitos anos assim seja!

Os Limites da Realidade

Apesar de tudo, nem mesmo o realista mais consistente e convencido representa a vida para si mesma como realmente é. Ele negligencia muito; e por outro lado, ele frequentemente vê algo que não existe na realidade. Eu não acho que seja necessário mostrar isso por exemplo. Apesar de todo o nosso desejo de ser objetivo, somos, afinal, extremamente subjetivos, e as coisas que Kant chama de julgamentos sintéticos a priori, pelas quais nossa mente forma a natureza e dita leis para ela, desempenham um papel grande e sério em nossas vidas. Criamos algo como o véu de Maia: estamos acordados no sono e dormimos acordados, exatamente como se algum poder mágico tivesse nos encantado. E, assim como no sono, sentimos por instantes que o que está acontecendo conosco é como um meio-sonho, uma meia-vida intermediária. Schopenhauer e os budistas estavam certos ao afirmar que é igualmente errado dizer sobre o véu de Maia, o mundo acessível a nós, se ele existe ou não.

É verdade que a lógica não admite tais julgamentos e os persegue de maneira mais implacável, pois eles violam suas leis mais fundamentais. Mas isso não pode ser ajudado: quando alguém tem que escolher entre uma filosofia atraente e promissora e uma lógica vazia, sempre sacrificará a segunda pela primeira. E a filosofia sem julgamentos contraditórios estaria condenada ao silêncio eterno, ou seria transformada em uma lama de lugar-comum e reduzida a nada. Os filósofos sabem disso. O mesmo se aplica ao nosso próprio caso: devemos confessar que estamos ao mesmo tempo acordados e sonhando sonhos, e às vezes devemos reconhecer que, apesar de estarmos vivos, ainda há muito em que estamos mortos. Como seres vivos, ainda mantemos os julgamentos sintéticos aceitos a priori e, como mortos, tentamos prescindir deles ou substituí-los por outros julgamentos que não têm nada em comum com o primeiro, mas são até opostos a eles. A filosofia é ocupada neste trabalho com extrema diligência, e somente nisso e somente esse é o significado do movimento idealista que, desde os tempos de Platão, nunca desapareceu da história. O problema não é encontrarmos outro mundo primordial, melhor e eterno para substituir o mundo visível acessível a todos, pois a filosofia idealista geralmente é interpretada pela sua oficialização e, infelizmente, por seus representantes mais influentes. Obviamente, uma interpretação desse tipo carrega a marca de sua origem utilitária empírica: elas nos aproximam da realidade super-empírica como as noções com as quais definimos o que é valioso na vida. É melhor considerarmos o mundo super-empírico como ouro, diamante ou pérola simplesmente porque ouro, diamantes e pérolas são muito caros.

Mas geralmente assim ocorre. O próprio Deus é geralmente representado como cintilante de ouro e pedras preciosas, como onisciente e onipotente. Ele é chamado de Rei dos Reis, já que na terra uma cabeça coroada é considerada invejável. O significado e o valor da filosofia idealista parece, portanto, que ela sempre ratifica tudo o que achamos valioso na terra durante nossa breve existência. Nisto, acredito, é um erro fatal. A filosofia idealista, em verdade, deu uma desculpa para interpretá-la falsamente, pois ela adorava ser vestida com roupas suntuosas. A religião de quase todas as nações sempre buscou formas exteriormente bonitas, sem parar perante um paradoxo tão óbvio – para não dizer com mais força – como uma cruz de ouro cravejada de diamantes. E por causa de palavras suntuosas e cruzes douradas, os homens ignoravam grandes verdades, e talvez grandes possibilidades. A filosofia das escolas também gostava de se arrumar, de modo que ela não deveria estar por trás dos mestres nesse aspecto, e para se vestir, muitas vezes esquecia o trabalho necessário.

