Eucaristia e Mundo


Ioannis Zizioulas, desde 1986 metropolita ortodoxo de Pérgamo, e representante do Patriarcado de Constantinopla em diversas assembléias ecumênicas, é professor de teologia na Universidade de Tessalônica e no King’s College de Londres.
Considerado por Yves Congar como “um dos teólogos mais originais e mais profundos de nossa época”, neste ensaio o autor nos oferece uma proposta bíblica e teológica para o problema da ecologia. Não se trata de apelar para modismos ou de adequar-se a uma mentalidade mundana, mas de redescobrir o lugar do homem na economia criacional, de ler a criação como ocasião de Eucaristia, de oferta e de ação de graças: recomposta a harmonia com todos os seres animados e inanimados, o homem volta a ser a esperança oferecida à criação que, junto com ele, “geme e sofre na expectativa da redenção”.
Eucaristia e Mundo
Tradução: Pe. José Artulino Besen
«Não se deve esquecer que as Igrejas do Oriente têm desde a origem um tesouro, do qual a Igreja do Ocidente herdou muitas coisas em liturgia, tradição espiritual e ordenação jurídica.»
«Não se deve subestimar o fato de que os dogmas fundamentais da fé cristã sobre a Trindade e o Verbo de Deus, encarnado da Virgem Maria, foram definidos em Concílios Ecumênicos celebrados no Oriente.». (UR 14)
«No Oriente também se encontram as riquezas das tradições espirituais, que o monaquismo principalmente expressou.»
«Conhecer, venerar, conservar e fomentar o riquíssimo patrimônio litúrgico e espiritual dos Orientais é de máxima importância para guardar fielmente a plenitude da tradição cristã. Decreto Unitatis Redintegratio.» (UR),15)
1. A Eucaristia como liturgia
A tradição ortodoxa é profundamente litúrgica. Para a ortodoxia, “a Igreja vive na Eucaristia e através da Eucaristia”, e a forma concreta que ela assume é o templo no qual se celebra a Eucaristia, que não por acaso toma o nome de “Igreja”. O universo inteiro é uma liturgia, uma liturgia cósmica que eleva toda a criação ao trono de Deus. A teologia ortodoxa é igualmente uma doxologia, uma expressão litúrgica; é uma teologia eucarística.
O que isso significa para o homem contemporâneo? A visão do mundo e da vida mudou de tal forma com relação àquela do mundo bizantino (e continua a mudar rapidamente sob o influxo das inovações científicas, filosóficas e sociológicas) que somos obrigados a perguntar-nos: o que a vida litúrgica ortodoxa pode oferecer ao homem de nosso tempo?
Esta pergunta assume dimensões angustiantes diante da crise muito grave que o homem contemporâneo está atravessando com relação ao que se refere à sua ligação com a Igreja. A civilização ocidental, por longo tempo nutrida nos ideais do cristianismo, se descristianiza rapidamente e a Igreja, que ainda fala uma linguagem e se preocupa com problemas que pertencem ao passado, está sempre mais longe de alcançar os homens de hoje. O mundo cristão ocidental já está alargando seu olhar para abraçar o problema da secularização em toda a sua amplidão, mas por causa de sua tradição – que vive debaixo do peso da separação do mundo em sagrado e profano – acaba multiplicando e não resolvendo os problemas.
Nesta situação, a vida litúrgica ortodoxa se apresenta como um testemunho portador de esperança. Com efeito, a visão eucarística do mundo e da história que a permeia – e que, infelizmente, devido à falta de educação litúrgica não é tomada em todo o seu alcance nem pelos ortodoxos – não foi envolvida com o destino dos esquemas filosóficos e teológicos que, tornados inúteis pelo pensamento contemporâneo, colocaram em crise as relações entre teologia e vida.
A vida litúrgica ortodoxa possui uma visão própria do mundo e da criação. Uma visão que não só pode mas deve ser reintroduzida na vida atual. Ela traz em si um modo de interpretar o homem que poderia revelar-se particularmente necessária ao homem de hoje. Ela oferece, além disso, uma hermenêutica da história e de seus problemas, da vida ética e de suas possibilidades que, talvez, seja importante salientar com ênfase particular em nossos dias.