Platão ensinava que nossa vida era apenas uma sombra de outra realidade. Se isso é verídico e ele descobriu a verdade, certamente nossa primeira tarefa é começar a viver uma vida diferente, virar as costas para a parede acima da qual as sombras estão caminhando e virar o rosto para a fonte de luz que criou as sombras ou aquelas coisas com as quais os contornos visíveis dão apenas uma semelhança remota. Devemos ser despertados, mesmo que em parte; para esse fim, o que geralmente é feito a uma pessoa que está dormindo deve ser feito para nós. Ele é puxado, beliscado, espancado, agradado e, se tudo isso falhar, medidas ainda mais fortes e heroicas devem ser aplicadas. De qualquer forma, está fora de questão aconselhar a contemplação, que pode muito bem tornar a pessoa ainda mais sonolenta ou silenciosa, o que leva ao mesmo resultado. A filosofia deve viver de sarcasmo, ironia, alarme, lutas, desesperos e permitir-se contemplar e silenciar apenas de tempos em tempos, como um relaxamento. Então, talvez ela consiga criar, ao lado de sonhos realistas, sonhos de uma ordem bastante diferente e demonstrar visivelmente que os sonhos universalmente aceitos não são os únicos. “Qual é a utilidade”? Não acho que essa pergunta precise ser respondida. Quem pergunta mostra que não precisa de resposta nem de filosofia, enquanto que quem precisa delas não pergunta, mas espera pacientemente os eventos: uma temperatura de 50 graus Celsius e um ataque epilético, ou algo desse tipo, que facilita a tarefa difícil de procurar …

O Dado e o Possível

A lei da causalidade como princípio da investigação é uma coisa excelente: as ciências existentes nos fornecem evidências convincentes disso. Mas, como uma idéia no sentido platônico, é de pouco valor, às vezes pelo menos. A estrita harmonia e ordem do mundo fascinaram muitas pessoas: gigantes do pensamento como Spinoza e Goethe fizeram uma pausa com admiração reverente ao contemplar a grande e imutável ordem da natureza. Por isso, exaltaram a necessidade até ao nível de um princípio primordial, eterno e original. E devemos confessar que a concepção de mundo de Goethe e Spinoza vive tanto em cada um de nós que, na maioria dos casos, só podemos amar e respeitar o mundo quando nossas almas sentem uma harmonia simétrica. A harmonia nos parece ao mesmo tempo o valor mais alto e a verdade suprema. Dá à alma grande paz, firmeza estável, confiança no Criador – os benefícios mais altos acessíveis aos homens mortais, como ensinam os filósofos. No entanto, existem outros anseios. O coração do homem é subitamente possuído por um anseio pelo fantástico, pelo imprevisto, pelo que não pode ser previsto.

O belo mundo ama sua beleza, a paz da alma parece vergonhosa, a estabilidade é sentida como um fardo intolerável. Assim como um jovem que se tornou adulto, repentinamente se sente irritado com a abundante tutela de seus pais, da qual recebeu tanto, embora não saiba o que fazer com sua liberdade, um homem de visão também se envergonha da felicidade que é dada a ele, que alguém criou. A lei da causalidade, como toda a harmonia do mundo, parece-lhe um presente agradável, facilitando a vida, mas ainda assim um degradante. Ele vendeu seu direito de primogenitura pela paz, pela felicidade imperturbável – seu grande direito de criação livre. Ele não entende como um gigante como Goethe poderia ter sido seduzido pela tentação de uma vida agradável, ele suspeita da sinceridade de Spinoza. Há algo de podre no estado da Dinamarca. A maçã da árvore do conhecimento do bem e do mal tornou-se para ele o único propósito da vida, mesmo que o caminho para ela deva ser através de um sofrimento extremo.

E, estranhamente, a própria natureza parece preocupada em levar o homem a esse caminho fatal. Chega um momento em nossa vida em que uma voz imperativa e secreta nos proíbe de se alegrar com a beleza e grandeza do mundo. O mundo nos fascina como antes, mas não dá mais pura felicidade. Lembre-se de Chekhov. Como ele amava a natureza! Que desejo imensurável é audível em suas maravilhosas descrições da natureza! Assim como cada vez que ele olhava para o céu azul, o mar agitado ou a floresta verde, uma voz de autoridade sussurrou para ele: “Tudo isso não é mais seu. Você pode olhar para isso, mas não tem o direito de se alegrar. Prepare-se para outra vida, onde nada será dado, completo, preparado, onde nada será criado, onde haverá criação ilimitada somente. E tudo o que há neste mundo será dedicado à destruição, à destruição e à destruição, até mesmo a natureza que você ama apaixonadamente e que é tão difícil e doloroso para você renunciar.” Tudo nos leva ao reino misterioso do eternamente fantástico, eternamente caótico e – quem sabe? – pode ser o eternamente bonito…