Mas, como concebemos a eucaristia quando falamos de uma “visão eucarística do mundo”? A resposta a esta pergunta é fundamental, porque a Eucaristia foi interpretada muito mal e seu sentido foi-se deformando, sobretudo na época da Escolástica. A utilização de seu antigo sentido ortodoxo e patrístico requer alguns esclarecimentos basilares.
Em nossa compreensão, a Eucaristia está unida com a manifestação de um pietismo que a vê como objeto, uma coisa e como um meio para expressar nossa piedade ou para favorecer a nossa salvação. Todavia, a antiga concepção da Eucaristia não a entendia nem somente nem principalmente como uma coisa, mas como práxis, como liturgia (é muito característico esse termo ortodoxo) e sobretudo como ação de uma assembléia (synaxis), como expressão comum, católica, de toda a Igreja e não como relação individual de cada um com Deus. É característico que a cristandade oriental, que conserva – ainda que muito inconscientemente – esta antiga concepção, jamais tenha pensado em introduzir nem liturgias individuais nem a adoração dos “preciosos dons”, numa forma que os reduza a um objeto de devoção e de culto. A Eucaristia é fundamentalmente uma coisa que se realiza, é uma práxis e, sobretudo, algo que não acontece com alguém individualmente, mas é ação de toda a Igreja.
Muitas vezes vemos a Eucaristia como um sacramento entre tantos (por exemplo, entre os sete canônicos). A Igreja antiga não tinha esta concepção, introduzida em seguida, de sacramentos, mas falava de um só e único sacramento (mysterion), o “sacramento de Cristo”, como se diz na Escritura . Portanto, a única compreensão possível da Eucaristia é cristológica: é o corpo de Cristo, o próprio Cristo, o Cristo total. Por isso não devemos ver nela um veículo da graça – de uma graça abstrata e independente da cristologia. Devemos vê-la como o próprio Cristo que salva o homem e o mundo e que nos reconcilia com Deus através de si mesmo. Como conseqüência, todos os problemas sobre os elementos da eucaristia, a presença real ou menos real de Cristo (a transubstanciação e assim por diante) que tão maciçamente ocuparam as disputas medievais, são secundários e nos levam simples e unicamente a uma visão da Eucaristia como coisa, como objeto. O caráter fundamental da eucaristia consiste, em vez disso, no seu ser uma reunião (synaxis) e uma ação (práxis) na qual se contempla, se recapitula e se vive todo o mistério de Cristo, a salvação do mundo.
Se nos aproximamos da Eucaristia com estes pressupostos, então forçosamente somos levados a segui-la não como uma doutrina autônoma e abstrata dos sacramentos, mas como uma liturgia concreta, do modo como vem celebrada numa Igreja ortodoxa. Então aos nossos olhos se revelará a visão particular do mundo e da história que a ortodoxia contém na sua mais autêntica manifestação.
2. A Eucaristia como «oferta» do mundo
A liturgia é, também na práxis, a mais positiva aceitação do mundo e da criação. Se o monaquismo como práxis (não como contemplação ou vida pessoal) se caracteriza como movimento saindo do mundo rumo ao exterior (mundo como lugar físico), a liturgia se especifica por um movimento na direção oposta. Todos os fiéis que participam da liturgia levam consigo o mundo (agora entendido em modo bastante realístico). Não levam somente a si mesmos com as próprias incapacidades e paixões, mas levam sua relação com o mundo natural, com a criação. Na Igreja antiga, mas ainda hoje nos ambientes nos quais a simples piedade transmitida pelos pais não foi totalmente suplantada por uma piedade “intelectual”, os fiéis não vão sozinhos à igreja, levam consigo os dons da criação: o pão, o vinho e o óleo. Estas ofertas – como isso também é característico! – são levadas na procissão e nos cortejos litúrgicos para serem entregues nas mãos do bispo que espera à Entrada , o qual, por sua vez, deverá oferecer a Deus como Eucaristia. Longe de fazer os fiéis se esquecerem de suas necessidades quotidianas quando se dirigem ao local da celebração (como se poderia entender), a liturgia pede que as levem à igreja e que rezem por toda uma série de coisas, como pela salubridade do clima, pela abundância dos frutos da terra, pelos navegantes, pelos viajantes, pelos sofredores . Esse grande escândalo para algumas almas piedosas é uma ação que revela durante a liturgia o desenrolar de um caminho, de um cortejo de todo o mundo rumo à santa Mesa (o altar), de um mundo assim como é e como será novamente quando o esplendor escatológico, a pregustação do paraíso oferecida pela eucaristia terminará, e os fiéis serão novamente chamados a “ir em paz” ao mundo.