Experiência e Prova

Quando cogito ergo sum entrou na cabeça de Descartes, ele marcou o dia – 10 de novembro de 1619 – como um dia notável: “A luz de uma descoberta maravilhosa”, escreveu ele em seu diário, “brilhou em minha mente”. Schelling relata a mesma coisa sobre si: no ano de 1808, ele “viu a luz”. E para Nietzsche, quando percorria as montanhas e os vales do Engadine, houve uma grande mudança: ele agarrou a doutrina da eterna recorrência. Pode-se citar muitos filósofos, poetas, artistas, pregadores, que como esses três de repente viram a luz e consideraram sua visão o começo de uma nova vida. É até provável que todos os homens que foram destinados a exibir ao mundo algo perfeitamente novo e original tenham experimentado, sem exceção, aquele milagre da metamorfose repentina.

Não obstante, embora se fale muito desses milagres e, frequentemente, em quase todas as biografias de grandes homens, não podemos usá-los estritamente. Descartes, Schelling, Nietzsche contam a história de sua conversão; e conosco, Tolstoi e Dostoiévski falam delas; no passado mais remoto, existem Maomé e Paulo, o Apóstolo; na antiguidade ainda mais distante, a lenda de Moisés. Mas se eu tivesse escolhido dez vezes o número, se milhares tivessem sido exemplificados, ainda seria impossível para a mente fazer qualquer dedução deles. Em outras palavras, todos esses casos não têm valor como material científico, enquanto um esqueleto fóssil ou um caso único de uma doença rara desconhecida é um tesouro precioso para o cientista. O que é ainda mais interessante: Descartes ficou tão impressionado com seu cogito ergo sum, Nietzsche com sua eterna recorrência, Maomé com seu paraíso, Paulo Apóstolo com sua visão, enquanto permanecemos mais ou menos indiferentes a qualquer coisa que possam relacionar de suas experiências. Somente os mais sensíveis entre nós têm ouvidos para histórias desse tipo, e mesmo eles são obrigados a esconder suas impressões dentro de si, pois o que pode ser feito com elas?

É até impossível mante-los como fatos indubitáveis, pois os fatos também exigem uma verificação e devem ser comprovados. Não há provas. Os ensinamentos filosóficos e religiosos oferecidos por homens que tiveram experiências internas extraordinárias, não apenas geralmente não confirmam, mas refutam suas próprias histórias de revelação. Pois o ensino filosófico e religioso sempre atribuiu a si mesmo a tarefa de atrair todos para si e, para alcançar esse objetivo, eles tiveram que recorrer a métodos que tenham efeito sobre o homem comum, que nada sabe de extraordinário – para provar à autoridade de fenômenos visíveis e tangíveis, que podem ser medidos, pesados ​​e contados. Na busca de provas, persuasão e popularidade, eles tiveram que sacrificar o importante e o essencial, e expor por demonstração aquilo que é agradável à razão – coisas já mais ou menos conhecidas e, portanto, de pouco interesse e importância. Com o tempo, à medida que a ciência experimental, assim chamada, ganhou cada vez mais poder, o hábito de esconder em si mesmo tudo o que não pode ser demonstrado ad oculos, tornou-se cada vez mais firmemente enraizado, até que seja quase a segunda natureza do homem.