Esta experiência do encaminhar-se e do transferir-se com toda a vida para o lugar litúrgico não é uma afirmação que nos induz a ignorar a realidade do pecado. De fato, por causa do pecado o mundo não é mais aquela realidade “muito boa” que Deus viu no momento da criação . O pecado é um elemento trágico que retorna mais e mais vezes na compreensão global da igreja enquanto celebra: “Nenhum entre aqueles que são escravos dos desejos e das paixões carnais é digno de apresentar-se ou de avizinhar-se ou de oferecer sacrifícios a ti, rei da glória… Todavia, por causa de teu inefável e imenso amor pelos homens…”(como continua o início da Grande Entrada). Para a liturgia, portanto, o pecado não é percebido na atual teologia do julgamento, como o angustiante e não resolvido problema do mundo. A corrupção que seguiu-se à criação não é afirmada nem negada na liturgia eucarística (não nos deixemos arrastar por este dilema!).
O mundo que conflui no espaço litúrgico é o mesmo mundo que está corrompido, e admitindo-o no lugar sagrado se realiza a sua afirmação. Mas não é tudo, porque este mundo aflui em um lugar sagrado exatamente para não permanecer o que é. A liturgia eucarística é o “remédio da imortalidade” porque, estando a sua aceitação e afirmação do valor do mundo em contradição com a corrupção que sofreu, acolhendo o mundo, ela o santifica e o coloca em relação com o Criador como uma criação pura: “Os mesmos dons que de ti recebemos nós os oferecemos a ti em tudo e por tudo”.
Esta aceitação do mundo por parte da liturgia indica que realmente o mundo, segundo a visão eucarística da criação, jamais deixou de ser mundo de Deus; que o pecado e a corrupção não criaram um “Deus estrangeiro” como aquele de Marcião ou de Harnack; que aquilo que nós somos, que fazemos, tudo o que nos interessa no mundo pode e deve passar através das mãos do sacerdote celebrante como anáfora, isto é, como oferta a Deus. Mas, certamente não para permanecer no modo em que agora se encontra, e sim para se tornar aquilo que é ontologicamente e que o pecado deforma.
A liturgia exprime um paradoxo realizando a afirmação e a negação do mundo, ou seja, uma transfiguração que não destrói o mundo, uma regeneração que não cria do nada, uma renovação que não é total regeneração. Na Eucaristia este paradoxo é o fazer-se presente e visível no tempo e no espaço do mistério de Cristo, no qual o velho Adão se renova sem destruir-se, a natureza humana é assumida sem ser mudada, o homem é deificado sem deixar de ser homem.
Esta visão do mundo através da eucaristia não deixa espaço a uma dicotomia entre natural e sobrenatural, uma separação na qual a teologia ocidental aprisionou o homem colocando-o diante do dilema de uma escolha entre dois planos. Penso que esse fato seja de grande ajuda para aquilo que se refere à relação da Igreja com os homens de nosso tempo. O homem contemporâneo sente dificuldade (para não dizer que é-lhe impossível decidir) quando deve distinguir o natural do sobrenatural. Devido ao moderno desenvolvimento do pensamento científico e filosófico, ele não entende mais o sobrenatural, o que se encontra “além” da natureza.
Uma semelhante visão do conjunto do cristianismo, sobrecarregada por essa dicotomia que herdou da teologia ocidental, outra coisa não pode fazer senão conduzir o homem moderno à negação total do sobrenatural, ou a uma espécie de esquizofrenia, quer o aceite para não trair a própria fé, quer permaneça indiferente porque assim lhe é permitido pela vida de todos os dias.