Atualmente, “naturalmente” compartilhamos apenas uma pequena parte de uma experiência com nossos amigos, de modo que, se Maomé e Paulo vivessem em nosso tempo, não passariam pela cabeça deles contar suas histórias extraordinárias. E por toda a sua bravura. Nietzsche, no entanto, passa rapidamente pela eterna recorrência e está muito mais ocupado com a pregação da moralidade do Super-Homem que, apesar de inicialmente surpreender as pessoas, foi afinal aceito com mais ou menos modificações, porque era demonstrável. Evidentemente, somos confrontados com um grande dilema. Se continuarmos a cultivar metodologia moderna, corremos o risco de nos acostumarmos a isso a ponto de perder não apenas a faculdade de compartilhar todas as experiências não-demonstráveis ​​e excepcionais com outras pessoas, mas também de mantê-las firmemente na memória. Eles começarão a ser esquecidos como sonhos, parecerão até ele acordando sonhos. Assim, nos separaremos para sempre de um vasto reino da realidade, cujo significado e valor nunca foram adivinhados ou apreciados. Antigamente, os homens podiam acrescentar sonhos e visões de loucos à realidade; mas reduziremos a real realidade indubitável, transferindo-a para o reino das alucinações e dos sonhos.

Eu suponho que mesmo um homem moderno sentirá alguma hesitação em se aproximar dessa metodologia, mesmo que seja incapaz de pensar em conjunto com os antigos que os sonhos não são de forma alguma coisas sem valor. E se é assim. então, os direitos das experiências não devem ser definidos pelo grau de demonstrabilidade. Por mais caprichosas que sejam nossas experiências, por menos que elas concordem com as concepções enraizadas e predominantes do caráter necessário dos eventos na vida interior e exterior – uma vez que ocorrem na alma do homem, elas adquirem ipso facto o direito legítimo de se manter lado a lado com os fatos que são mais demonstráveis e suscetíveis de controle e verificação, e mesmo com um experimento deliberado.

Pode-se dizer que não estaríamos protegidos contra fraudes deliberadas. Pessoas que nunca estiveram no paraíso se entregarão ao Maomés. Isso é verdade; eles falarão e mentirão. Nesse ponto não há método de verificação objetiva. Mas eles certamente dirão a verdade também. Por essa verdade, podemos decidir nadar através de um oceano inteiro de mentiras. Sim, não é nem um pouco impossível distinguir a verdade da mentira neste domínio, embora certamente não pelos sinais que foram desenvolvidos pela lógica; e nem mesmo por sinais, mas por nenhum sinal. Os sinais do belo ainda não foram definidos de forma aproximada e, por favor, Deus – seja dito sem ofensa aos alemães – eles nunca serão definidos. Mas ainda assim distinguimos entre Apolo e Vênus. O mesmo acontece com a verdade: ela também pode ser reconhecida. Mas e se um homem não puder distinguir sem sinais e, além disso, não quiser?… O que deve ser feito com ele? Eu realmente não sei; além disso, não imagino que todos os homens devam agir em uníssono a todo custo. Quando que todos os homens agiram de acordo? Os homens agiram principalmente em separado, encontrando-se em certos lugares e se separando em outros. Por muito tempo que seja assim! Alguns reconhecerão e buscarão a verdade através de sinais, outros sem sinais, como bem entenderem, e outros, nos dois sentidos.

A Apoteose da Falta de Base (A Experiência do Pensamento Adogmático); Também conhecido por Todas as Coisas são Possíveis.

 

Parte I

3. Sobre o método

Um certo naturalista fez o seguinte experimento: Uma jarra de vidro foi dividida em duas metades por uma divisória de vidro perfeitamente transparente. De um lado da divisória, ele colocou um tubarão, do outro, vários peixes pequenos, como as presas do tubarão. O tubarão não notou a partição e atirou-se sobre sua presa, com, é claro, o resultado de apenas um nariz machucado. O mesmo aconteceu muitas vezes, e sempre o mesmo resultado. Por fim, vendo todos os seus esforços terminarem com tanta dor, o tubarão abandonou a caça, de modo que, em poucos dias, quando a partição foi removida, continuou a nadar entre os filhotes sem ousar atacá-los… O mesmo não acontece com a gente? Talvez os limites entre “este mundo” e “o outro mundo” também sejam essencialmente de origem experimental, nem enraizados na natureza das coisas, como se pensava antes de Kant, ou na natureza de nossa razão, como se pensava depois de Kant. Talvez, de fato, exista uma partição e faça vãs todas as tentativas de atravessá-la. Mas talvez chegue um momento em que a partição é removida. No entanto, em nossa mente, a convicção está firmemente enraizada de que é impossível ultrapassar certos limites e doloroso tentar: uma convicção baseada na experiência. Mas, nesse caso, devemos lembrar o velho ceticismo de Hume, que a filosofia idealista considerou como mero jogo de mente sutil, sem valor após a crítica de Kant. A experiência mais duradoura e variada não pode levar a nenhuma conclusão vinculativa e universal. Não, todos os nossos a priori, que são tão úteis por um certo tempo, tornam-se mais cedo ou mais tarde extremamente prejudiciais. Um filósofo não deve ter medo do ceticismo, mas deve continuar machucando sua mandíbula. Talvez o fracasso da metafísica esteja na cautela e na timidez dos metafísicos, que parecem ostensivamente tão corajosos. Eles buscaram descanso – que descrevem como o benefício mais alto. Considerando que eles deveriam ter valorizado mais do que qualquer coisa inquietação, falta de objetivo e até falta de propósito. Como você pode saber quando a partição será removida? Talvez no exato momento em que o homem tenha cessado sua dolorosa busca, resolvido todas as perguntas e apoiado nos louros, inerte, ele pudesse, com um forte empurrão, varrer a cerca perniciosa que o separava do incognoscível. Não há necessidade de o homem se mover de acordo com um plano cuidadosamente considerado. Essa é uma demanda puramente estética que não precisa nos vincular. Deixe o homem sem sentido e delirantemente bater a cabeça na parede – se a parede finalmente cair, ele valorizará seu triunfo menos? Infelizmente para nós foi estabelecida a ilusão de que plano e propósito são a melhor garantia de sucesso. Que ilusão é essa! O oposto é verdadeiro. O melhor de tudo o que o gênio nos revelou foi revelado como resultado de uma busca fantástica, errática, aparentemente ridícula e inútil, mas implacavelmente teimosa. Colombo, cansado de sentar no mesmo lugar, navegou para o oeste em busca da Índia. E a genialidade, apesar da concepção vulgar, é uma condição de caos e inquietação indescritível. Não é à toa que o gênio foi considerado parente à loucura. O gênio se joga de um lado para o outro porque não possui o Sitzfleisch necessário para o êxito industrial da mediocridade. Podemos ter certeza de que a Terra viu muito mais gênio do que a história registrou; já que o gênio é reconhecido apenas quando tiver sido reparado. Quando a discussão não levou a nenhuma questão útil – como é o caso na maioria dos casos –, ela desperta apenas um sentimento de nojo e abominação em todas as testemunhas. “Ele não pode descansar e não pode deixar os outros descansarem.” Se Lermontov e Dostoiévski tivessem vivido em épocas em que não havia demanda por livros, ninguém os teria notado. A morte prematura de Lermontov teria passado despercebida. Talvez algum cidadão decidido e virtuoso tivesse comentado, cansado dos loucos eternos e perigosos do jovem: “Para um cachorro, a morte de um cachorro”. O mesmo de Gogol, Tolstoi, Poushkin. Agora eles são elogiados por terem deixado livros interessantes… E, portanto, não precisamos prestar atenção ao grito de futilidade e inutilidade do ceticismo, mesmo ceticismo puro e inalterado, ceticismo que não tem segundas intenções de abrir caminho para um novo credo. Bater a cabeça contra a parede por ódio à parede: bater contra ideias estabelecidas e obstrutivas, porque as detesta: não é uma proposta atraente? E então, ver adiante possibilidades incertas e ilimitadas, em vez de “ideais” atualizados, não é tão fascinante? O bem maior é o descanso! Não argumentarei: de gustibus aut nihil aut bene…. A propósito, não é um princípio soberbo? E esse princípio soberbo foi alcançado perfeitamente por acaso, infelizmente não por mim, mas por um dos personagens cômicos da Gaivota de Tchekhov. Ele misturou dois provérbios latinos, e o resultado foi uma esplêndida máxima que, para se tornar a priori, aguarda apenas aceitação universal.