Numa visão litúrgica do mundo, todavia, não existe o natural e o sobrenatural. Existe a natureza e a criação como uma única realidade que provém de Deus e a Deus é oferecida. Existe um encontro completo, até à identidade, do celeste com a realidade terrena (“Nós que misticamente representamos os querubins, e à Trindade vivificante cantamos o hino Três vezes Santo” recita ainda a anáfora de João Crisóstomo). Um encontro no qual o próprio Deus não deixa de ser concebido “além” da natureza e na pessoa do Filho se torna “aquele que está assentado no céu com o Pai e que está invisivelmente presente conosco”. Deste modo a Eucaristia oferece ao homem a possibilidade de desvincular-se de uma dicotomia que arrisca provocar a negação de Deus por parte do homem moderno, enquanto este último, na sua “visão teológica”, terminou por colocar Deus numa esfera que acaba não mais podendo compreender.
Contudo, a visão eucarística do mundo não se limita a remover a contradição acenada acima. Mais do que isso, ela contribui para dissipar um outro dilema ao qual a teologia intelectualística e helenizante conduziu o homem: a antítese entre tempo e eternidade. Habitualmente a história e o tempo são percebidos como um mal necessário ou como a “antecâmara” da eternidade. Ao invés, na Eucaristia a história se encontra com a eternidade, que desse modo deixa de ser uma coisa que vem antes ou depois do tempo. Mas, num místico compenetrar-se de passado, presente e futuro, a eternidade se torna exatamente a dimensão na qual o tempo pode encontrar a própria completa aceitação e santificação, desde que seja entendido como “lugar teológico” de realização do plano eterno de Deus para a nossa salvação: “Lembrados, portanto, deste mandamento salvífico e de tudo o que foi feito por nós: da cruz, do sepulcro, da ressurreição ao terceiro dia, da ascensão aos céus, do estar sentado à direita [do Pai], da segunda e gloriosa vinda, os mesmos dons de ti recebidos nós os oferecemos a ti em tudo e por tudo” .
3. A Eucaristia e a integridade do homem
A vida litúrgica ortodoxa tem, igualmente, uma visão particular do homem, visão que parece vir de encontro ao homem de nosso tempo e a suas necessidades. Ele herdou de uma tradição teológica plurissecular a angústia do próprio ser dividido em alma e corpo, espírito e matéria. Herdou o dilema de ter que escolher entre esses elementos, posto que, para ele, a esfera propriamente espiritual é incompreensível. Ao contrário, a vida litúrgica oriental dedica uma profunda solicitude tanto ao corpo como a suas necessidades. A matéria está tão intimamente presente que não apenas o pão e o vinho se identificam com o próprio Senhor, mas também a madeira e as cores se tornam, de alguma maneira, encarnações dos santos, os ossos e as relíquias carregam e exprimem uma presença pessoal santificante. Em uma tal tradição litúrgica o homem participa como homem integral no encontro com Deus. Ele não fecha os olhos – segundo o modelo da piedade ocidental – para buscar um encontro com Deus que seja desmaterializado (e que no final nada mais é do que uma relação psicológica). Uma tal defesa da natureza unitária do homem não poderia talvez ser aceita por uma humanidade que já deixou – e ninguém pode repreendê-la por isso – de pensar com as categorias antropológicas do platonismo e do aristotelismo?
Mas, além de defender a própria integralidade, o homem reencontra na eucaristia uma outra qualidade fundamental, cuja perda acabou por criar uma crise real em sua consciência e em sua vida. Desde o início sublinhamos (e é necessário sempre tornar a fazê-lo) que a Eucaristia não é o lugar do simples encontro de cada indivíduo com Deus. Ela é, na sua essência, uma manifestação social e eclesial, e como tal é conservada – mesmo que simbolicamente – no Oriente. Talvez não haja nenhuma outra manifestação da existência eclesial em que os cristãos cessem de maneira análoga de operar como indivíduos para transformar-se em Igreja. Na Eucaristia a oração, a fé, o amor, a caridade (todas as coisas que os fiéis realizam por própria conta) deixam de ser a manifestação de um “eu” e se fazem manifestações de um “nós”, enquanto que toda a relação do homem com Deus se torna uma relação de Deus com o seu povo, com a sua Igreja.