As mais importantes e significantes revelações vêm ao mundo nuas, sem as vestes das palavras. Encontrar palavras para elas é um ofício delicado e difícil, uma arte. Estupidez e banalidades, pelo contrário, aparecem prontamente sob trajes prefabricados, chamativos mesmo quando gastos. Assim, elas prontamente já podem ser apresentadas ao público.

Nota: o peixe Esox lucius for adaptado para tubarão. A escolha pelo nome lucius aparenta proposital.

Parte 2

44. Experiência e ciência

Como bem sabemos, a ciência não admite, nem pode, admitir a experiência em toda a sua extensão. Ela joga ao mar uma enorme quantidade de fatos individuais, considerando-os como o lastro do nosso navio humano. Ela toma nota apenas de fenômenos constantemente alternados e com certa regularidade. Mais que tudo ela gosta daqueles fenômenos que podem ser provocados artificialmente quando, por assim dizer, o experimento é possível. Ela explica a rotação da Terra e a sucessão das estações, uma vez que é observável uma recorrência regular, e demonstra trovões e raios com uma faísca de uma máquina elétrica. Em uma palavra, na medida em que uma alternância regular de fenômenos é observável, até aí estende o domínio da ciência. Mas e os fenômenos individuais que não se repetem e que não podem ser provocados artificialmente? Se todos os homens fossem cegos, e alguém por um momento recuperasse a vista e abrisse os olhos para o mundo de Deus, a ciência rejeitaria sua evidência. Contudo, a evidência de um homem que vê vale a de um milhão de cegos. Iluminações súbitas são possíveis em nossa vida – mesmo que durem apenas alguns segundos. Elas deveriam ser ignoradas em silêncio porque não são normais e não podem ser provocadas? – ou tratadas poeticamente, como belas ficções? A ciência insiste nisso. Ela declara que nenhum julgamento é verdadeiro, exceto aqueles que podem ser verificados por todos e todo o mundo. Ela excede seus limites. A experiência é mais ampla que o experimento científico, e os fenômenos individuais significam muito mais para nós do que os constantemente recorrentes.