A eucaristia não é somente comunhão de cada indivíduo com Cristo mas é, em primeiro lugar, comunhão dos fiéis entre si e unidade no corpo de Cristo, “não muitos corpos, mas um só corpo”, como observa João Crisóstomo fielmente interpretando a Paulo. Assim também esta verdade bíblica segundo a qual o caminho para Deus passa indispensavelmente pelo caminho para o próximo, manifesta a própria vitalidade na visão do homem a partir da Eucaristia.
É neste modo que o homem deixa de ser indivíduo e emerge como pessoa. A pessoa não é uma realidade que constitui uma engrenagem de qualquer maquinário ordenado a qualquer fim, por mais justo que seja tal fim (visão, essa, tipicamente coletivista). Também não é um meio em vista de um fim. É o fim de si mesma, imagem e semelhança de Deus, que somente na comunhão com Deus e com os outros encontra a própria justificação.
O homem moderno vive quotidianamente sob o peso da oposição entre indivíduo e coletividade. Sua vida social não é communio mas societas, e sua reação violenta e justificada contra o coletivismo o leva ao individualismo – que é, paradoxalmente, o próprio pressuposto do coletivismo! – já que não tem outra escolha. A tradição cristã não lhe ofereceu uma antropologia que o justificasse como pessoa, já que mesmo na Igreja é sempre olhado ora através do espelho deformante do individualismo, ora através daquele da coletividade.
A liturgia pressupõe e conduz a uma antropologia na qual o homem não pode ser entendido a não ser como “nova criatura em Cristo”. A liturgia não faz teologia, não formula definições, ela indica e revela, responde à pergunta: “O que é o homem?”, endereçando a Cristo como ao homem por excelência, isto é, como ao homem “um com Deus”, feito Deus. Na comunhão com as coisas santas que são oferecidas “aos santos” a agulha da bússola se orienta imediatamente para “um só Santo, um só Senhor, Jesus Cristo” , aquele no qual o homem, unido através da comunhão divina, se transforma naquilo que verdadeiramente é: um homem em toda a sua plenitude.
Tudo isso constitui a experiência de quem participa da liturgia. Mas, o que acontece depois que somos “despedidos em paz” e retornamos ao mundo? Que significado pode ter a eucaristia para a vida ética e comunitária do mundo?
4. Eucaristia e ética
Estamos habituados a afirmar que, através da Eucaristia, o homem alcança as forças sobrenaturais que o ajudarão na luta contra o pecado. Mas independentemente deste transbordar de forças, a eucaristia como práxis e como comunhão oferece à vida ética uma contribuição fundamental: a redescoberta de seu correto significado. Nossa tradição teológica transformou a moral num sistema de regras de comportamento e num campo autônomo da teologia. Deste modo, determinados tipos de conduta moral são elevados ao nível de construções jurídicas absolutas e sem ligação com o curso da história e com a diversidade dos contextos humanos. Assim reduzidas a “tipos” de um conformismo pedante e repetitivo, tais regras são utilizadas para julgar moralmente o mundo segundo sua conformidade com elas. O comportamento ético assume, em tal modo, um caráter legal e a relação do homem com Deus se torna uma relação jurídica, como desde a origem o ocidente a tinha concebido.
Em posição antitética com respeito a esta tradição, a visão eucarística do mundo e da sociedade não consente nem pode tolerar uma autonomia da moral ou sua elevação a um sistema absoluto de regras privadas de relações com o tempo e com a diversidade das pessoas. Na vida litúrgica ortodoxa a moralidade não brota de uma relação jurídica com Deus, mas de uma transfiguração e de uma renovação da criação e do homem em Cristo, de modo que todo o imperativo ético se torne compreensível somente como conseqüência desta transfiguração sacramental.
Em uma perspectiva sacramental da moral como, por exemplo, a que se encontra na Carta de Paulo aos Colossenses, o comportamento é entendido somente como uma continuidade da transfiguração litúrgica: “Se portanto ressuscitastes com Cristo… mortificai vossos membros carnais… já que vos despojastes do homem velho com a sua conduta e vos revestistes do novo, aquele que se renova…” (observe-se como os termos “despojar-se” e “revestir-se”, neste contexto possuem um significado litúrgico e se ligam, seguramente, como toda a terminologia desta parte da Carta, com a práxis sacramental do batismo). Por isso, também a liturgia emprega só um tipo de terminologia moral: “a santificação das nossas almas e dos nossos corpos”, de modo que em comunhão com a Mãe de Deus… em com todos os santos “confiamos nós mesmos, uns e outros e toda a nossa vida a Cristo Deus” .
Deste modo, a igreja não oferece ao mundo um sistema de regras morais, mas uma sociedade santificada, um fermento que faz fermentar a criação, não através da imposição de suas ordens morais, mas por meio de sua presença santificadora. É uma presença testemunhante, que não amarra fardos pesados aos homens para conquistá-los, vinculados moralmente, para a salvação, mas os chama à liberdade de filhos de Deus, numa comunhão com ele que conduz à renovação do mundo.
O homem moderno parece rejeitar totalmente, e com indignação, as regras morais que a tradição de uma civilização cristã lhe impôs por séculos. Deixando de lado as causas desta situação, limitemo-nos a notar que a construção, que erguemos com tanto zelo coordenando os nossos bem-amados valores morais, é hoje percebida como uma prisão para o homem e que suas fundações ameaçam rachar. Preocupa-nos o problema da queda destes valores e nos espantamos porque a nossa voz, a voz dos cristãos, cai no vazio. Refugiamo-nos nas pregações baseadas em argumentos morais e éticos, para convencer o mundo, e encontramos o fracasso. Servimo-nos de pregações dogmáticas e não somos escutados. A palavra é oferecida e o mundo “não a acolhe” . E em nossa autocrítica nos esquecemos que a palavra do cristianismo não é um dizer, mas uma pessoa; não é voz, mas presença vivente; uma presença que se encarna de modo eminente na eucaristia, numa Eucaristia que é reunião (synaxis) e comunhão (koinonia). Esta comunhão que se transfigura, para por sua vez transfigurar, não existe mais: destruiu-a o nosso individualismo pietista que acreditava que não fosse mais necessária a paróquia, a comunidade eucarística, para agir no mundo. Ela foi substituída por nossa “logocracia” que acreditou ser suficiente falar ao mundo para mudá-lo. Nossa Igreja como presença no mundo tornou-se um púlpito sem altar e uma reunião de indivíduos cristãos sem unidade e autêntica reunião. Não buscamos mais nossa disciplina moral na vida nova que se saboreia em nossa assembléia eucarística, e a comunidade parece ter perdido o fermento da comunhão teonomamente fundamentada, fermento que pode suscitar um autêntico renascimento moral.
5. A Eucaristia, primícia das coisas últimas
Com tudo isso não pretendo dizer que a visão eucarística da sociedade possa resolver os problemas morais desta última. Também é importante acentuar o fato de que numa visão eucarística do mundo não há nenhum espaço para o “ópio” de um “evangelho social”. O paraíso terrestre de uma comunidade perfeita do ponto de vista moral constitui uma expectativa que o racionalismo ocidental fez emergir e da qual o testemunho da Eucaristia não pode assumir a paternidade porque a Eucaristia, na sua mais íntima natureza, encerra uma dimensão escatológica que, por mais que penetre na história jamais se transforma inteiramente em história. A Eucaristia é o mais dramático testemunho do encontro entre história e escatologia, entre relatividade e realização na existência humana, aqui e agora. É o testemunho de uma ética que não é uma evolução histórica, mas uma batalha existencial que vence para ser novamente vencida, até quando será definitivamente vencida “no último dia”. Essa penetração escatológica na história não é um desenvolvimento histórico que se pode compreender logicamente ou a partir da experiência, mas principalmente a expressão de uma descida vertical do Espírito Santo: mediante a sua epíclese, tão fundamental e característica para a Ortodoxia, o “mundo presente” em Cristo é transfigurado em “nova criação”. Esta descida do céu sobre a terra, que torna possível a subida (anáfora) da terra ao céu, enche a terra de luz, graça e alegria, e faz da liturgia uma festa, uma celebração, da qual os fiéis retornam ao mundo plenamente felizes e cheios de graça.