A ciência é útil – mas ela não precisa aspirar à verdade. Ela não pode saber o que é a verdade, ela só pode acumular leis universais. Considerando que existem, e sempre houve, maneiras não-científicas de buscar a verdade, maneiras que levam, se não aos segredos mais íntimos, até o limiar. Essas estradas, no entanto, deixamos cair em ruínas enquanto seguimos nossas metodologias modernas, então agora não ousamos nem pensar nelas. O que nos dá o direito de afirmar que astrólogos, alquimistas, adivinhos e feiticeiros que passavam longas noites sozinhos com seus pensamentos desperdiçavam seu tempo em vão? Quanto à pedra filosofal, essa era apenas uma desculpa plausível inventada para satisfazer os não-iniciados. Poderia um alquimista ousar confessar abertamente que todos os seus esforços não eram para um fim útil ou utilitário? Ele teve que se proteger contra curiosidade importunada e autoridade impertinente dos leigos. Então ele mentiu, agora assustando, agora seduzindo a multidão através de sua cupidez. Mas certamente ele tinha seu próprio trabalho importante a realizar: e só havia uma falha, que era puramente pessoal para ele. E sobre assuntos pessoais, é considerado correto ficar calado… Um fato surpreendente! Como regra geral, um homem hesita com insignificâncias. Mas às vezes ocorre que chega um momento em que ele é cheio de coragem e resolução inéditas em seus julgamentos. Ele está pronto para defender suas opiniões contra todo o mundo, vivo ou morto. De onde essa garantia repentina, o que significa? Racionalmente, não podemos descobrir nenhuma base para isso. Se um amante tem em sua mente que sua amada é a mulher mais justa do mundo, que vale toda a vida para ele; se alguém que foi insultado sente que seu ofensor é o mais miserável, que ele merece tortura e morte; se um aspirante a Colombo se convencer de que a América é o único objetivo para sua ambição – quem convenceria esses homens de que suas opiniões, compartilhadas por ninguém além de si, são falsas ou injustificáveis? E por quem eles renunciariam seus princípios? Por uma questão de verdade objetiva? Isto é, pelo prazer da certeza de que todos os homens depois deles repetirão seu julgamento sobre a verdade? Eles não se importam. Deixe Dom Quixote correr com espada empunhada, provando a beleza de Dulcinea ou o horror iminente dos moinhos de vento. De fato, ele e, com ele, os filósofos alemães têm uma vaga ideia, uma espécie de pressentimento, de que seus gigantes são apenas velas de moinho e que o ideal em geral é apenas uma garota comum que leva os porcos ao pasto. Para desafiar tais dúvidas mortais, eles levam a espada ou discutem, e não descansam até que tenham conseguido parar a boca de todos. Quando, de todos os lábios, ouvem o louvor de Dulcinea, dizem: sim, ela é linda e nunca dirigia porcos. Quando o mundo vê com espanto suas façanhas sobre os moinhos de vento, eles são preenchidas com triunfo; ovelhas não são ovelhas, moinhos não são moinhos, como você poderia imaginar; eles são cavaleiros e ciclopes. Isso é chamado de verdade universal comprovada, vinculativa e universal. O apoio do populacho é uma condição necessária da existência da filosofia moderna e de seus cavaleiros do semblante feminino. A filosofia científica anseia por um novo Cervantes que interrompa o caminho para a verdade por meio de argumentos. Todas as opiniões têm o direito de existir e, se falamos de privilégios, deve-se dar preferência às que são mais comuns hoje; ou seja, a opiniões que não podem ser verificadas e que, por essa mesma razão, são universais. Uma vez, há muito tempo, “o homem inventou a fala para expressar sua real relação com o universo”. Portanto, ele pode ser ouvido, mesmo que a relação que ele deseje expressar seja única, não-verificada por nenhum outro indivíduo. É estritamente proibido tentar verificá-la através de observações e experimentos. Se o hábito da “verificação objetiva” destruiu sua receptividade nativa a tal ponto que seus olhos e ouvidos se foram e você deve confiar apenas na evidência de instrumentos ou objetos não-sujeitos à sua vontade, então, é claro, nada sobrou para você senão se ater à crença de que a ciência é um conhecimento perfeito. Mas se seus olhos vivem e seu ouvido é sensível – jogue fora instrumentos e aparelhos, esqueça a metodologia e o Don-Quixotismo científico e tente confiar em si mesmo. Que mal há em não ter julgamentos ou verdades universais? Como te machucará ver ovelhas como ovelhas? É um passo à frente. Você aprenderá a não ver com os olhos de todos, mas a ver como ninguém vê. Você não aprenderá a meditar, mas a conjurar e invocar com palavras alheias a todos, menos a você, uma beleza desconhecida e um poder inédito. Repito que não foi à toa que astrólogos e alquimistas desprezaram o método experimental – que, a propósito, longe de ser algo novo ou particularmente moderno, é tão antigo quanto as colinas. Os animais experimentam, embora não componham tratados sobre lógica indutiva ou se orgulhem de seus poderes de raciocínio. Uma vaca que queimou a boca na gamela vai subir com cautela na próxima vez para se alimentar. Todo experimentador é o mesmo – apenas o homem sistematiza. Mas os animais costumam confiar no instinto quando falta experiência. E nós, humanos, temos experiência suficiente? A experiência pode nos dar o que mais queremos? Nesse caso, deixe que a ciência e o artesanato atendam às nossas necessidades cotidianas, que até a filosofia, também ansiosa por servir, continue encontrando verdades universais. Mas, além do artesanato, da ciência e da filosofia, há outra região do conhecimento. Por todas as eras, homens, cada um por seu próprio risco, procuraram penetrar nesta região. Devemos, homens do século XX, renunciar voluntariamente a nossos supremos poderes e direitos e, como a opinião pública exige, ocupar-nos exclusivamente com a descoberta de informações úteis? Ou, a fim de não parecer mesquinho ou atingido pela pobreza aos nossos próprios olhos, devemos aceitar no lugar da pedra filosofal nossa moderna metafísica, que abafa seu medo da realidade em postulados, absolutos e parafernálias transcendentais somente em aparência?