Fora da porta do local de culto, porém, aguarda-os sempre a luta. Até o fim dos tempos percorrerão seu caminho eucarístico recebendo somente uma amostra da comunhão divina, cujas primícias estarão sempre misturadas com o amargo sabor do mal. A Eucaristia lhes dará a mais viva certeza da vitória de Cristo sobre aquele que divide (o diábolos), mas vitória que nesta terra permanece fundada na kenosis (o aniquilamento), vitória da cruz, vitória de uma ascese radical, como a viveu o oriente com o seu monarquismo.
Deste modo, a Eucaristia abrirá sempre a estrada certamente não ao sonho de um aperfeiçoamento moral do mundo (segundo um esquema evolucionista), mas à necessidade do exercício radical, da experiência da kenosis e da cruz, único modo de viver no mundo a vitória da ressurreição até o fim dos tempos. A eucaristia, contudo, contemporaneamente dará ao mundo o sabor da realidade escatológica, que penetra na história através da assembléia eucarística e torna possível no espaço e no tempo a nossa divinização. Sem essa dimensão, oferecida ao mundo com a Eucaristia, nenhuma práxis pastoral e missionária, nenhuma habilidosa diplomacia no “diálogo com o mundo” e nenhum sistema ético conseguirão transfigurar o mundo moderno em Cristo.
A crise dos homens modernos em seu relacionar-se com Cristo e a impossibilidade do cristianismo de ir ao seu encontro talvez sejam causadas principalmente pela tradição teológica que transmitimos ao homem comum, que o dividiu e tornou esquizofrênico, fornecendo-lhe esquemas dualísticos ou construções morais asfixiantes e terminando por quebrar a integralidade e a integridade do seu ser homem. Enquanto que esta tradição no passado constituía o modo comum de conceber a realidade, a cada dia estes esquemas interpretativos consideravelmente perderam consistência, cedendo lugar a novas visões da vida trazidas pela ciência e pela filo contemporâneas. Os homens se debatem na dicotomia que lhes transmitimos, agora transformada num dilema, e nós nos entrincheiramos numa apologia de esquemas já ultrapassados, com o resultado de que a crise entre a Igreja e o mundo torna-se sempre mais aguda.
Diante de um semelhante retrato da situação, a Igreja ortodoxa se debaterá com um xadrez teológico do próprio testemunho se também ela continuar na apologia destes esquemas interpretativos. Ao contrário, ela pode liturgicamente se transformar na esperança do mundo e as dicotomias poderão se dissolver em sua Eucaristia, deste modo consentindo ao homem de reencontrar a própria integralidade e a comunhão com Deus. Se a ortodoxia tomar consciência disso, com o tempo será levada a rever a própria teologia e a tomar medidas concretas, de tal modo que, de um lado possa salvar-se a si mesma da secularização e de outro, salvar o mundo de seu crescente distanciamento de Deus.
FONTE:
Ioannis Zizioulas, «A criação como Eucaristia. Proposta teológica ao problema da ecologia», páginas 79-96. TÍTULO ORIGINAL: He ktise hos eucharistia. Theologhike prosenghise sto problema tes oikologhias. EDITOR ORIGINAL: Ekdoseis Akritas, Nea Smyrne 1992. TÍTULO ITALIANO: Il creato come eucaristia. Approccio teologico al problema dell’ecologia. TRADUÇÃO ITALIANA: Riccardo Larini e Lino Breda EDITORA ITALIANA: Edizioni Qiqajon Comunità di Bose. Magnano, Itália, 1994. Com as devidas licenças. TRADUÇÃO BRASILEIRA: Pe. José Artulino Besen. Co-edição brasileira: Ed. Mundo e Missão – missao@cidadanet.org.br / ITESC – Instituto Teológico de Santa Catarina – itesc@mbox1.ufsc.br